As políticas de ações afirmativas para a efetivação de direitos da minoria negra no Brasil

AutorDanielle Annoni
Páginas173-185

Danielle Annoni. Doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente tem experiência na Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos e direitos fundamentais, teoria geral do processo e acesso à justiça, direito internacional e relações internacionais. No Direito Privado atua nas seguintes áreas: direito das obrigações e responsabildiade civil.

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1 Considerações Iniciais

Como premissa introdutória é importante ressaltar a importância do investimento em políticas públicas de ações afirmativas para a concretização dos direitos dos grupos sociais negros no país para que seja possível alcançar o equilíbrio e a promoção do ideal de igualdade racial na sociedade.

Este ensaio procura demonstrar a imprescindibilidade das ações afirmativas na luta anti-racista e para isso é necessário um breve resgate histórico de como são as relações raciais na atual sociedade brasileira. A luta anti-racista remonta desde o período escravocrata e segue ainda no período pós-abolição, uma vez que os grupos sociais negros ainda vivem à margem da sociedade.

O trabalho traz uma abordagem sócio-jurídica de como são as relações raciais no Brasil para que seja possível compreender o porquê da necessidade de ações afirmativas voltadas para a população negra. Trabalha com os fenômenos do preconceito racial, do racismo e da discriminação racial como condicionantes da desmistificação da falsa democracia racial construída no país nas primeiras décadas do século XX. Reafirma a importância do movimento negro na sua trajetória histórica e na luta anti-racista. Além de tentar dar uma dimensão social e exemplificar a admissibilidade das ações afirmativas como condicionantes de transformação humana e concretizadora dos direitos dos grupos sociais negros.

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2 A Luta Anti-Racista no Brasil: Uma Breve Incursão Histórica

É inegável que a atual sociedade brasileira ainda esteja impregnada pelos fenômenos do racismo, do preconceito racial e da discriminação racial1 sofrida pelos grupos sociais negros. A luta anti-racista no Brasil foi arquitetada ainda durante o regime de escravidão por grupos contrários a esse modelo econômico e político que teve vigência plena por mais de três séculos. Passados 121 anos da abolição legal da escravidão ainda é possível perceber que o negro permanece desintegrado socialmente.

A abolição da escravatura não livrou o negro da sua condição de espoliação, simplesmente porque para as novas visões do mercado, da sociedade e da política, ele tornou-se descartável. Não houve investimento em políticas inclusivas para que os negros se integrassem a essa nova sociedade, simplesmente porque a abolição não foi para eles. A abolição não alterou em nada a situação dos negros, eles continuaram carregados de estereótipos – seres inferiores, vadios, preguiçosos, ociosos –, assim como a abolição “[...] não trouxe consigo a perspectiva de libertação com plena inserção dos descendentes de negros escravizados na sociedade como um todo, isto é, no mercado de trabalho, no sistema educacional, no acesso à moradia digna, à posse da terra, entre outras”2.

FERNANDES afirma que após a abolição “o negro permaneceu sempre condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser humano e como igual”.3 A historiografia brasileira aponta que a omissão do Estado perante os grupos sociais negros foi proposital, não houve qualquer investimento de integração dos negros nessa nova sociedade que emergiu no final do século XIX. Ao contrário, o que se vislumbrou foi um duplo processo de exclusão, o primeiro em decorrência de uma abolição incompleta e o segundo em razão do investimento público na imigração.

O fluxo imigracional foi intensificado no período entre 1884 e 1913, tendo ingressado no Brasil cerca de 2,7 milhões de europeus. Apenas a título de comparação, nesses 29 anos, a quantidade de imigrantes que ingressou no Brasil, incentivada por uma política imigratória, representou 70% do total de africanos que ingressaram na condição de escravos durante os mais de três séculos de escravidão. Esses números refletem o projeto de “branqueamento” que se visou desenvolver no país, na tentativa de eliminar os grupos sociais negros e indígenas, uma vez que sua presença refletia o passado escravista e suas mazelas. Neste sentido, o objetivo da elite escravocrata desse período foi se redimir em face das nações européias, eliminado o negro do contexto social, ou seja, transformando o Brasil em uma “nação ocidental e branca”.4

Atualmente o ideário de branqueamento serve como suporte ideológico para mascarar a discriminação racial na sociedade. Serve como instrumental de anulação e negação das demais culturas e das demais cores, em detrimento da cultura ocidental e branca. O próprio negro atualmente na sociedade não se sente negro, há uma perda de identidade, justamente porque até hoje não se conseguiu romper com esse círculo vicioso de inferioridade que permeia as “pessoas de cor”.

