Henrique da Silva Fontes e a criação da Universidade Federal de Santa Catarina

AutorRogerio F. Guerra
CargoProfessor-Titular e editor da Revista de Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Psicologia, Campus Universitário, Florianópolis, SC
Páginas9-77
Revista de Ciências Humanas - Florianópolis - Volume 45, Número 1 - p. 9-77 - Abril de 2011
Henrique da Silva Fontes e a criação da Universidade
Federal de Santa Catarina
Rogerio F. Guerra1
Universidade Federal de Santa Catarina
As universidades medievais
As universidades surgiram na Europa medieval e eram corporações
mantidas pela Igreja Católica ou por monarcas esclarecidos. Elas eram
compostas por escolas isoladas e atraiam alunos e mestres da Inglaterra, Ale-
manha e França, por exemplo; a convivência intensa facilitava o florescimento
de traços culturais comuns. As diferenças na comunicação eram contornadas
com o uso de uma lingua franca, o Latim. Essas instituições eram conhecidas
como universidades, não em razão de sua estrutura organizacional, mas porque
eram lá que as essências ou os universais eram examinados. As datas e as
circunstâncias como elas surgiram suscitam incertezas, mas conta-se que a
primeira universidade surgiu em Bolonha (c.904), envolvendo os estados-na-
ções que mais tarde iriam compor a moderna Itália. Na França, a Universidade
de Paris (c.1208) envolvia as escolas de Notre-Dame, Sainte Geneviève e
Saint Victor; ela foi estabelecida a partir da bula papal de Inocêncio II e contou
com professores conhecidos, como São Tomás de Aquino (1225-74), Doctor
Angelicus, e São Boaventura (c.1221-74), Doctor Seraphicus.
Outras instituições importantes são Oxford University (1167) e Cambrid-
ge University (1209). A primeira posui 36 colleges, sendo a University College
(1249) o mais antigo deles – Lady Margaret Hall, college feminino, só surgiu
muito tempo depois (1878). Era grande a mobilidade dos professores e alunos,
pois a insatisfação promoveu a migração destes para o Reino Unido; eles fo-
ram incorporados na Oxford University. Por seu turno, os estudantes insatisfei-
tos de Oxford migraram em massa e deram origem a Cambridge University, a
segunda instituição mais antiga do Reino Unido2.
O conceito moderno induz a crer que as universidades eram instituições
sólidas, contavam com recursos regulares e os membros da comunidade goza-
vam de liberdade acadêmica, mas a verdade era o oposto. Essas instituições
sobreviviam graças aos interesses das autoridades religiosas e aos privilégios
__________________________________________________
1 Professor-Titular e editor da Revista de Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina,
Departamento de Psicologia, Campus Universitário, Florianópolis, SC, 88040-900
(rfguerra@cfh.ufsc.br).
2Oxford English reference dictionary. Oxford: Oxford University Press, 1995.
The history today companion to British history. Londres: Collins & Brown, 1995.
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Revista de Ciências
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concedidos pelos monarcas – estudantes e professores eram considerados
membros da Igreja Católica e, portanto, somente eram presos e julgados por
um tribunal eclesiástico. Teses que supostamente afrontavam as Sagradas Es-
crituras eram examinadas com atenção e, em casos especiais, seus defensores
enfrentavam a ira desses tribunais; foi o que ocorreu com Galileu Galilei (1564-
1642), da Universidade de Pisa, que postulou teses contrárias à harmonia das
esferas celestes e acerca da posição privilegiada da Terra em relação aos
demais corpos estelares; ele foi condenado à prisão perpétua, mas terminou os
dias confinado na própria casa. Outros personagens da vida universitária en-
contraram a morte nos tribunais da Inquisição, como John Huss (c.1372-1415),
pregador e reitor da Universidade de Praga, e Giordano Bruno (1548-1600),
filósofo italiano e defensor da teoria de um número infindável de sóis. Ambos
pereceram nas fogueiras armadas pelos tribunais do Santo Ofício.
