O Federalismo no Brasil e nos Estados Unidos: Um estudo comparado numa abordagem histórica

AutorMarcelo Simões dos Reis
Páginas226-260

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Introdução

O presente estudo tem como objetivo traçar um esquema comparativo dos sistemas federalistas dos Estados Unidos e do Brasil. Para atingir um resultado satisfatório, a abordagem será predominantemente histórica, sem perder contato com os conceitos jurídicos que pertencem a qualquer estudo constitucional. De fato, os movimentos sociais percebidos nesses diferentes países ao longo da história, com seus processos políticos divergentes que moldaram as respectivas constituições, são de grande importância para sublinhar as diferenças e semelhanças encontradas nos dois sistemas.

Não é só relevante focar, como alguém poderia imaginar, nas atividades revolucionárias dos séculos XVIII e XIX, que encerraram a maior parte do domínio colonial no continente americano, mas também considerar o curso histórico anterior que afetou ambos os países. É claro que os medos e suspeitas, especialmente no caso dos Estados Unidos, levantados contra autoridades governamentais das metrópoles serão tomadas em conta. No entanto, situações subsequentes às declarações de independência deverão também ser examinadas. Por exemplo, a expansão para o Oeste, no caso dos Estados Unidos, impôs um desafio ao sistema federal, baseado originalmente na relação entre as treze colônias1.

No caso brasileiro, “medos e suspeitas” não necessariamente levaram a um governo federal como uma conseqüência imediata do controverso Grito do Ipiranga2. Apenas depois de 70 anos da independência, o Brasil tornou-se, então, uma república federativa. Isto não significa, todavia, que não há conexão entre o processo de descolonização e a adoção de uma federação tardia. Na verdade, os movimentos nativos pró-independência que precederam 1822, posteriormente adquirindo orientação republicana, exercem algum papel na compreensão do nascimento do federalismo brasileiro. Entretanto, não se pode esquecerPage 228 da influência estrangeira da própria constituição norte-americana na redação da primeira constituição republicana do Brasil, que inaugurou o período federalista.

Apesar da importância do período pós-independência, o trabalho também compreenderá uma visão detalhada das raízes coloniais. Como observado no período entre 1776, com a independência americana, e 1824, quando Bolívar e Sucre derrotaram os monarquistas no Peru3, a luta contra impérios coloniais e seu resultado, em diversos graus, foram influenciados pelo legado deixado pela estrutura política pré-existente.

É de se ressaltar, por exemplo, que o Brasil foi dividido em dois vice-reinados entre 1763 e 17744. A continuidade desse modelo de administração poderia contribuir para a criação de dois Estados separados, talvez entrelaçados por uma frágil confederação. De fato, o uso de vice-reinados na América Hispânica influenciou em certa medida na diversidade dos atuais Estados soberanos, embora o sentimento bolivariano de unificação existisse5. No caso do Brasil, contudo, como há de ser visto, essa não era a maneira tradicional do método português de centralização na administração colonial.

1 Ocupação colonial
1. 1 Estabelecimento das Treze Colônias

Foi no século XVII que Europeus, principalmente os de origem inglesa, começaram a colonizar a banda oriental da América do Norte. Embora a maioria dos novos habitantes chegassem ao Novo Mundo de forma a escapar da opressão política e religiosa exercida por parte dos governos ou para aliviar uma situação econômica desesperadora6, a autoridade para ocupar as terras se originavam de mandatos concedidos pelos reis dos países natais, na sua maioria os próprios opressores. Nesta perspectiva, a emigração tinha um sentido dePage 229 estabelecimento definitivo, na busca da edificação de um novo domicílio. A exploração dos recursos naturais era não mais que o instrumento para se alcançar um objetivo, a solidificação das primeiras colônias suportadas por um mínimo de desenvolvimento econômico. A preocupação em manter uma certa atividade lucrativa, então, é observada desde o princípio da vida colonial, principalmente com a produção de tabaco na Virgina7.

