Ética animal... Ou uma .ética para vertebrados.?: Um animalista também pratica especismo?

AutorCarlos M. Naconecy
CargoFilósofo pela UFRGS
Páginas119-153

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Introdução: uma ética animal especista?

Há um lapso que passa desapercebido pela maioria dos leitores das duas "bíblias" da chamada Ética Animal: ambos os títulos das obras deveriam ter seus respectivos nomes corrigidos para Libertação dos Vertebrados (em vez de Libertação Animal, de Peter Singer1) e Razões a favor dos Direitos dos Mamíferos (em vez de The Case for Animal Rights, de Tom Regan2). Essa incorreção, aparentemente um mero descuido taxionômico primário por parte dos dois autores, revela um problema filosófico importante e ainda pouco explorado pelos pesquisadores da área. Há cerca de 1.300.000 espécies de animais descritas pela Zoologia.3De todas as espécies conhecidas, apenas 2% são vertebradas.4 Isso significa que a preocupação pelos animais sencientes deixaria de fora do âmbito da consideração moral uma infinidade de formas de vida animal sobre a Terra. As proposições da Ética Animal, incluindo as teses da corrente dos Direitos Animais, dizem respeito, portanto, a uma percentagem ínfima do reino animal. Peter Singer e Tom Regan

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mostram, da primeira a última página dos seus livros, que parecem ter esquecido as lições mais elementares da Biologia escolar. Qualquer pessoa minimamente informada em ciência básica sabe que minhocas, camarões, aranhas, formigas, ostras, estrelas-do-mar e outras tantas criaturas não são vegetais nem minerais - são também animais, animais invertebrados.

Um segundo fato digno de nota é o de que um razoável número de publicações em Ética Animal estampa, como epígrafe, citações do filósofo alemão Albert Schweitzer. O dado significativo, neste caso, é o de que Schweitzer se refere em seus pensamentos à condição de qualquer ser vivo sobre a Terra. Ou seja, o foco moral schweitzeriano não se restringe apenas aos animais.5Isso espelha uma tensão teórica no que concerne à filiação filosófica do animalismo. De fato, se analisarmos o discurso ativista pró-animal, veremos que as teses morais se alternam usualmente entre "todo ser capaz de sofrer é importante" e "toda vida é importante". Essa ambigüidade dota o discurso animalista de uma retórica vacilante: fala-se do respeito pelas criaturas sencientes em certos momentos e, em outros, evoca-se o respeito por todo ser vivo. Estamos diante, assim, de duas modalidades de considerabilidade moral com extensões ontológicas distintas e de matizes axiológicas diferentes. Isso afeta desfavoravelmente a consistência da fundamentação animalista e extrai algo da densidade da argumentação pró-animal.

Animais não-sencientes6, por definição, não podem sentir nada, incluindo o sofrimento. O consenso cientifico atual é o de que todos os animais vertebrados são sencientes. Por essa razão, abelhas, por exemplo, são seres vivos que, segundo a Biologia, não são capazes de sofrer. Mas abelhas, na condição de animais não-sencientes, ainda seriam capazes de ser escravizadas, neste caso, para a obtenção de mel pela apicultura.

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O mesmo vale para o bicho-da-seda, uma larva de uma mariposa que, sendo invertebrada, também não é senciente, mas ainda sujeita ao cativeiro e à servidão para a confecção de tecidos. Portanto, se o critério de consideração moral for a senciência, abelhas e bichos-da-seda ocuparão uma região de deserto ético. Esse ponto, com efeito, é um dos marcadores teóricos de fundo na questão Veganismo versus Vegetarianismo que, aliás, está na ordem do dia, pautando o debate ativista atual.

Para uma Ética da Senciência, como a de Singer, insetos não contam moralmente porque não são capazes de sentir dor ou prazer. Para uma Ética da Subjetividade, como a de Regan, eles também não contam porque não há qualquer sujeito das experiências de uma vida psicológica. Não há "ninguém lá" para viver a vida de um gafanhoto ou de uma borboleta. Tomemos o grupo que abriga cerca de 80% de todos os animais sobre a face da Terra, o filo dos artrópodes, do qual fazem parte os insetos. De um modo geral, a Ética Animal, como a defendida por Singer, Regan e outros filósofos animalistas, considera que insetos não são "sujeitos de um ponto de vista", não podem experienciar sofrimento ou contentamento, satisfação ou frustração, não se preocupam com o que lhes acontece, não têm a sua própria perspectiva mental. De acordo com os filósofos animalistas, esses animais só merecem atenção instrumental na medida em que, participando na comunidade biótica, teia ecológica ou pirâmide trófica, podem afetar o bem dos animais "superiores", humanos e não-humanos. Ou seja, os animais "inferiores", como mosquitos e moscas, só importarão moralmente se sua sobrevivência e bem-estar comprometerem os interesses dos animais que importam - diretamente - no sentido moral, os sencientes. O ponto levantado neste ensaio é: uma Ética Animal propriamente dita não deveria defender o estatuto, o status, a consideração ou a importância moral direta de todo e de qualquer animal, isto é, não-derivada, não-instrumental e independente da sua contribuição para o bem de outros animais humanos e não-humanos?

