Parágrafo único do art. 927 do Código Civil

AutorKarina Novah Salomão
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Páginas71-142

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1. Antecedentes do parágrafo único do art 927

Alguns autores entendem que o legislador, ao redigir o parágrafo único do art. 927 do CC, foi buscar inspiração no Direito Estrangeiro, em especial, no Direito italiano e português199:

Código Civil da Itália

Art. 2.050. Aquele que ocasiona dano a outrem no exercício de uma atividade perigosa, pela sua natureza ou pela natureza dos meios empregados, fica obrigado à indenização se não provar que adotou todas as medidas idôneas para evitar o dano.

Código Civil de Portugal

Art. 493. 2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Na Itália, a responsabilidade por atividades perigosas remonta ao Código Civil de 1865. Com efeito, o art. 1.153 do Código Civil de 1865 dispunha que "[...] qualquer um é igualmente responsável não só pelo dano causado por fato próprio, mas também por aquele causado por sua responsabilidade ou coisa sob sua custódia". O Código de 1865, nos seus arts. 1.151 e 1.153, previa a responsabilidade do autor por fato que causasse dano a

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outrem, e a responsabilidade por fato da coisa, sujeita ao cuidado do homem200. Na primeira hipótese, a norma contemplava a regra da responsabilidade aquiliana. Na segunda, utilizou-se do artifício da inversão do ônus da prova, atribuindo ao causador do dano o ônus de provar o caso fortui-to201. Segundo Recano, a doutrina entendia aplicável ao caso do art. 1.153 a regra da presunção iuris tantum, sustentando alguns que se tratava de presunção iuris et de iure. Uma minoria, entretanto, defendia a tese da responsabilidade objetiva. Esse era o caso de Barassi, De Ruggiero e Pacchioni.

Comporti discorda daqueles que afirmam que o art. 2.050 veio preencher uma lacuna no mundo jurídico. Para esse autor, o art. 1.153 do CC já continha regra sobre responsabilidade, prevalecendo teoria que sustentava conter a norma presunção iuris tantum e presunção iuris et de iure de culpa. A jurisprudência — garante Comporti — continuou vinculada à teoria da culpa. Isso não obstante, já existiam alguns autores que vislumbravam, no art. 1.153, regra de responsabilidade objetiva, vez que a lei não exigia que a vítima comprovasse a culpa daquele que tinha coisa em custódia, como não admitia a exoneração da culpa deste, exceto ocorrendo caso fortuito. A interpretação dos arts. 1.151 e 1.153 do Código Civil italiano remetia à figura do fait de l'homme efait de la chose do direito francês. Comporti recorda-nos que o fait de chose do direito francês concerne à coisa inerte ou em movimento, perigosa ou não perigosa etc. Essa noção de fait de chose do direito francês deu margem a uma extensa interpretação, chegando quase a "esvaziar" o art. 1.382 do Código Civil francês, que trata do fait de l'homme. No direito italiano, a partir dos arts. 1.151 e 1.153, construiu-se uma teoria. O art. 1.151 seria aplicável ao dano causado pelo homem ou por coisas por ele manipuladas. A coisa, neste caso, seria um meio. O art. 1.153, por sua vez, seria aplicável ao dano decorrente de coisa móvel ou imóvel, animada ou inanimada. A coisa, aqui, não corresponde a um meio. Essas duas posições retratam a diferença entre responsabilidade subjetiva e objetiva. Assim, diz Comporti, sob o código de 1865 não havia qualquer lacuna. Ao dano causado pelo homem, mediante coisa perigosa, aplicar-se-ia o art. 1.151. Comporti exemplifica com o trabalho com explosivos. Além disso, se o dano fosse causado por alguma coisa perigosa — exemplo, incêndio de um depósito de benzina — teria incidência o art. 1.153, aplicando-se a regra da responsabilidade pela coisa em custódia, admitida apenas prova do caso fortuito202.

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Segundo Recano, discutiu-se se o art. 1.153 se aplicava aos casos de exercício de atividade perigosa. Doutrina e jurisprudência entenderam que o exercício de atividade perigosa não poderia ser equiparado à responsabilidade advinda da custódia da coisa. Doutrina e jurisprudência distinguiram a situação da coisa perigosa que causasse dano a outrem do instrumento ou meio de atividade do homem203. Em caso de atividade perigosa que causasse dano a outrem, aplicava-se o disposto no art. 1.151 do Código Civil de 1965, devendo a vítima provar a culpa do causador do dano204205.

Posteriormente, com o advento do Código Civil de 1942, foi inserida a regra do art. 2.050. Esse artigo, destaca Recano, não foi obra do debate doutrinário, mas surgiu em decorrência do desenvolvimento da atividade industrial206. O artigo encontra-se inserto no Capítulo dedicado às obrigações, e não naquele destinado às relações de trabalho.

