Questão Urbana e Exclusão Social: O que mudou nas favelas de Praia da Rosa e Sapucaia uma década após o Programa Bairrinho?

AutorMaria de Fatima Cabral Marques Gomes; Lenise Lima Fernandes
CargoUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Páginas45-55

Page 46

1 Introdução

Este artigo apresenta os resultados da primeira etapa do estudo conduzido nas favelas Praia da Rosa e Sapucaia na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, com o objetivo de avaliar as mudanças verificadas a partir da implementação do Programa Bairrinho nessas áreas, entre 1996 e 1998, pela Prefeitura Municipal da Cidade.

Tal proposta se insere no contexto da pesquisa “Política Urbana e Globalização da Economia” financiada pelo CNPq e articula-se com a pesquisa comparativa Social Exclusion, Territories and Urban Policie: a comparison between India and Brazil” (SETUP) coordenada pela EHESS/Centre d’Etudes de l’Inde et de l’Asie du Sud, em Paris. No Brasil, os estudos estão sendo realizados pelo Instituto de Estudos Avançados (USP), em São Paulo, e pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão Favela e Cidadania (FACI/UFRJ), no Rio de Janeiro.

Nesse contexto, a vertente desenvolvida pelo FACI corresponde a estudo teórico-empírico e visa a analisar em que medida as políticas destinadas às favelas têm alterado as condições de inclusão/exclusão social dos moradores desses locais. Para alcançarmos os objetivos a que nos propomos dividimos a pesquisa em duas etapas. A primeira – de natureza mais qualitativa – foi cumprida em 2008 e, a partir de entrevistas semi-estruturadas, considerou as distintas perspectivas dos diferentes atores sociais, tanto externos como internos às favelas, envolvidos no planejamento e na execução dessa experiência. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que não nos afastamos das análises mais amplas sobre as cidades e suas relações na dinâmica da globalização, procuramos nessa fase da pesquisa resgatar, de forma articulada, a relevância desses atores quanto aos seus distintos arranjos, ao modo concepção e de uso dos serviços e equipamentos, e à sua participação na esfera política ou associativa. A etapa complementar do estudo, prevista para 2009, tem caráter quantitativo e visa à atualização comparativa do banco de dados construído a partir do censo anteriormente realizado que precedeu a urbanização das duas favelas em 1996. Trata-se, assim, de um follow-up da intervenção pública nessas áreas.

Conforme indicam os títulos, tanto da pesquisa SETUP quanto do estudo que aqui se apresenta, em particular, a compreensão dos processos articulados na configuração do fenômeno de inclusão/exclusão urbana coloca-se como orientação central das investigações. Nesse sentido, entendemos ser necessário explicitar o quadro teórico que nos serve de base para a leitura dos dados empíricos e que articula dois aspectos que consideramos centrais1.

O primeiro refere-se à relevância das dimensões econômica, simbólica e histórica tomadas como determinantes na conformação daquele fenômeno na dinâmica do capitalismo. Afinal, elas agregam densidade a ele em decorrência do impacto simultâneo das múltiplas determinações que atravessam a variada gama de situações de exclusão – e de inclusão, como seu contraponto – e que compõem a totalidade de sua expressão. Dessa forma, partimos do suposto de que esse não se trata de um fenômeno de conformação e materialização homogêneas. O segundo aspecto, decorrente do anterior, refere-se ao entendimento de que a configuração desse fenômeno só pode ser apreendida mediante a consideração de distintos processos que interagem de modo articulado, dando-lhe concretude. Assim sendo, o recorte analítico que privilegiamos para avaliar a experiência mencionada teve como preocupação não perder de vista o amplo contexto das intervenções em favelas, especialmente a partir dos anos de 1990, quando a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro reformulou a política direcionada para essas áreas.

Além disso, partimos de uma visão do planejamento urbano que, buscando apreendê-lo por meio de seu caráter histórico e holístico, contrapõe-se à fragmentação da visão pósmoderna. Apesar de reconhecer a face excludente desse instrumento de gestão, procuramos entender seus destinatários como sujeitos, e não como objeto, destacando e valorizando a participação da população de diferentes maneiras: quer resistindo às propostas que não lhe são convenientes, quer se apropriando daquilo que lhe parecer mais adequado.

Optamos, então, por organizar as reflexões apresentadas neste artigo em duas partes. A primeira apresenta nossas referências teóricas para pensar a questão da exclusão/inclusão no debate brasileiro assim como o Programa Bairrinho, implementado na experiência em foco, no contexto das intervenções urbanas cariocas. Na segunda parte tratamos das práticas e dos discursos identificados no desdobramento das intervenções desse Programa em Praia da Rosa e Sapucaia. Finalmente, tecemos algumas conclusões preliminares com base neste estudo.

