O princípio da correlação entre acusação e sentença

AutorMarina Magalhães Lopes
CargoDefensora Pública no Rio de Janeiro. Mestranda em Direito na UERJ.
Páginas250-262

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O Código de Processo Penal ("CPP") foi promulgado em 1941 durante o Estado Novo, época em que os direitos civis e políticos foram restringidos, o poder centralizado na figura do Presidente e até os meios de comunicação.

A Constituição outorgada poucos anos antes, em 1937, foi inspirada na polonesa ("Constituição Polaca"), que apresentava influências fascistas. Como as normas processuais refletem o sistema jurídico-político de um país2 e, consequentemente, o CPP também apresentou ideais anti-democráticos.

Poucas décadas depois da edição do CPP, uma nova ditadura assolou o país, impedindo avanços na legislação infraconstitucional. Além disso, contribuiu para a ilusão de que o respeito a alguns direitos e garantias individuais, principalmente aqueles de cunho processual, não eram condizentes com a "segurança nacional".

O fim da ditadura militar culminou com a promulgação, em 1988, de uma nova Constituição Federal, que consagrou diversos direitos e garantias individuais e coletivos em seu art. 5º, incluindo-se aí aqueles relacionados ao processo penal.

Além dos direitos de primeira geração, aqueles nos quais se exige uma ação negativa do Estado, foram elencados também os de segunda e terceira geração3, representando uma modificação em toda ordem jurídico-constitucional e elevando a dignidade da pessoa humana ao centro epistemológico de todo o ordenamento.

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Após uma época "de escuridão", na qual os apenados eram privados de sua própria vida pelo Estado e alguns presos eram condenados através de um processo no qual garantias mínimas não eram observadas, era necessário estabelecer regras que evitassem o arbítrio.

Assim, alguns princípios processuais como o do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da publicidade, da inadmissão das provas obtidas por meios ilícitos passaram a ser considerados cláusulas pétreas, constituindo a base não somente de um processo mas de um regime político democrático.

Entretanto, apesar dos inúmeros avanços obtidos nos últimos anos, alguns dispositivos previstos no CPP e na legislação extravagante não estão de acordo com a Constituição.

Por essa razão, entendemos que o estudo do processo penal deve ser feito através de uma filtragem constitucional, adequando-se as normas processuais aos princípios constitucionais, sistemática através da qual analisaremos os arts. 383 e 384 do CPP4-5.

Os sistemas processuais

Os estudos históricos acerca dos sistemas processuais penais apontam a existência de dois modelos principais, o inquisitório e o acusatório.

O sistema inquisitório foi bastante comum no passado, sobretudo na época da Idade Média, apesar de sua origem remontar a épocas mais remotas. Nesse sistema o indivíduo é considerado como objeto do processo e não como alguém dotado de direitos e garantias.

Há confusão nas figuras do julgador e do acusador sendo que a defesa é meramente formal, pois o julgador não somente formula a acusação mas também tem ampla liberdade para agir durante o processo determinando a realização de diligências, inquirindo testemunhas, ou seja, buscando provas que fundamentem sua decisão.

Como conseqüência, a decisão proferida pelo magistrado, também acusador, não é dotada de imparcialidade.

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Parece-nos, assim, não haver dúvidas de que tal sistema é incompatível com um processo penal justo, elemento fundamental de um Estado Democrático de Direito6.

Já no sistema acusatório há nítida separação entre o órgão acusador e o julgador. A defesa deve ser efetiva, exercida por profissional habilitado e sua inexistência é causa de nulidade absoluta.

O sistema acusatório foi responsável por uma imensa modificação na posição ocupada pelo réu no processo, que passou de mero objeto a detentor de diversos direitos e garantias.

A partir de uma análise dos dispositivos constitucionais que tratam do processo penal na Constituição Federal, podemos concluir que é esse o sistema processual penal adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro7.

A própria Constituição prevê em seu artigo 127 que o Ministério Público é o titular da ação penal, o que denota a separação entre os sujeitos processuais8.

O acusado (ou réu) somente pode ser processado através de um devido processo legal9, que deve observar a ampla defesa, o contraditório e todos os seus consectários lógicos10.

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O art. 5º, inciso LXXIV determina que o Estado prestará assistência jurídica gratuita aqueles que comprovarem insuficiência de recursos, possibilitando que, mesmo os juridicamente necessitados sejam assistido por profissional habilitado (no caso, o Defensor Público11).

Em decorrência do sistema adotado, é inadmissível que a acusação seja formulada por magistrado, tal como ocorria no sistema inquisitório12 - 13. Porém, ao analisarmos alguns artigos do Código de Processo Penal, verificamos que há regras que possibilitam tal conduta por via reflexa.

