Alterações do Código de Defesa do Consumidor: Crítica às Propostas da Comissão Especial do Senado Federal

AutorJosé Geraldo Brito Filomeno
CargoAdvogado, consultor jurídico, membro da Academia Paulista de Direito e da Comissão Geral de Ética do Governo do Estado de S. Paulo (Brasil)
Páginas85-128

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"Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se as que lá existem são executadas, pois boas leis há por toda a parte"

(RICHELIEU, 1585-1642, in Memórias)

"A lei tem duas, e só duas bases: a equidade e a utilidade"

(BURKE, 1729-1797, in Discurso de Bristol)

1. Introdução

As considerações a seguir são decorrentes: a) de reunião cognominada de audiência técnica proposta e conduzida por comissão especial de juristas designada pela presidência do Senado Federal1, em 2 de setembro de 2011, nas dependências da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo, e à qual comparecemos a convite de seu presidente, Arystóbulo Freitas, e do presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, Eduardo Tavolieri; b) da análise de três anteprojetos entregues pela Comissão Especial do Senado Federal ao seu presidente, no dia 14 de março de 2012.

Os trabalhos inais da referida comissão resultaram em três projetos de lei, os quais consistem em ANEXOS a estas considerações (A - Comércio Eletrônico, B - Superendividamento, e C - Tutela Coletiva).

A sessão da audiência do dia 2 de setembro de 2011 foi copresidida pelo ministro Hermen Benjamin, do STJ, e pelo presidente da AASP, Arystóbulo Freitas, reservando-nos, por razões de ordem lógica e de argumentações, a sistemática de nos referirmos a manifestações exaradas quando de cada apreciação de nossa parte.

Nossa posição foi mantida a mesma quando nos manifestamos em trabalhos anteriores, e será sumariada em seguida.

2. Posicionamento a priori

Durante o transcorrer do ano de 2010, em que se comemoraram os vinte anos de sanção do Código de Defesa do Consumidor, nos quase trinta simpósios de que participamos, ora como palestrante, ora como debatedor, deixamos claro nossa posição no sentido de que o mesmo código não estaria a demandar qualquer tipo de alteração, ainda que a título de melhorá-lo ou atualizá-lo. Aliás, tal posicionamento já icara claro em artigo de nossa autoria, publicado na revista da Associação dos Advogados de São Paulo2, em comemoração aos 15 anos do CDC, ocasião em que essas questões já eram ventiladas.

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Cônscio das limitações destas apreciações, até por razões de ordem pragmática e de clareza, informamos que a primeira versão de nossa apreciação, antes mesmo da designação da referida comissão de juristas revisora do CDC, foi elaborada em maio de 2010, e encaminhada sob forma de artigo a respeito de eventuais alterações ao Brasilcon - Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, para ser publicada, comentada e criticada no seu site, o que não ocorreu até o presente momento, nem tendo seus dirigentes sequer a cortesia de informar-nos o porquê da não publicação.

Para aqueles que pretendam tomar conhecimento do respectivo texto na íntegra, certamente mais alentado e aperfeiçoado posteriormente, indicamos os sites www.cognitiojuris.com e www.oab.org.br - Revista Eletrônica de Atualidades Jurídicas" n. 13 - CFOAB - Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (vide resumo abaixo)3.

Nossa contrariedade a qualquer alteração no CDC pode ser assim sumariada:

a) o Código de Defesa do Consumidor, embora concebido há mais de vinte anos, continua tão atual quanto àquela época;

b) cuida-se, com efeito, de uma lei de cunho principiológico4, de caráter multi e interdisciplinar, o que ica claro pelo enunciado de seu art. 7º, caput5, na medida em que se relaciona com todos os ramos do direito, e, ao mesmo tempo, contempla em seu bojo institutos que caberiam, como de resto couberam, em outros diplomas legais como, por exemplo, a responsabilidade civil objetiva, hoje constante, também, do Código Civil, no parágrafo único do art. 927, o princípio de boa-fé objetiva, bem como a interpretação mais favorável a um dos contratantes nos contratos de adesão (arts. 113, 421 e 422 do Código Civil, e.g.); isto sem se falar de legislações relativas à qualidade, metrologia e normalização de produtos e serviços, concorrência, propriedade industrial, atividades bancárias, securitárias, serviços públicos essenciais prestados por empresas permissionárias ou concessionárias, educação e previdência privadas etc.

c) sua maior e melhor implementação depende, isto sim, da atuação mais incisiva, mas ponderada e objetiva, dos órgãos públicos e das entidades não governamentais de proteção e defesa do consumidor, bem como, e principalmente, dos operadores do direito, com especial ênfase dos órgãos do poder judiciário, não ainda, em grande parte, aptos e preparados para cuidarem dos direitos e interesses abrigados pelo referido código;

d) se a internet, por exemplo, não fora antevista à época da concepção do Código (1988-89), referido instrumento, embora certamente tenha