2 Inclusão e exclusão: conceito, expressões empíricas e proposta de enfrentamento por meio do programa bairrinho na cidade do Rio de Janeiro
2. 1 O debate sobre o conceito de exclusão e inclusão na literatura brasileira

A despeito da reconhecida polissemia que perpassa a utilização do termo exclusão social, a grande maioria dos autores resgatados nesse debate o associa a problemas produzidos no contexto das sociedades capitalistas, decorrentes do acirramento histórico das desigualdades sociais. Conforme ressaltam Guimarães e outros (2002), mesmo entre aqueles que analisam sociedades caracterizadas por situarem-se em melhor posição no cenário econômico mundial, as manifestaçõesPage 47 empíricas em busca do refinamento desse conceito remetem a situações de ausência de proteção social, de ausência de trabalho remunerado e/ou de recursos, nesse caso configurando condições de pobreza. Há abordagens que trazem à luz a relevância da dimensão sócio-cultural desse fenômeno (XIBERRAS, 1993; ELIAS; SCOTSON, 2000) ressaltada mediante a análise de distintos processos que ocorrem na vida social. Identificamos, ainda, outros que, também reconhecendo a natureza diferenciada desses processos, alertam que esses, ao interagirem com os demais indicados, podem produzir situações de ruptura da relação entre indivíduo e sociedade. (WACQUANT, 2000) De qualquer modo, o que se pode observar é que a diversidade semântica do termo não tem sido obstáculo ao debate. Esse, admitindo a priori tal característica como parte do processo de discussão acadêmica, tem avançado e indicado a possibilidade de consenso sobre algumas idéias, tais como as do dinamismo e da multidimensionalidade como características inerentes a situações significativas que expressam o fenômeno.

No Brasil, o debate sobre exclusão ganhou relevância a partir dos anos oitenta quando – no contexto de redemocratização, pós-ditadura militar – diversos sujeitos coletivos conquistaram visibilidade na esfera pública refletindo o fortalecimento político da sociedade civil. Entretanto, já se registrava o uso do termo exclusão em trabalhos publicados na década de setenta (CARDOSO; FALLETO, 1970; OLIVEIRA, F., 2003), no bojo da crítica desses autores à dinâmica do desenvolvimento econômico brasileiro e, portanto, sobre a marginalidade social. A partir do final dessa década tal leitura foi enriquecida pela análise acadêmica de diversos processos sociais no país, tornando-se comum, mais recentemente, a indicação da exclusão como característica estrutural dessa sociedade, conforme destacam Buarque (1991 e 1993), Luciano de Oliveira (1997) e Veras (1999).

Segundo Martins (1997), no âmbito da sociedade capitalista não existe exclusão enquanto condição definitiva ou irreversível, mas contradição, ainda que seja pertinente discutir processos sociais, econômicos e políticos excludentes. Para esse autor, a análise das expressões concretas da exclusão constitui níveis de desumanização. Nesse sentido, o autor considera impertinente a busca do refinamento do conceito de exclusão social ou de sua utilização como categoria analítica porque a vê como: a) um rótulo abstrato que não corresponde, de fato, a qualquer sujeito social; b) uma impressão superficial daqueles que se consideram aderidos ao sistema no plano econômico e de seus valores sociais correspondentes e c) como categoria que ignora a dinamicidade do mundo assim como a relevância das lutas contemporâneas para alteração, inclusive, dos processos de exclusão e de integração. Dessa forma, Martins prefere denominar essas situações como formas degradadas de inclusão. Além disso, ressalta que as análises sobre essas situações deveriam abranger não apenas privações de ordem material, mas também de natureza simbólica e social.

Em função, portanto, da heterogeneidade de aplicação que perpassa a referência a esses termos, priorizamos o tratamento do conceito de exclusão social a partir de suas dimensões, escalas e dos processos de vida a ele relacionados. Essa é também a posição defendida por Oliveira (2003), que chama atenção para o crescente contingente de miseráveis no Brasil constituído, sobretudo, por uma massa de trabalhadores que, não apresentando qualificação correspondente às exigências das novas configurações do mercado de trabalho, sequer consegue manter-se como parte do exército industrial de reserva, perdendo sua relevância na dinâmica produtiva.

A diversidade como expressão das desigualdades sociais geradas pela distribuição de riqueza e renda profundamente desequilibrada estende-se às formas de ocupação e uso da cidade. (GOMES et al, 2006) Embora sua completa reversão seja...

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