O conceito que se tinha acerca das universidades, no período medieval,
pouco tem correspondência com o conceito moderno de um instituição equi-
valente. A relação professor-aluno era algo bastante pessoal, a liberdade aca-
dêmica era algo desconhecido e a publicação de idéias passava por um exa-
me minucioso, de acordo com os interesses da Igreja Católica e de seus
patronos. Os títulos acadêmicos praticamente inexistiam, os exames eram
direcionados ao Trivium (Gramática, Lógica e Retórica) e Quadrivium (Mú-
sica, Aritmética, Geometria e Astronomia). A primeira instituição moderna de
ensino superior foi a Universidade de Halle (1694), na Alemanha. Alguns
países das Américas (e.g., República Dominicana, Peru e Equador) já pos-
suiam instituições de ensino superior, mas não eram equivalentes ao modelo
moderno que temos de uma universidade. Os EUA contavam com a Harvard
University (1636), mas ela se assemelhava mais a uma instituição de ensino
secundário – a média etária dos estudantes era 16 anos – e não havia envol-
vimento com a pesquisa científica.
As investigações científicas passavam ao largo das universidades, o ensi-
no era deficiente e as instituições quase desapareceram na Europa medieval
(PERKIN, 2007). Os professores não tinham salário fixo e sobreviviam das
remunerações pagas pelos alunos; a “clientela” também era pobre, pois as
famílias mais abastadas contratavam tutores para a educação dos filhos, a qual
se restringia ao ensino de etiquetas, habilidades musicais e poéticas (as moças)
ou diplomacia, esgrima, equitação e artes marciais (os rapazes). As atuais uni-
versidades européias são conhecidas por suas catedrais de estilo gótico, torres
imponentes e jardins bem cuidados, o que dá a impressão que elas usufruiam
prestígio e não passavam por dificuldades orçamentárias. A beleza é enganosa,
pois tais construções pertenciam às igrejas ou eram castelos emprestados pe-
los nobres. A situação real era calamitosa e muitas universidades desaparece-
ram com o tempo.
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Os alunos enfrentavam sérios problemas para aquisição de livros, mora-
dia e alimentação (VERGER, 1990; BYRD, 2001). Alguns mestres alugavam
quartos aos alunos pobres em troca de alguns serviços; os livros eram aluga-
dos, os professores eram pagos diretamente pelos alunos e era comum o com-
partilhamento das despesas. No século 13, surge uma novidade: a criação dos
colleges, instituições mantidas por dignatários para abrigar estudantes pobres.
Eles eram segregados nesses albergues, usavam uniformes e seguiam um có-
digo restritivo de conduta – as bebedeiras e arruaças eram comuns em Oxford
e Cambridge. Os estudantes preenchiam as noites e os momentos de clausura
com debates e discussões sobre as idéias dos mestres, as quais surgiam espon-
taneamente e atraiam intelectuais não-pertencentes à comunidade. Os colle-
ges ganharam fama e se multiplicaram na Europa medieval.
As mulheres não tinham acesso às universidades, pois era inimaginável
turmas mistas de rapazes e moças, tampouco se encontrava justificativas para
a educação feminina. Em Cambridge, os colleges para as moças surgiram em
1869, mas até 1948 elas não tinham acesso aos títulos universitários. Na Euro-
pa, pouquíssimas mulheres obtinham os títulos, mas a porcentagem se elevou
de 14 para 22%, nos anos 1920 e 1940, respectivamente – a situação era um
pouco melhor nos EUA, pois a porcentagem das mulheres, no ano 1940, era
cerca de 30% (ver PERKIN, 2007). As mulheres enfrentavam sérias dificul-
dades para ingressarem nas universidades, mas a situação dos negros era ain-
da pior, pois a segregação racial lhes fechava as portas até os anos 1970. No
Reino Unido, algumas procedimentos modernizantes foram a eliminação dos
requisitos religiosos (University Test Acts, 1871) e a instalação quase simultâ-
nea do Cavendish Laboratory, o qual inaugurou as experimentações científicas
na Cambridge University.
A vida dos professores não era fácil, pois os rendimentos eram irregula-
res e o montante nada tinha de atraente. É difícil um cálculo preciso, mas
estima-se que os professores geralmente tinha uma remuneração parecida com
a de um operário comum – cerca de 30 a 50% dos professores de Pávia rece-
biam menos que 50 florins, montante pago aos operários não-qualificados. Eles
exerciam atividades complementares (copistas ou preceptores), tinham alguns
privilégios fiscais e buscavam os honorários dos alunos para melhorar o padrão
de medíocre de vida (VERGER, 1990).
O ensino superior no Brasil
A história do ensino superior no Brasil é recente e cheia de percalços:
as instituições surgiram tardiamente e as autoridades portuguesas impedi-
ram ou dificultaram a instalação de escolas e publicação de livros e jornais.

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