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surpreendentes peculiaridades, no âmbito das relações de consumo, não passa de um meio a mais, eletrônico, tanto de veiculação eletrônica de ofertas e mensagens publicitárias, quanto de negociação e contratação; entretanto, o art. 49 do CDC já contempla a hipótese de negociação dita virtual, quando feita fora do estabelecimento comercial do fornecedor de produto ou serviço, resguardando o consumidor, inclusive, com o direito de desistência da compra assim efetuada; entretanto, o chamado marco regulatório dos múltiplos processos e aplicações de informática não se resume, apenas, à oferta, publicidade e contratos irmados entre consumidores e fornecedores, mas vai muito além, no que tange a negócios entre fornecedores, crimes cibernéticos, chaves públicas e privadas, por exemplo, meandros das comunicações, concessões, permissões etc. E ica a indagação: é oportuno e conveniente a regulação parcial numa lei de defesa do consumidor?

e) por outro lado, e não menos importante: sabendo-se que neste país, embora bafejado pelo processo legislativo democrático, há mais de vinte e seis anos, até esta parte, os interesses e lobbies são dos mais variados matizes, nem sempre condizentes com os anseios consumeristas, não se verão tentados, por intermédio de congressistas, a se aproveitarem da ocasião e subtraírem conquistas tão dura e custosamente conseguidas? Vide o caso, por exemplo, do Código Florestal que, no enfoque dos ecologistas, estará a implicar perigoso retrocesso ao vigente, ainda que concebido na década de 60 do século passado.

Dentro ainda desta última perspectiva, ponderamos que, sabendo-se que há em tramitação no Congresso Nacional mais de cinco centenas de projetos de lei modiicando aqui e ali o Código de Defesa do Consumidor, aos quais se juntarão as propostas ora analisadas, sem se falar do projeto de Código de Processo Coletivo e estudos visando a incluir novos livros no Código Penal quanto à sua parte especial deinidora de delitos e penas, tudo aliado à circunstância de que o próprio Código Civil, em matéria de responsabilidade civil e tutela contratual, iguala todos os sujeitos de direito, antevemos a pura e simples extinção do Código de Defesa do Consumidor.

Sim, até porque, se suas pedras angulares são a vulnerabilidade de uma das partes das relações de consumo, encimadas pelo princípio secular da boa-fé e a destinação inal de produtos e serviços, circunstâncias essas, bem ou mal,

O Código de Defesa do Consumidor, embora concebido há mais de vinte anos, continua tão atual quanto àquela época

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já contempladas no Código Civil, pergunta-se: para que um Código do Consumidor, então, se todos são - agora - iguais perante a lei?

f) Quanto à tutela processual coletiva, como se verá no anexo respectivo, além se haver projeto para a sua disciplina geral para todos os tipos de interesses difusos, coletivo e individuais homogêneos de origem comum, as sugestões em pauta somente se aplicariam ao consumidor, e não aos demais interesses coletivos, lato sensu.

Ainda no que tange à tutela coletiva do consumidor, percebe-se que o anteprojeto é muito mais direcionado aos magistrados, na medida em que pretende tornar mais explícita e didática a classe dos chamados interesses e direitos individuais homogêneos de origem comum. Ou seja, parte-se do pressuposto de que os magistrados, em especial, não apenas não sabem a distinção entre os três tipos de tutela coletiva (difusa, coletiva stricto sensu e individuais homogêneos), decidindo como se se cuidasse de interesses meramente individuais, ou se equivocando quanto às características de uns e outros, como têm decidido como se direitos individuais puros fossem.

Seu único dado positivo foi a proposta da criação de cadastro geral das ações coletivas e compromissos de ajustamento de conduta nos âmbitos dos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público no que se refere ao consumidor.

Referida iniciativa, entretanto, além de não ser original, já que as mencionadas instituições já baixaram a Resolução Conjunta 02/2011-CNMPCNJ, não contempla: nem os outros interesses e direitos difusos e coletivos, além dos do consumidor, nem tampouco a resolução de conlitos de atribuições entre os diversos órgãos do Ministério Público, hoje dirimidos pelo Supremo Tribunal Federal, quando, na verdade, se trataria de questão de interesse especíico, de cunho administrativo, dos referidos órgãos. Aliás, a esse respeito propusemos tese especíica em congresso nacional do Ministério Público, em 1996, mas acometendo essa atribuição ao Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça, depois reformulada para que tal atribuição fosse acometida ao Conselho Nacional do Ministério Público6.

g) Igualmente quanto à tutela penal, e conforme já programado pela comissão originária do anteprojeto de que redundou a Lei 8.078/90, os delitos aí previstos, apenados mui brandamente, e embora assecuratórios ou garantidores dos preceitos dispositivos de cunho civil e administrativo, certamente serão transpostos para uma futura parte especial de um novo Código Penal7...

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