Espírito animal e o fundamento moral do especismo

AutorHeron José de Santana
CargoDoutorando em Direito Público pela UFPE
Páginas37-65

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1. Introdução

Eles verdadeiramente tinham as cabeças, a voz, corpo e pêlos de porcos, mas conservavam como antes o "espírito" (noûs) perfeito. Homero

O que faz com que sejamos indiferentes aos sofrimentos dos animais? Porque razão construímos um sistema ético onde o sofrimento humano, mesmo o da pior das criaturas, é visto como uma ofensa a toda a humanidade, enquanto aproximadamente 100 milhões de animais são mortos todos os anos em experiências científicas, 30 milhões só pela indústria de cosméticos, sem que isto nos provoque qualquer sentimento de compaixão ou piedade? Muitos de nós talvez nunca se tenha perguntado sobre isso.

É que a ideologia especista está tão profundamente enraizada em nossa mente, que nós agimos como se realizássemos um comportamento natural, sem perceber que suas regras são arbitrárias e mais ou menos inconsistentes.

Com efeito, a exclusão dos animais da esfera da moralidade parte do princípio de que eles são destituídos de espírito, isto é, de atividades mentais como o querer, o pensar e o julgar, ou de atributos como a fala, a linguagem simbólica, o livre arbítrio, o raciocínio lógico, a intuição, a consciência de si, o "eu "ou a produção de cultura.

Embora as ciências empíricas já tenham provado que estes argumentos são inconsistentes, eles ainda se encontram arraigados tanto no senso comum quanto na tradição filosófica e religiosa, e durante séculos tem se constituído em dogma oficial da Igreja Católica.

Em verdade, as noções de alma e de espírito possuem vários sentidos, muitas vezes contraditórios, pois algumas vezes são vistos como sinônimos, outras vezes como gênero e espécie, ou mesmo como entes distintos.

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Seja como for, esta questão metafísica cumpre um papel destacado na elaboração da ideologia especista e tem servido como ponto de partida para uma tradição moral concebida em função dos interesses, claros ou ocultos, do homem em detrimento dos interesses das demais espécies.

Este ensaio analisa inicialmente os diferentes sentidos das noções de alma e espírito, que foram mudando de sentido ao mesmo tempo em que o homem foi desenvolvendo a sua capacidade intelectual e seu domínio sobre a natureza.

Em seguida será demonstrado que a partir da noção do espírito, enquanto característica distintiva dos homens em relação aos demais seres vivos, foi sendo construída a ideologia especista que está por detrás da ética que exclui os animais da esfera de consideração moral.

Por fim, pretende demonstrar que embora essa maneira especial de pensar da filosofia grega ainda exerça uma grande influência na tradição ocidental, ela apresenta uma série de contradições e inconsistências que apontam para o seu esgotamento enquanto modelo ético e epistemológico, ao mesmo tempo em que se anuncia o nascimento de uma nova ética, que divorciada da tradição moderna de dominação da natureza pelos homens da prioridade ao subjetivo e ao emotivo em relação ao objetivo e ao científico, e afirma, dentre outras coisas, o valor moral dos animais com fundamento nos sentimentos de compaixão e simpatia, numa relação com o mundo fundada na reciprocidade e no intercâmbio.

2. Da alma

Viver é, para aqueles que vivem, o seu próprio ser, sendo a alma a sua causa e o seu princípio, possuindo, além disso, o ser em potência a enteléquia como forma. Todos os corpos naturais são simples instrumentos da alma, assim sucedendo com os animais e com as plantas, demonstrando que eles possuem a alma como fim. Aristóteles.

A palavra alma, do latim Anima, Âme em francês, Psykhé em grego, soul em inglês e Seele em alemão, costuma ser empregada como princípio da vida, sensibilidade, movimento ou conjunto das atividades psíquicas.

Inicialmente, é preciso destacar que esta noção não foi uma invenção da filosofia grega, vez que o homem primitivo já utilizava essa idéia para explicar, por exemplo, a experiência de abandono do corpo durante o sonho.

Para o homem primitivo as representações feitas em vigília ou nos sonhos tinham o mesmo valor, de modo que aquele duplo só poderia ser explicado se se admitisse uma dualidade entre o corpo e a alma, constituída de matéria sutil e etérea, capaz de passar pelos orifícios do corpo e viajar para outros mundos.

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Somente mais tarde, quando percebe que muitas vezes em seus sonhos ocorriam acontecimentos passados, inclusive com a participação de pessoas que já estavam mortas, é que o homem primitivo concebe a idéia de um terceiro elemento: o espírito.

Com efeito, devido a crença do homem primitivo de que todo acontecimento natural era punição ou recompensa pelos seus atos, o conceito de espírito desempenha um importante papel nos rituais de morte que se encontram na origem de todas as religiões.

