Ética no relacionamento homem / animal

AutorÁlvaro Ângelo Salles
CargoGraduado em Medicina (FMI-MG) e Letras (UFMG)
Páginas181-199

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1. Introdução

A preocupação de conscientizar o homem de que ele é afetado pelo tipo de relacionamento que escolhe ter com os animais data de época muito antiga. Entre três a cinco mil anos atrás, livros como o Bhagavad Gita, o Manusmriti, o Dharmapada, o Rig Veda e o Vridha Chaanakya, entre tantos outros, já falavam sobre o assunto. Numa série que congrega os chamados livros sagrados do Oriente, por exemplo, vamos encontrar um volume de leis escrito em 1500 a.C., denominado Manusmriti, ou Manava Dharma-Sastra - The Laws of Manu (MANU, 1998). Naquele antigo código, pode-se encontrar a proibição do uso da carne, sendo os motivos para tal proibição apresentados com expressões duras que falam da crueldade de se acorrentar e assassinar de maneira violenta seres vivos: "Tendo refletido sobre a origem (repulsiva) da carne

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e sobre a (crueldade de) acorrentar e matar de modo violento seres em corpos físicos, que [o homem] se abstenha totalmente de comer carne." (MANU, 1998, p. 69, 5:49, tradução nossa).

Já no início do século XIX, quando a jovem inglesa Anna Kingsford foi para a Escola de Medicina de Paris, visto que em seu país as mulheres não eram aceitas no curso de Medicina, seu objetivo estava definido: ela queria provar que a dieta vegetariana era mais adequada ao homem do que a dieta com carne. Mas, Kingsford (1881) foi mais além: falou no respeito à vida dos animais, fez campanhas contra a vivissecção e, pioneira na época, apresentou o vegetarianismo como a dieta que, ecologicamente, é a mais correta para o nosso planeta

Na época de Kingsford, com a revolução industrial já iniciada e tomando um fôlego maior a partir de 1880, os efeitos da industrialização já se faziam sentir no relacionamento do homem-patrão com o homemempregado e na perda de valores éticos. Vivia-se uma passagem do sistema econômico mercantilista para o sistema capitalista e de uma era agrária para uma era industrial. O proletariado urbano, que vivia em condições miseráveis, com salários irrisórios, extensas jornadas de trabalho e explorado como mão-de-obra barata, passava a ser visto pela burguesia como objeto gerador de lucro. Essa situação, por analogia e reflexo, afetou também o relacionamento entre o homem e o animal, pois, mais do que apenas um conjunto de inovações técnicas, maquinaria e novos procedimentos de produção, a Revolução Industrial representou um marco de alterações estruturais em todos os campos da sociedade. Assim, o animal passou a ser, explicitamente, uma propriedade, um ser-objeto destinado a servir ao homem.

Tal postura na relação homem/animal encontra bases religiosas e filosóficas mais antigas em que se apoiar. No século XIII, por exemplo, Aquino (2002) já dizia que o animal era um ser inferior e que poderia ser usado de acordo com as conveniências do homem. Um outro exemplo, mais de um século antes da Revolução Industrial, é o de Descartes (2003), que descreve os animais como seres sem razão ou espírito, não susceptíveis à dor ou a emoções. Tais idéias, que por longo tempo reforçaram a supremacia do homem sobre o animal, encontram, então, nas novas perspectivas advindas da Revolução Industrial, o campo

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ideal onde atuarão como legitimadoras de quaisquer ações que o homem possa praticar em relação ao reino animal.

As diversas influências - passando pelas teorias defendidas por Aquino e Descartes, pela introdução da máquina como uma extensão do trabalho e da capacidade do homem e, com o continuar do tempo, pelo avanço tecnológico - vêm favorecer a idéia de que o reino humano tem poderes acima de quaisquer outros reinos da natureza. Inevitavelmente, porém, geram conseqüências profundas para o próprio homem. Schweitzer (1972), detentor do Prêmio Nobel da Paz de 1952, defende que, em contrapartida a essa transformação que cria um homem com super-poderes, cria-se, e na mesma proporção, um homem menos humano: "[...] estamo-nos tornando desumanos na mesma proporção em que nos tornamos super-homens." (tradução nossa).E comenta sobre os perigos, maiores do que as vantagens, da tecnologia quando falta ao homem o desenvolvimento da razão voltada para o bem:

Entretanto, o super-homem possui um defeito fatal.

