Noções fundamentais sobre o dano existencial

AutorHidemberg Alves da Frota
CargoAgente Técnico-Jurídico do Ministério Público do Estado do Amazonas
Páginas76-81

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Introdução

O presente estudo tem a finalidade de propiciar à comunidade jurídica aportes teóricos basilares acerca do dano existencial, a fim de franquear aos profissionais do direito elementos precípuos, por meio dos quais possam compre-ender a essência de tal construção jurídica e, ao mesmo tempo, obtenham subsídios sobre quais seriam as circunstâncias em que o referido constructo se revelaria, eventualmente, aplicável, ao contrastarem o conceito de dano existencial e suas espécies com circunstâncias ilustrativas de sua ocorrência.

1. Conceito

O dano existencial constitui espécie de dano imaterial ou não material que acarreta à vítima, de modo parcial ou total, a impossibilidade de executar, dar prosseguimento ou reconstruir o seu projeto de vida (na dimensão familiar, afetivo-sexual, intelectual, artística, científica, desportiva, educacional ou profissional, dentre outras) e a dificuldade de retomar sua vida de relação1 (de âmbito público ou privado, sobretudo na seara da convivência familiar, profissional ou social).

2. Os danos ao projeto de vida e à vida de relações

O dano existencial se subdivide no dano ao projeto de vida e no dano à vida de relações.

Em outras palavras, o dano existencial se alicerça em dois eixos:

(a) De um lado, na ofensa ao projeto de vida, por meio do qual o indivíduo se volta à própria autorrealização2 integral, ao direcionar sua liberdade de escolha para proporcionar concretude, no contexto espaço-temporal em que se insere, às metas, objetivos e ideias que dão sentido à sua existência.

"Por dano existencial (também chamado de dano ao projeto de vida ou prejudice d’agrément - perda da graça, do sentido) compreende-se toda lesão que compromete a liberdade de escolha e frustra o projeto de vida que a pessoa elaborou para sua realização como ser humano. Diz-se existencial exatamente porque o impacto gerado pelo dano provoca um vazio existencial na pessoa que perda a fonte de gratificação vital.

Por projeto de vida entenda-se o destino escolhido pela pessoa, o que decidiu fazer com a sua vida. O ser humano, por natureza, busca sempre extrair o máximo das suas potencialidades. Por isso, as pessoas permanentemente projetam o futuro e realizam escolhas no sentido de conduzir sua existência à realização do projeto de vida. O fato injusto que frustra esse destino (impede a sua plena realização) e obriga a pessoa a resignarse com o seu futuro é chamado de dano existencial3.

O dano ao projeto de vida referese às alterações de caráter não pecuniária nas condições de existência, no curso normal da vida da vítima e de sua família. Representa o reconhecimento de que as violações de direitos humanos muitas vezes impedem a vítima de desenvolver suas aspirações e vocações, provocando uma série de frustrações dificilmente superadas com o decorrer do tempo. O dano ao projeto de vida atinge as expectativas de desenvolvimento pessoal, profissional e familiar da vítima, incidindo sobre suas liber-dade de escolher o seu próprio destino. Constitui, portanto, uma ameaça ao sentido que a pessoa atribui à existência, ao sentido espiritual da vida4. (grifo da autora)

(...) Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir. Precisamente por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo "projeto" encerra em si toda uma dimensão temporal. O conceito de projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atento à ideia de realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder às opções que lhe parecem acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida re-vela, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. (...) É por isso que a brusca ruptura dessa busca, por fatores alheios causados pelo homem (como a violência, a injustiça, a discriminação), que alteram e destroem, de forma injusta e arbitrária, o projeto de vida de uma pessoa, reveste-se de particular gravidade, - e o Direito não pode se quedar indiferente a isso. A vida - ao menos a que conhecemos - é uma só, e tem um limite temporal, e a destruição do projeto de vida acarreta um dano quase sempre verdadeiramente irreparável, ou uma vez ou outra de difícil reparação."5(b) E, de outra banda, no prejuízo à vida de relação6, a qual diz respeito ao conjunto de relações interpessoais, nos mais diversos ambientes e contextos, que permite ao ser humano estabelecer a sua história vivencial e se desenvolver de forma ampla e saudável, ao comungar com seus pares a experiência humana, compartilhando pen-

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samentos, sentimentos, emoções, hábitos, reflexões, aspirações, atividades e afinidades, e crescendo, por meio do contato contínuo (processo de diálogo e de dialética) em torno da diversidade de ideologias, opiniões, mentalidades, comportamentos, culturas e valores ínsita à humanidade.