Entre os filósofos animalistas, consideremos inicialmente aquele que é o fundador das preocupações éticas contemporâneas quanto ao trato dos animais, Peter Singer. Segundo o australiano, todos os animais

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vertebrados são capazes de sentir, preferem experienciar satisfação à frustração, preferem não sofrer ou reduzir seu bem-estar. A senciência, de acordo com Singer, "[...] é a única fronteira defensável de consideração dos interesses alheios"7, conseqüentemente, "se um ser não é capaz de sofrer, ou de sentir prazer, nada há para ser levado em conta."8E quanto ao não-senciente? Na primeira edição do seu livro Ética Prática9, na seção Vida não-consciente, lê-se:

Suponhamos que apliquemos o teste de se imaginar vivendo a vida de uma erva daninha que estou prestes a arrancar do meu jardim. Eu, então, tenho que me imaginar vivendo uma vida sem nenhuma experiência consciente. Tal vida é um completo vazio [...]. Esse teste sugere, portanto, que a vida de um ser que não tem experiências conscientes é uma vida de nenhum valor intrínseco.10Ora, a passagem anterior é removida na segunda edição da obra e substituída pelo seguinte comentário: "Se existe, ou não, algo de errado em se tirar a vida de seres não-conscientes - árvores e plantas, por exemplo -, é o que veremos no Capítulo 10, que vai abordar a ética ambiental."11As considerações morais sobre a vida não-senciente aparecem, então, no Capítulo O Meio Ambiente dessa edição, onde lemos:

A pergunta "como dever ser o afogamento de um gambá?" pelo menos faz sentido, ainda que, para nós, seja impossível dar uma resposta mais precisa do que "deve ser horrível". [...] Mas não há nada que corresponda ao que deve ser uma árvore morrendo porque as suas raízes foram inundadas.12Cabe notar que, em todo o restante desse capítulo do Ética Prática, Singer trata apenas de vegetais quando se refere à vida não-senciente.

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Quanto aos animais não-sencientes, o autor simplesmente não menciona o status moral do maior e o mais diversificado grupo de animais existente na Terra. O leitor deduz da leitura da obra que arrancar uma folha de grama é moralmente equivalente a esmagar uma formiga, arrancar as asas de uma borboleta ou decapitar uma abelha. Tomemos o caso do besouro amazônico, Titanus giganteus, que tem o tamanho de um rato (atingindo 22 cm de comprimento), é voador e, como os outros insetos, tem sangue (incolor, a hemolinfa), olhos e gânglios cerebrais vinculados a uma cadeia nervosa ventral. Apesar da estatura desse fantástico aparato biológico, essa criatura é, em termos morais, equiparável a uma pedra, conforme a Ética Animal singeriana, por tratar-se de um mero invertebrado, um não-senciente.13A esse respeito, o filósofo Homes Rolston III critica Singer por agrupar tudo que for não-senciente em uma mesma categoria moral, seja uma rocha, uma planta ou uma ostra: "Na dicotomia de Singer, parece haver apenas dois níveis metafísicos: experienciadores [experiencers] conscientes e processos meramente físicos. [...] Podemos ser mais discriminatórios?"14, descarrega Rolston.

A posição de Tom Regan, o expoente da concepção dos Direitos Animais, parece ainda mais excludente se comparada com a de Singer. O filósofo norte-americano apresentou sua teoria, em toda a extensão, na obra The Case for Animal Rights, a qual toma como sujeito de consideração moral (i.e.,"o sujeito-de-uma-vida") o indivíduo mamífero adulto normal (de um ano de idade no mínimo). Isso significa que, quando Regan articulou a defesa dos Direitos Animais, ele se referia, de fato, aos Direitos dos Mamíferos somente. Ora, a classe Mammalia é constituída por cerca de 4.600 espécies apenas15, ou seja, corresponde a ínfimos 0,3% de todas as espécies de animais conhecidas sobre a Terra.

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A restrição apresentada tanto por Regan, Singer e outros animalistas seria equivalente à defesa de "direitos humanos", por parte dos filósofos do direito, na qual eles se referissem, de fato, apenas aos "direitos dos humanos com curso superior", uma denotação que causaria espanto evidentemente. É verdade que Regan, todavia, mostrou certa prudência quanto à sua delimitação do universo moral. Afirma o autor que o critério do sujeito-de-uma-vida é apenas uma condição suficiente para a considerabilidade moral, admitindo que sua abordagem é incompleta quanto ao valor da criatura meramente senciente.16Em uma obra posterior, ele declara que a extensão do seu critério para outras formas de vida é uma questão "aberta a ser por outros...

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