Tais rituais decorrem tanto do receio de que os mortos possam voltar para vingar-se dos sobreviventes pelas injustiças que lhes foram impostas durante a vida ou mesmo depois da morte, como o não cumprimento de certos costumes, por exemplo, não sepultar o corpo.

Certamente era esta crença na alma dos mortos como sujeito da retribuição que estava por trás da religião órfica dos primeiros gregos, e só quando a Grécia foi conquistada pelas tribos do norte é que ela foi substituída pela idéia de um espírito celeste, tal como o Zeus olímpico da religião homérica, ao mesmo tempo em que a alma dos mortos deixa de ser sujeito para se tornar o objeto da retribuição.

O conceito de alma, porém, tal qual o conhecemos hoje em dia, como uma entidade em si ou substância que manifesta um princípio autônomo, é uma herança da filosofia grega, onde a palavra Psykhé significa respiração, sopro vital, vida, e provém do verbo psykhein que significa soprar, respirar.

Nos poemas homéricos, mesmo quando a psykhé abandona o corpo, por exemplo, quando Sarpédon desmaia ao ver o cadáver de Heitor, ela retorna através das vias respiratórias.

Na morte, porém, ela se afasta definitivamente do corpo e trona-se eídolon, que é uma imagem, um simulacro que reproduz os traços do falecido nos últimos momentos, e somente após o sepultamento vai penetrar no Hades.1Na teoria da alma de Platão se identifica três instâncias da alma, duas provenientes do mundo da percepção, que é o "desejo" - presente nos animais e nas plantas, e que nos humanos se localiza abaixo do umbigo - e a "disposição" - localizada no peito e no ventre dos homens, e também no das crianças, escravos e animais e capaz de compreender pensamentos simples como "meu senhor está vindo em minha direção"; e uma de natureza divina e espiritual: o "pensamento", exclusividade da espécie humana.

Assim, alma tem o sentido de substância ou causa, sendo vista como a mais importante atuação de um corpo com uma vida em potência, mas que, diferentemente do espírito, não pode dele separar-se, já que constitui a sua própria atividade. A alma, portanto, é a própria vida, e estando para o corpo como a visão para o aparelho ótico2 .

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Para Aristóteles a alma está ligada aos sentidos do corpo e possui várias faculdades, como a vegetativa (threptikón) que é comum a todos os seres vivos; a locomotiva (kínesis),comum a todos os animais, inclusive o homem; a sensitiva (aisthetikós) e a imaginativa (phantasía) presente apenas no homem e em alguns poucos animais.

Em verdade, esta noção de alma, fundamental para o mundo grego, se confunde com o próprio sentido de vida, e para os estóicos, por exemplo, ela representa o sopro congênito e animador (pneuma) da vida onde se revela o autêntico significado das coisas.

Assim, é nesse sentido de corporalidade, de conjunto de faculdades ligadas ao corpo sensível - movimentos, emoções, paixões, dor e prazer físicos, atributos comuns a todos os animais - que esta noção vai ser herdada pelas línguas latinas para designar todos os seres animados (animale), em outras palavras, todos os seres que têm uma alma como princípio vital.

Com efeito, a alma é semente e vida interior que se expressa em aparências exteriores como num olhar ou num gesto que transborda o corpo e promove o decolagem do ser, "ultrapassa seus limites, esconde-se nele, e ao mesmo tempo precisa dele, termina nele, está ancorada nele."3

3. Do espírito

Mas, no caso da mente e da faculdade do pensamento, nada se encontra clarificado: parece existir um tipo diferente de alma, só ela admitindo ser separada, como o é aquilo que é imortal daquilo que é mortal. Todavia, sobressai claramente do que acabamos de dizer o fato de outras partes da alma não serem separáveis, como alguns sustentam. Aristóteles

A noção de "espírito", noûs para os gregos, Mind em inglês, Espirit em francês, Geist em alemão, por sua vez, pode assumir vários significados, embora a concepção grega de entendimento ou alma intelectual seja predominante.

Desligado de qualquer organismo e livre pelo espaço - diferentemente da alma que passa a maior parte do tempo no interior do corpo - o espírito é imortal, e mesmo depois da morte do corpo continua a existir, embora, no início, se acreditasse que apenas os homens que a opinião pública atribuísse virtudes especiais possuíssem espírito (mana). 4

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Como vimos, na tradição filosófica grega além do corpo físico (soma) e da alma (psykhé), um terceiro elemento diferencia o homem das outras espécies: um espírito (noûs) independente do corpo, através do qual se realizam as atividades da vita contemplativa.

Uma coisa, contudo, que é particularmente notável é que o pensamento, enquanto atividade fundamental do homem, foi uma das primeiras descobertas dos filósofos gregos, a partir do momento em que eles tomaram consciência da separação entre o corpo e a alma, e também entre a alma e o espírito, já que somente a partir do Século I da era cristã é que Paulo de Tarso vai cunhar o conceito de vontade, da mesma forma que somente no Século XVIII Kant concebe a capacidade de julgar como uma...

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