"O dano existencial representa, em medida mais ou menos relevante, uma alteração substancial nas relações familiares, sociais, culturais, afetivas, etc. Abrange todo acontecimento que incide, negativamente, sobre o complexo de afazeres da pessoa, sendo suscetível de repercutir-se, de maneira consistente - temporária ou permanentemente - sobre a sua existência.

(...) O dano existencial materializa-se como uma renúncia involuntária ás atividades cotidianas de qualquer gênero, em comprometimento das próprias esferas de desenvolvimento pessoal.

(...) O dano existencial pode atingir setores distintos: a) atividades biológicas de subsistência; b) relações afetivofamiliares; c) relações sociais; d) atividades culturais e religiosas; e) atividades recreativas e outras atividades realizadoras, porque qualquer pessoa tem o direito á serenidade familiar, à salubridade do ambiente, à tranquilidade no desenvolvimento das tarefas profissionais, ou de lazer, etc.

(...) É afetado pelo dano existencial aquele que é injustamente privado de sua liberdade, privação essa que pudesse [sic] ter ceifado a possibilidade de convívio familiar, durante alguns meses, tempo esse precioso, principalmente, considerando a eventualidade de um familiar próximo dessa pessoa estar doente, com risco de morte e, ainda, sem ter condições de compartilhar de confraternizações, de ir ao cinema, de participar de atividades religiosas, acadêmicas, etc.

(...) Os sacrifícios, as renúncias, a abnegação, a clausura, o exílio, o prejuízo do cotidiano, uma interação menos rica do lesado com as outras pessoas, coisas e interesses, provisórias ou definitivas, todos esses elementos constituem dano existencial."7Não há projeto de vida sem a vida de relação: as pessoas humanas, como seres-no-mundo-comos-outros8 ou seres coexistenciais9, precisam interagir umas com as outras, de modo que sejam concebidos, modelados, planejados, materializados, adaptados e readaptados os objetivos, as metas e as atividades que fornecem propósito às suas existências.

"Como foi expresso, a coexistencialidade é um dos pressupostos existenciais do "projeto de vida". Embora o projeto seja uma decisão livre, só pode se realizar com a contribuição dos demais seres, no seio da sociedade.

O "projeto de vida" se formula e decide para sua realização em sociedade, em companhia dos "outros". A constituição coexistencial do ser humano torna possível sua realização comunitária. Sem os outros não se poderia projetar."10Tendo havido ou não ataque à integridade física ou psíquica, à esfera do patrimônio material (lucros cessantes ou danos emergentes11), à constituição biológica ou estética ou ao bem-estar psicológico da vítima, importa, do ponto de vista do dano existencial, que o ilícito tenha ocasionado ao sujeito passivo do dano a abusiva privação de componente significativo de seu projeto de vida e/ou vida de relação.

Salienta Guedes: "O dano existencial pode decorrer de atos ilícitos que não prejudicam a saúde nem o patrimônio da vítima, mas a impedem de continuar a desenvolver uma atividade que lhe dava prazer e realização pessoal."12

3. Possíveis eventos que podem resultar em dano existencial

Podem resultar em dano existencial incidentes cuja repercussão seja de tamanha magnitude a ponto de inviabilizar relacionamentos de cunho familiar, afetivo-sexual ou profissional (dano à vida de relação) e/ou fulminar metas e objetivos de importância vital à autorrealização (dano ao projeto de vida), resultando no esvaziamento da perspectiva de um presente e futuro minimamente gratificantes.

Possíveis situações caracterizadoras de dano existencial (rol meramente exemplificativo):

(a) A perda de um familiar13 ou o abandono parental14 em momento crucial do desenvolvimento da personalidade.

(b) O assédio sexual.

(c) O terror psicológico no ambiente de trabalho15, no contexto escolar ou na intimidade familiar.

(d) A violência urbana ou rural. (e) Atentados promovidos por organizações extremistas e o terrorismo de Estado.

(i) Prisões arbitrárias ou fruto de erro judiciário16.

(g) Guerras civis, revoluções, golpes de Estado e conflitos armados...

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