Guerra global: superando o conceito de guerra moderna

AutorAnderson Vichinkeski Teixeira
Páginas282-307

Anderson Vichinkeski Teixeira. Doutor (2009) em Teoria e História do Direito pela Università degli Studi di Firenze (IT), com estágio de pesquisa doutoral realizado junto à Faculdade de Filosofia da Université Paris Descartes-Sorbonne (FR). Mestre (2005) em Direito do Estado pela PUC/RS e Bacharel (2003) em Ciências Jurídicas e Sociais pela mesma Instituição. Membro do Conselho Editorial da Revista Conceito em Direito Tributário Municipal, da Revista Conceito em Direito Administrativo Municipal e da Revista Jurídica Empresarial. Diretor da Revista Jurídica Tributária. Professor Adjunto da Universidade Luterana do Brasil. Advogado.

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Introdução

Se a globalização fez com que as culturas se aproximassem, que os mercados nacionais e internacionais aumentassem o grau de integração entre si, que tradicionais conceitos e noções políticas do Estado moderno se tornassem cada dia mais contestados, não restam dúvidas que os reflexos da globalização em termos militares foram igualmente – ou ainda mais – intensos. Poucas foram as noções militares que continuaram as mesmas, uma vez que desde o tradicional conceito de guerra moderna, que foi completamente desnaturado no século XX, até ao grau de desenvolvimento da disseminação de armas de guerra seja entre países (horizontal spread), seja entre países e grupos paramilitares (vertical spread), tudo mudou em um ritmo frenético. O mercado ilegal de armas, que cem anos atrás não se constituía em um problema internacional de grande magnitude, profissionalizou-se a ponto de banalizar o uso de fuzis e armas leves que até há poucas décadas eram de uso exclusivo dos grandes exércitos mundiais.

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Por estas razões e, sobretudo, pela consolidação da noção de guerra global no léxico internacional, é necessário que desenvolvamos aqui algumas considerações sobre esta que parece ser outra consequência da globalização.

1 A construção do conceito de guerra moderna

Concomitantemente à formação do Estado moderno – e, talvez, como consequência disso – podemos encontrar uma modificação essencial no desenvolvimento histórico do conceito de guerra: a passagem da guerra antiga para a guerra moderna.

Até a Paz de Westphalia, em 1648, que encerrou a Guerra dos Trinta Anos, a influência religiosa sobre as causas de uma guerra costumava ser preponderante no momento de se optar ou não por iniciar o conflito. Nesse sentido, tornaram-se famosas as Cruzadas: uma modalidade de guerra que não tinha como causa maior qualquer questão política, mas sim a afirmação da auctoritas spiritualis da Respublica Christiana e da justiça cristã sobre os “infiéis” e seus territórios – note-se que a terminologia “infiel” simplesmente desconsiderava a possibilidade de existir uma religião diferente da católica. O papa era considerado detentor de uma potestas spiritualis que deveria ser imposta a todos aqueles povos que não reconhecessem sua legitimidade. A Respublica Christiana presumia-se como detentora de uma integralidade cognitivo-espacial total, capaz de englobar o terreno e o transcendente, fazendo com que todas as insurreições existentes dentro dos seus territórios não pudessem ser havidas como guerras, mas como “faidas” conduzidas por infiéis, ao invés de inimigos.1

Com a Guerra dos Trinta Anos, deflagrou-se um conflito de fundo religioso entre o Imperador Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico, o qual era católico, e as cidades-Estado comerciais, notadamente luteranas e calvinistas, situadas ao norte da Alemanha. Somente após a quase generalização da guerra na Europa, com a entrada no conflito de países escandinavos, como Suécia e Dinamarca, e o desgaste econômico, político e militar de todasPage 285 as partes envolvidas, é que conseguiram chegar a um acordo final no sentido de que, a partir daquele momento, a liberdade religiosa seria considerada um direito próprio do Estado e decorrente da sua soberania.2

Com isso, tanto as guerras entre povos quanto as guerras civis de caráter religioso perderam seu fundamento de legitimidade política e consequentemente cessaram na Europa. Carl Schmitt considerou a laicização do conceito de guerra “il superamento della prepotenza confessionale, che nel corso delle guerre tra fazioni religiose dei secoli XVI e XVII aveva fornito i motivi della peggiore crudeltà e della degenerazione della guerra in guerra civile.”3