Para Massimo Franzoni, duas alternativas se impunham ao legislador: a de impor uma pena àquele que transgredisse uma norma social e, a segunda, de prever uma indenização que a vítima poderia obter de modo ágil. Optou--se pela segunda via, por meio da redação do art. 2.050 do Código Civil. Ao prever que a parte pode apresentar prova liberatória, o art. 2.050, entretanto, abre espaço para que seja admitida prova em contrário, o que faz com que alguns afirmem que não há responsabilidade sem culpa207. De acordo com Massimo Franzoni, faltou uma visão sistemática do problema aos legisladores, já que não foram discutidos — quando da elaboração da norma — critérios de imputação da responsabilidade208.

Na Itália, onde o art. 2.050 dispõe sobre a responsabilidade daquele que desenvolve atividade perigosa, salvo se prova haver adotado todos os meios

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idôneos para evitar o dano, diz Franzoni que a jurisprudência vê uma presunção de iuris tantum de culpa, a cargo do exercente da atividade. Para Franzoni, a norma parece indicar um critério intermediário entre a culpa e o nexo de causalidade209. Outros autores entendem que se trata de uma responsabilidade objetiva, que chamam de risco autorizado210, enquanto De Martino critica o critério do risco211.

Não obstante o art. 2.050 do CC italiano permitir a prova da adoção de meios idôneos para evitar o dano, Franzoni e a maior parte da jurisprudência italiana admitem que o art. 2.050 abriga norma de responsabilidade objetiva, eis que a responsabilidade decorre do exercício da atividade perigosa212.

Paolo Cendon enfatiza que o art. 2.050 institui um "regime especial de responsabilidade", referindo-se aos casos em que a atividade pode causar "[...] danos com grau de probabilidade particularmente alto"213. Quando da publicação do Código, interpretou-se o art. 2.050 como sendo uma norma intermediária entre a responsabilidade objetiva e a subjetiva. Posteriormente, a jurisprudência firmou-se no sentido de que se trata de norma de responsabilidade subjetiva, vez que existe presunção de culpa, admitindo-se prova liberatória por parte do exercente da atividade perigosa. Apesar disso, existem vozes contrárias na doutrina — como Bianca, Visintini, Monaterir, Recano e Balzaretti —, que entendem tratar-se de regra de responsabilidade objetiva214.

Importa dizer que, conquanto o art. 2.050 do Código Civil italiano admita a prova liberatória, alguns autores acham que não se trata de caso de responsabilidade culposa. Para Franzoni, em juízo, cumpre ao réu apresentar prova liberatória e, não o fazendo, será condenado. A condenação, portanto, será baseada na falta de prova liberatória, e não na culpa. De qualquer modo, se compreendido que se trata da culpa, não poderá ter o juiz como modelo o bom pai de família, visto que não basta, em matéria de desenvolvimento de atividade perigosa, o cuidado comum, mas, sim, a extrema diligência215. A

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posição que prevalece na doutrina e jurisprudência é a de que mesmo a culpa levíssima responsabiliza o sujeito, e que existe no art. 2.050 do CC italiano uma presunção iuris tantum. Conforme Franzoni, o art. 2.050 não menciona culpa levíssima, nem inversão do ônus da prova. A responsabilidade do art. 2.050, sustenta Franzoni, provém do simples exercício da atividade perigosa e do dano a ela relacionado. Ao réu, em juízo, cabe demonstrar por via de exceção que não exercia atividade perigosa ou deve evidenciar a prova liberatória, o que se assemelhou, na prática, à prova do caso fortuito, no sentido amplo. Não há falar, assim, em aplicação da teoria da culpa216. Em sentido contrário, Paolo Gallo, para quem a hipótese do art. 2.050 não é de responsabilidade objetiva, mas sim, de responsabilidade agravada, esclarece que compete ao titular da atividade perigosa comprovar que adotou todas as medidas idôneas para evitar o dano — e não à vítima comprovar a culpa217.

Tal qual visto anteriormente, para Comporti inexistia qualquer lacuna na Lei, antes do advento do art. 2.050. Segundo o autor, o art. 2.050 é menos rigoroso que o art. 1.153, revogado, e o art. 2.051 do novo Código, que estabelece a responsabilidade pelo fato da coisa. Com efeito, o art. 2.051 dispõe sobre o dano causado diretamente pela coisa, sem intervenção humana, enquanto o art. 2.043 dispõe sobre a responsabilidade subjetiva. No caso do art. 2.043, explica Comporti, a coisa é um meio ou instrumento para ação do homem. A questão que se coloca — com o advento do novo Código — é a da disciplina da atividade perigosa e da coisa perigosa. Como proceder: aplicar à...

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