A ação penal é, em regra, de natureza pública, cabendo sua titularidade ao Ministério Público. A atuação do Parquet está limitada pelo princípio da obrigatoriedade do processo penal, ou seja, existindo elementos que consubstanciem a justa causa, além daqueles indispensáveis ao regular exercício do direito de ação, deve o Promotor de Justiça oferecer denúncia, deflagrando, assim, a ação penal pública14-15.

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A acusação está a cargo do Ministério Público e compreende não somente a imputação (que é o ato de imputar a prática de determinado ato a alguém, no caso um fato criminoso) como também a descrição do fato, sua qualificação jurídico-penal e o pedido de condenação.

No processo civil, o objeto é visto como o mérito do processo, ou seja, aquilo sobre o que recai a pretensão autoral, a res in iudicium deducta.

Já no processo penal, o objeto do processo (na ação penal pública) é fixado pela denúncia promovida pelo Ministério Público, é a pretensão formulada pelo Parquet através de sua imputação16 -17.

Essa pretensão é sempre insatisfeita em razão do princípio do nulla poena sine judicio, ou seja, para a aplicação de uma sanção penal é sempre necessária a instauração de um processo, mesmo que o réu concorde com a aplicação da pena.

Tendo em vista que o direito de ação é um direito subjetivo, público, dirigido contra o Estado, em face de outrem, a pretensão punitiva é sempre exercida contra o Estado. A partir do momento em que o Estado tomou para si o monopólio da jurisdição, é o detentor do ius puniendi, direito esse exercido através do Ministério Público.

"Imputar" a prática de determinado fato a alguém (no caso o réu) significa afirmar que essa pessoa praticou o crime descrito da denúncia, com todas as suas circunstâncias18.

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O réu se defende dos fatos descritos na peça inaugural, não podendo, em hipótese alguma, ser condenado por fato não contido na mesma.

Ressalte-se que o pedido na ação penal condenatória é sempre genérico, de condenação, sendo que ao proferir a sentença é que o magistrado irá analisar as circunstâncias do crime, condições do apenado, e demais outras contidas no art. 59 do Código Penal para, então, aplicar a pena.

O Princípio da corrrelação entre acusação e sentença

Em razão dos motivos anteriormente expostos, quais sejam, a adoção do sistema acusatório pelo ordenamento jurídico pátrio, a titularidade da ação penal conferida ao Ministério Público, bem como os princípios constitucionais que norteiam o processo penal, a sentença deve guardar correspondência com o descrito na peça inaugural da ação penal condenatória (denúncia ou queixa, na hipótese de ação penal privada).

O princípio da correlação entre a acusação e sentença está consubstanciado justamente nessa correspondência19.

Tal assertiva também decorre do princípio da inércia da jurisdição, o juiz deve se ater aos fatos narrados na denúncia ou queixa, sendo inadmissíveis as sentenças ultra, extra e citra petitas.

Entretanto, no curso do processo penal é possível que se verifique que os fatos não ocorreram exatamente da forma descrita na peça inaugural, o que pode provocar uma alteração no objeto do processo. Tal alteração somente pode ocorrer se observados as regras atinentes à matéria, a fim de que não haja prejuízo para a defesa.

Passaremos então a analisar os artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal, que versam sobre a emendatio e a mutatio libelli.

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Emendatio Libelli

De acordo com o art. 383 do Código de Processo Penal ("CPP"), o juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da contida na denúncia ou queixa20 (emendatio libelli).

A doutrina diverge acerca da constitucionalidade desse dispositivo. Alguns sustentam que, como o réu se defende dos fatos imputados a ele na denúncia, se o Promotor de Justiça, ao formular a imputação descreve a conduta do réu como sendo a de subtrair coisa alheia móvel mediante violência ou grave e a classifica como furto (art. 155 do Código Penal -"CP"), pode o magistrado proferir sentença condenando o réu pela prática do delito previsto no art. 157 do CP, eis que a conduta típica contida nesse tipo penal é que foi descrita na denúncia (jura novit curia).

Assim, o réu teria exercido seu direito de defesa em relação aos fatos descritos na denúncia, sendo irrelevante que o juiz pretenda dar nova qualificação jurídica ao fato. Não há que se falar em "surpresa" ou prejuízo para a defesa, se o rito foi devidamente observado e o réu pôde exercer amplamente seu direito de defesa21.

Outros autores, no entanto, admitem que a qualificação jurídica do fato repercute no exercício do direito de defesa, não sendo possível, assim, a aplicação do art. 383 sem a prévia oitiva das partes.

Isto porque a capitulação jurídica dada ao fato pode influenciar o curso do processo, no que tange à concessão da liberdade provisória (proibida para os crimes hediondos), bem como à aplicação de institutos como a transação penal e...

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