Uma característica importante desta frágil, mas florescente, economia era a ausência de um sistema efetivo de arrecadação de tributos. Às novas colônias faltava um governo que se encarregasse dessa tarefa e as cortes monárquicas da Europa não estavam apenas afastadas demais fisicamente, mas também desinteressadas. Contudo, alguns traços de autoridade oficial nas treze colônias britânicas começaram a aparecer sem a intervenção tanto da monarquia como da república que prevaleceram na Inglaterra do século XVII. Vários exemplos podem ilustrar tal cenário. Por volta do ano de 1620, um grupo de puritanos, que chegaram ao lugar que se conhece hoje como Massachussets, forjaram um pacto8, o Mayflower Compact, documento que representava uma base de autoridade legitimada à parte dos governos europeus. Logo após, outros puritanos chegaram à região levando um título, que se referia à colônia de Massachussets Bay, concedido pelo rei Charles I e que investia os recém-chegados de poderes para se estabelecer no lugar. Por meio de uma corte geral, formada por membros da Igreja, eles implementaram um governo efetivo e isolado da influência monárquica. De fato, “the authority for the colony’s government resided in Massachussets, not in England”.

Este padrão de relacionamento entre colonizadores e os governos britânicos foi mantido nas colônias de New Hampshire, Maine e Rhode Island, esta última formada pela dissidência da corte geral de Massachussets. O advento das novas colônias trouxe uma importante característica de sistemas políticos modernos, a separação entre igreja e governo.

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Em Maryland, em obediência ao mesmo padrão verificado acima, os colonos eram livres para se reunir e legislar sobre seus próprios problemas. Em verdade, mesmo a carta real que transferia autoridade à família Calvert afirmava que os detentores do título não poderiam legislar sem o consentimento dos proprietários de terras da colônia9. Em outras palavras, mesmo as leis do reino não pareciam ser aplicáveis, a não ser aquelas editadas com o consentimento dos proprietários estabelecidos na colônia.

Toda essa independência política com relação à metrópole emanava das grandes distâncias que aumentavam os custos da intervenção direta a níveis que inibiam a ação do governo britânico. Em adição a esse fator, a Inglaterra, durante o século em que a colonização iniciava na América do Norte, estava cercada de confrontações internas de ordem religiosa e política. Levando-se em conta essa conjuntura, dispender recursos com colônias em fase embrionária no extremo ocidente do Oceano Atlântico representava uma tarefa sem sentido prático. A falta de preocupação por parte da metrópole não renderia apenas a ausência de discussão sobre assuntos internos das colônias, mas também na deficiência da defesa contra outras nações européias. Isso resultou em alguma atenção dos colonos em relação à necessidade de organizar seus sistemas de defesa por si próprios10. Logo, é de se notar que a negligência britânica, em grande medida, ajudou a solidificar a independência política das treze colônias tanto no âmbito doméstico como no internacional.

1. 2 A Administração Portuguesa

A colonização no Brasil iniciou-se quase um século mais cedo que na América do Norte. Embora os portugueses tivessem chegado em 1500, foi apenas trinta anos depois que a ocupação efetiva da terra começou. Ao contrário do caso da América Hispânica, a aparente falta de recursos naturais valiosos como ouro e prata, levaram à indiferençaPage 231 temporária dos conquistadores ibéricos11. Com a exceção do pau-brasil, do qual se extraía uma tintura avermelhada própria para o tingimento de tecidos, nada no território era de interesse econômico imediato.

Nessa perspectiva, o mesmo cenário econômico desfavorável foi encontrado na América do Norte, no entanto, os objetivos das colônias estabelecidas ali eram de natureza diversa. Como os britânicos e outros europeus fugiam do Velho Continente com vistas a escapar da opressão política e religiosa, as aventuras dos colonos serviam como válvula de escape para os conflitos civis que permeavam as monarquias européias. Naturalmente, a autoridade real, ao mesmo tempo que tentava mitigar a pressão do confronto, esperava estender sua influência com a conquista de novos territórios. Entretanto, essa tarefa foi raramente implementada de fato como visto acima.

Na ausência de maiores conflitos civis, os Portugueses não se sentiram compelidos a deixar sua terra natal e arriscar suas vidas num empreendimento do outro lado do Atlântico sem expectativas de larga margem de lucratividade. O Brasil havia se tornado um mero destino para criminosos punidos com a pena de banimento e para comerciantes mal sucedidos12. Além disso, dois documentos, a Bula Intercoetera e o Tratado de Tordesilhas, asseguravam a Portugal e Espanha, pelo menos do ponto de vista jurídico, a divisão do hemisfério ocidental entre eles13. Apesar de tais textos terem se originado de um frágil sistema jurídico internacional, as potências ibéricas foram beneficiadas por algumas décadas após a elaboração dos normativos, o que diminuía ainda mais a preocupação dos lusitanos em ocupar as terras ocidentais recém-descobertas.

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Contudo, logo outras potências marítimas estavam desafiando os direitos conferidos pela Bula...

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