O discurso da mestiçagem e da democracia racial que surgiu no Brasil no início do século XX, principalmente após a edição das obras de Gilberto Freyre5 contribuíram para fomentar a ideologia de um país sem preconceito ou discriminação fundada na “cor”, já que o fato de o povo brasileiro ser, por origem,Page 175 essencialmente mestiço, composto basicamente da mistura entre brancos, negros e indígenas, bastaria para afastar qualquer processo, ação ou intenção de exclusão social em forma de discriminação ou racismo.

Afirmar a mestiçagem implicou, durante anos, no não reconhecimento das diversas minorias, porque se essas já estavam integradas, não se consistiam, em verdade, em minorias, logo, precisavam de tratamento diferenciado, protetivo ou de inclusão. Ao contrário, pensar em criar ações específicas em prol de determinados grupos sociais correspondia a fomentar a discriminação e a desigualdade, já que todos, no Brasil, eram, segundo a ideologia dominante, iguais por origem histórica, pela cultura mestiça e pela diversidade de identidades.

A influência das obras de Freyre é ainda sentida no meio acadêmico nacional. CHAUÍ afirma que “a sociedade mestiça desconhece o preconceito racial”.6 O discurso da mestiçagem serviu, como dito, como elemento ideológico que embasou o mito da democracia racial e consequentemente a negação do racismo escamoteado nas práticas sociais.

De acordo com GUIMARÃES7, o mito da democracia racial aparece como subterfúgio para explicar no Brasil uma inexistência de minorias étnicas, e o emprego da mestiçagem como sinônimo de harmonia social entre os diversos grupos étnicos brasileiros. Historicamente a utilização do termo “raça” – para definir a existência dos diversos grupos étnicos do país – foi uma proposta que partiu dos próprios movimentos negros como mecanismo de denúncia da falsa mestiçagem brasileira e do mito da democracia racial.

A Frente Negra Brasileira8, movimento social que se converteu em partido político em 1936 já compreendia a necessidade de revalorização do termo “raça” no que tangia a identidade étnica como manifestação de uma luta anti-racista e pelo reconhecimento da situação marginal dos negros no Brasil.

Entre os anos de 1940 e 1960 outros movimentos sociais começavam a surgir no cenário político brasileiro, entre eles a União dos Homens de Cor e o Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do Nascimento no Rio de Janeiro entre os anos de 1944-1964. A retomada dos movimentos sociais a partir da década de 1970, ainda durante o regime militar no Brasil, permitiu que as lideranças negras se reorganizassem politicamente e rediscutissem novas bases para uma luta anti-racista no país.9 A criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978 “[...] pôs na ordem do dia as desigualdades e as discriminações raciais vigentes no Brasil [...]”10, denunciando-as para o resto do mundo, tendo em vista a visibilidade internacional que conquistou o MNU.

Na pauta de luta do Movimento Negro Unificado estava realmente implícita o desejo de transformar a sociedade brasileira numa verdadeira democracia racial. Essa militância teve como principais objetivos denunciar que as desigualdades sociais entre negros e brancos no Brasil não eram apenas o reflexo da disputa de classes11, mas por em evidência o preconceito e a discriminação racial, como fatores determinantes da situação marginal da minoria negra.

O processo de mobilização e luta por melhores condições de vida à população negra deveria guiar-se pela “segunda abolição”, nas palavras de FERNANDES12, e ser implementada pelos próprios negros como alternativa para melhorar a sua condição de vida e a sua condição social.

A partir dos anos 1980 intensificou-se no país a luta dos vários movimentos sociais, incluindo os movimentos negros, que reivindicavam entrePage 176 suas lutas particulares a redemocratização13 brasileira e a promulgação de uma Constituição de base democrática.

Os trabalhos da Assembléia Nacional Conseguinte no ano de 1987 foram realizados mediante a participação da sociedade civil organizada. Os movimentos negros colocaram em pauta as suas principais reivindicações, dentre as quais pode-se destacar: a) denunciar o racismo e a discriminação racial pelo qual sofrem as minorias negras brasileiras; b) denunciar a democracia racial como mito e forma de impedir o investimento em políticas públicas de ações afirmativas na luta anti-racista; c) resgatar a cultura afro-brasileira por meio do reconhecimento das diversas identidades, da valorização da diversidade e do reconhecimento de uma sociedade multirracial e multicultural.14

A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988 assegurou a volta...

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