No entanto, pode-se afirmar que o resultado mais concreto da paz de Westphalia foi, de fato, a secularização do poder público, pois uma “paz” não foi verdadeiramente construída, mediante o desenvolvimento de normas comunitárias capazes de aproximar os países que até então estavam em conflito e gerar um ambiente propício ao desenvolvimento de uma paz duradoura.4 Como consequência disto, a consolidação de um sistema normativo internacional só ocorreu lentamente e por intermédio de acordos e tratados bilaterais ou multilaterais. O que houveu em 1648 foi um armistício, ou seja, as partes deixaram de continuar em combate por não se justificarem mais as razões da guerra face aos desgastes que ela estava gerando. A paz foi efetiva no que concerne à hegemonia dos Habsburgos, uma vez que esta perdeu poder de controle frente aos Reinos e cidades-Estado luteranas, mas não significou o imediato surgimento de uma ordem jurídica internacional.5

1. 1 Do bellum justum ao jus ad bello

A noção de guerra moderna surgiu a partir de uma perspectiva laica, mas não abandonou por completo a doutrina do bellum justum6, a qual determinava que a guerra era proibida e umPage 286 Estado somente poderia entrar em guerra se tivesse alguma justa causa para tanto, ainda que os conceitos de justo fossem subjetivos e uma eventual guerra injusta pudesse ser encerrada somente com o recurso a outra guerra. Sob o aspecto formal, a guerra justa estava condicionada pela autoridade da Igreja, enquanto que, sob o aspecto material, ela era uma conduta ex justa causa destinada a afirmação externa de determinadas pretensões jurídicas próprias de um sistema jurídico interno, mas sem levar em consideração se tal guerra é de agressão ou de defesa.7 Basicamente, a doutrina da guerra justa, ao contrário de permitir que vencesse aquele que tivesse razão no conflito, somente se prestava para dar razão a quem vencia.8

Com a perda de poder da Igreja frente ao Estado e a transformação daquele poder de potestas spiritualis para potestas indiretas, as causas da guerra deixaram de ter uma legitimação religiosa – ainda que em alguns casos este fosse um argumento retórico, pois somente disfarçava objetivos políticos ou econômicos – e começaram a se centrar em critérios objetivos. A racionalização dos fundamentos que legitimam um Estado que deseja entrar em conflito contra outro é o momento em que o conceito de guerra moderna, ao nosso sentir, faz-se mais visualizável materialmente. Assim como os europeus, nos séculos XV a XVIII, buscavam usar a “razão” como elemento que os distinguia dos selvagens das Américas, a razão será uma das referências para se definir quando uma guerra é justa e quando não o é.9

Além de a guerra passar a ser concebida como retribuição/reação, a sua versão moderna trouxe consigo a doutrina do jus ad bellum e do jus in bello. À possibilidade de um Estado que foi violado em sua soberania reagir por intermédio da guerra contra o ofensor foi atribuída o nome de jus ad bellum. Diferentemente de se discutir qualquer conceito de justiça, como na doutrina do bellum justum, neste caso basta que o Estado tenha sua soberania territorial violada para que ele já possa alegar jus ad bellum contra o agressor. Ao lado dessa possibilidade de entrar em guerra por uma causa defensiva, a guerra como punição ao EstadoPage 287 agressor e a guerra como forma de reconquista de territórios perdidos de forma ilegítima para outro Estado foram outros dois motivos que justificavam a alegação de jus ad bellum.

Já no século XIX, com a definitiva consolidação de um jus publicum Europaeum (até então único direito internacional reconhecido), surgiu também a possibilidade de qualquer Estado soberano membro deste ordenamento sustentar o seu jus ad bellum como causa para intervir formalmente nas deliberações e negociações diplomáticas concernentes a uma guerra que esteja se desenvolvendo em solo europeu ou que envolva um Estado deste continente.10

1. 2 O Direito internacional e o jus in bello

No que diz respeito ao jus in bello, pode-se afirmar que foi uma tentativa do jus publicum Europaeum de, no século XIX, formalizar a guerra através de procedimentos e condutas mínimas que os participantes da guerra deveriam adotar, fazendo com que a noção de bellum justum perdesse a significância de outrora.11 Segundo D. Zolo, “la guerra viene ritualizzata da uma serie di procedure diplomatiche, come la dichiarazione di guerra e la pattuizione della pace.”12 Como consequência disso o jus in bello posteriormente ganhou forma com o Protocolo de Genebra (1924), o Pacto Kellogg-Briand (1928) e as quatro convenções da Conferência diplomática de Genebra (1949) – a Carta das Nações Unidas (1945) passou a definir as causas de jus ad bellum citadas anteriormente (item 1.1., supra). A guerra, que até então era havida como um instrumento de política externa, passa a ser tratada como ato de repercussão jurídica e capaz de gerar responsabilização criminal aos responsáveis.13

Bobbio define o sentido eminentemente formal do jus in bello a partir de uma perspectiva jusnaturalista. Isto significa que o jus in...

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