O Federalismo e as religiões na Suíça

AutorVincenzo Pacillo
CargoProfessor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Modena, Itália
Páginas120-138

Traduzido por Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira. Graduado pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Brasil; Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH); Editor de Panóptica; Advogado em Vitória/Espírito Santo, Brasil. E-mail: julio.pfhs@gmail.com.

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1 Introdução

A Confederação Helvética, comumente considerada uma democracia sólida e rica, construída a partir da reunião de vários grupos linguísticos e religiosos em nome da liberdade e cooperação, tem se visto num momento de profunda “crise de identidade”. Sua “neutralidade” está inexoravelmente, embora lentamente, perdendo seu significado, e o isolamento político e internacional – que parecia no pós-guerra completo – está se transformando, progressiva e arriscadamente, num tipo de “marginalização1”. Junte-se a isso o crescente desconforto interno provocado pela divisão entre os Cantões em que se fala francês e aqueles em que se fala alemão.

Essa inquietação tem afastado a Suíça parcialmente daquela sua peculiaridade que parecia irreprimível e decisiva de “democracia direta”. Importantes mudanças na situação social e o forte desenvolvimento econômico na Suíça no pós-guerra tornaram explícitas as dúvidas sobre a adequação e eficiência da estrutura e do sistema criados em 1874. Isso tem criado o que se convencionou chamar de o “mal-estar helvético”.

A análise da situação política da Confederação Suíça fez com que, em 1965, Karl Obrecht, membro do Conselho de Estado, e Peter Dürrenmatt, conselheiro nacional, apresentassem propostas em que se solicitava uma revisão da Constituição Federal. No entanto, o projeto constitucional, em decorrência de opções política, só viria a tomar lugar em 1994, quando o Conselho Nacional e o Conselho de Estado decidiram que o processo de revisão poderia ser iniciado de maneira que em 1998, no 150º aniversário do Estado Federal, a Assembleia Federal apresentaria a nova Constituição.

O projeto de Constituição foi publicado em 1995 e levado a um grande debate popular. Em 1996, o Conselho Federal informou que o projeto definitivo fora submetido ao Parlamento, de modo que viria a ser aprovado, por um referendo, em 18 de abril de 1999.

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Assim, a Suíça – nascida como uma livre agregação de povos de diferentes línguas, tradições, culturas e religiões que se uniram através de um pacto de assistência mútua, cooperação e desenvolvimento, com a intenção de garantir as liberdades fundamentais individuais e de respeitar as identidades territoriais e culturais2 – viu-se às voltas com uma nova Constituição Federal que tentou assegurar aos Cantões autonomia, garantindo a cada comunidade territorial a liberdade para regular as relações entre Igreja e poder político preservando da melhor maneira tanto as suas próprias tradições e peculiaridades, quanto sua própria situação social, desde que respeitados os elementos essenciais à Confederação3. Neste sentido, a relação entre os grupos religiosos e as comunidades territoriais sofreu um impacto institucional e também cultural.

É com base nestas considerações que o presente trabalho investiga os aspectos essenciais da relação entre o Estado e a religião na Confederação Helvética, a partir da relação entre pluralismo e federalismo.

2 Pluralismo e tradição na Suíça

A Constituição de 1999 é o resultado da união de três elementos fundamentais à identidade suíça: democracia pluralista, federalismo e tradição religiosa.

O pluralismo, para a Confederação Suíça, é ao mesmo tempo uma questão de fato, uma orientação política e um conceito jurídico-constitucional. Trata-se de questão de fato porque a Suíça é um Estado soberano formado por quatro culturas diferentes, em que a proporcionalidade deve ser almejada tanto para a segurança da cultura ePage 123 sociedade locais, quanto para a máxima reconciliação dos cidadãos em relação às várias tradições4. É uma orientação política porque é prevista na Constituição a partir de uma perspectiva ideológica necessária para operacionalizar um modelo formado por vários poderes e autoridades, às vezes conflitantes, cuja função é limitar, controlar e enfrentar o Estado. Por fim, é um conceito jurídico-constitucional porque estabelece uma garantia sobre um pluralismo dual.

O pluralismo é dual porque pode ser visto de duas perspectivas diferentes: um pluralismo “endo-sistêmico” e um pluralismo “exo-sistêmico”.

O pluralismo endo-sistêmico tem a ver com a tradição, que, desenvolve-se, na Suíça, em duas dimensões. A primeira, chamada de horizontal, pode ser vista nas típicas vilas suíças, situadas, geralmente, em vales e em montanhas isoladas. Esses povos têm ciúmes de sua identidade arquitetônica, social, religiosa e institucional, embora, em geral, ao mesmo tempo cooperem economicamente e politicamente com os outros povos localizados na mesma área5. A segunda dimensão, vertical, envolve todos os povos da Confederação e resulta numa composição dialética. Ao fim, há uma síntese de todas as diferenças na tradição histórica, institucional e social suíça.

Já o pluralismo exo-sistêmico se refere às contínuas osmoses jurídicas existentes entre o direito suíço e o direito internacional no que tange à proteção dos direitos fundamentais. Os posicionamentos particulares assumidos a partir da Convenção de Roma sobre Direitos Humanos no sistema jurídico suíço permitem ao Tribunal Federal e aos demais juízos julgar sobre a legitimidade constitucional do direito cantonal, e força os magistrados suíços a ter em conta as decisões do Tribunal de EstrasburgoPage 124 como sua fonte privilegiada para a interpretação da legislação federal sobre direitos humanos6.

3 Federalismo e religião na Suíça

Uma análise sobre o peculiar federalismo suíço deve começar com as premissas elaboradas acerca da relação entre pluralismo e tradição na Suíça.

O federalismo possui um papel central no sistema institucional suíço, antes de tudo porque a Suíça é uma “nação voluntária”. A própria doutrina constitucional suíça sublinha que o federalismo tem por função fundamental governar a complexidade cultural, linguística e religiosa suíça. Além disso, não se pode ignorar que cada comunidade local tem uma longa história de autodeterminação e de democracia direta. Essa é a principal razão pela qual o federalismo tem sido reconhecido como a única maneira de obter uma coexistência pacífica entre esses povos.

Em outros termos, o federalismo não freou as tradições locais jurídicas e políticas. As comunidades locais mantiveram tanto sua identidade cultural quanto a sua independência política, desenvolvendo sua natureza institucional e jurídica livremente. De qualquer forma, o federalismo não é capaz de aniquilar qualquer conflito potencial. Na verdade, na história da Suíça, há vários conflitos decorrentes de questões religiosas e políticas.

Num mundo de processos globalizantes e identidades locais impingidas, a Suíça permanece como um caso claramente vitorioso de nação em que não há um idioma comum, uma religião comum, uma cultura comum.

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A nação suíça surgiu de uma “cultura política” comum resultante de um acordo federalista focado na cooperação e na democracia. Tanto é que o termo “federalismo cultural” é o mais adequado para o federalismo suíço, baseado tanto na igual dignidade das culturas e religiões, quanto na solidariedade entre os Cantões as a comunidades locais7. A Confederação Suíça deve garantir, assim, um federalismo substantivo8.

O principal problema do federalismo suíço é enfrentar as mudanças ocorridas na sociedade suíça. A Confederação Suíça vive, atualmente, em uma era crítica. Não é fácil, por exemplo, lidar com a...

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