Ele não conseguiu atingir um nível de razão de super-homem que se equiparasse à sua força de super-homem. Ele necessita dessa razão para colocar seus amplos poderes exclusivamente ao serviço de objetivos úteis, e não de fins destrutivos e assassinos. Por falta dessa razão, as conquistas da ciência e da tecnologia tornam-se, para ele, mais um perigo mortal do que uma bênção. (SCHWEITZER, 1972, p. 5, tradução nossa).

A pertinência da observação de Schweitzer não é difícil de ser detectada na sociedade neoliberal contemporânea. Faltando-lhe um desenvolvimento harmonioso dos aspectos ético e moral em paralelo ao dos aspectos técnicos, o homem justifica, pelos interesses econômicos, seu poder de domínio e destruição, tanto em relação aos outros homens como em relação à natureza e, particularmente, em relação aos animais, já que esses encontram-se subjugados a ele. Fere, então, princípios perenes de liberdade, responsabilidade, proteção e do cuidado.

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2. O animal eticamente considerado

Através da História, cientistas e filósofos de mentes consideradas brilhantes, deixaram registrados pensamentos que expressam sua sensibilidade em relação ao tratamento cruel dado aos animais e à necessidade de proteção e de respeito aos direitos com relação a eles.

Pode-se começar, por exemplo, por Darwin, um notável cientista cujas idéias romperam com a noção do homem como um ser feito e acabado por Deus, desconectado da natureza e, ainda, diferente dos animais e a eles superior. Defende Darwin (2004), em The descent of man, and selection in relation to sex, que existem mais semelhanças do que diferenças entre homens e animais, não só quanto à sua anatomia e fisiologia, como também em relação a seus aspectos comportamentais perante situações prazerosas ou estressantes da vida. Darwin é taxativo, por exemplo, quanto à semelhança de faculdades mentais entre o homem e os animais. Sobre os animais de grande porte, esclarece seu objetivo no livro: "Meu objetivo [...] é mostrar que não há diferença fundamental entre o homem os mamíferos superiores no que se refere às faculdades mentais." (DARWIN, 2004, p. 86, tradução nossa), propondo-se, pouco depois, a falar dos animais de pequeno porte "mostrando que suas faculdades mentais são muito maiores do que se poderia esperar." (DARWIN, 2004, p. 86, tradução nossa). Os animais, ainda segundo Darwin, "manifestamente sentem prazer e dor, contentamento e tristeza" (2004, p. 89, tradução (nossa), comentando a seguir sobre a evidente felicidade que pode ser observada em cãezinhos, gatinhos e cordeirinhos ao brincarem em grupo, "como nossos próprios filhos" (2004, p. 89, tradução nossa). Ao observar que os pequenos animais são presas das mesmas emoções que os humanos, Darwin (2004, p. 90) descreve reações que perfeitamente se aplicam ao cenário de uma vaca a caminho do abate: "O pavor age sobre eles da mesma maneira que sobre nós, fazendo os músculos tremerem, o coração palpitar, os esfíncteres relaxaremse e o pêlo arrepiar." (tradução nossa). E complementa dizendo que a suspeita, mãe do medo, é característica evidente da maioria dos animais selvagens; que coragem e timidez são qualidades que existem em graus

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variáveis nos cachorros tanto quanto nos humanos; que alguns cachorros e cavalos são ranzinzas, outros bem-humorados; que alguns animais, como muita gente já testemunhou, podem agir furiosamente; que o amor de um cão por seu dono é notório; que não há dúvidas de que o princípio da ação seja o mesmo em se tratando da afeição maternal entre mulheres e fêmeas de animais, como no caso da macacas que livremente adotam macaquinhos órfãos. A maioria das emoções mais complexas é comum aos animais maiores e aos homens, também afirma Darwin (2004). E fala do ciúme do cachorro e dos macacos em relação ao afeto de seu dono, concluindo: "Isso mostra que os animais não só amam, mas têm o desejo de ser amados." (2004, p. 92, tradução nossa).

Partindo então das emoções para faculdades mais intelectuais, que considera como bases para o desenvolvimento de poderes mentais mais elevados, Darwin (2004) afirma que os animais manifestamente gostam de receber estímulos e sofrem em condições de tédio. "Todos os animais...

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