O princípio da colegialidade e o papel do relator no processo civil brasileiro

AutorHenrique Guelber de Mendonça
CargoMestrando em Direito Processual na Faculdade de Direito da UERJ.
Páginas207-225

Page 207

Introdução

O presente estudo se dedicará ao princípio da colegialidade no sistema recursal brasileiro, bem como buscará delinear as atribuições conferidas ao relator pelo Código de Processo Civil de 1973 e suas respectivas leis modificadoras. O primeiro ponto sobre o qual debruçaremos será o da identificação de onde emana o princípio da colegialidade no ordenamento jurídico nacional. Qual o respaldo para que se afirme sê-lo um princípio. Será ele um princípio de nível constitucional?

Por outro lado, arraigado no estudo da colegialidade, será importante identificar o perfil do relator criado pelo Código de 1973 e qual está a ser criado pelas reformas que inundaram o Direito Processual Civil brasileiro, mormente a partir do ano de 2005. As decisões tomadas pelo relator não combinam com a irrecorribilidade. Não é legítimo, muito menos constitucional, varrer o agravo regimental para debaixo dos tapetes. A tendência das últimas reformas processuais, que, a pretexto da prestação jurisdicional tempestiva, atribui cada vez mais poderes nas mãos dos relatores, há de ser encarada com cuidados.

A busca desenfreada pela diminuição do prazo de resposta do Judiciário ao jurisdicionado não deverá atentar contra garantias individuais e estruturais que informam um processo justo. É de inestimável importância assegurar aos jurisdicionados garantias mínimas. Se não se pode afirmar que toda e qualquer prestação jurisdicional solucionará o impasse da melhor forma possível, é viável e indeclinável o dever do Estado de assegurar aos cidadãos todos os meios necessários ao exercício amplo de seus direitos processuais.

Não há nenhuma relação saudável possível de ser estabelecida entre se abreviar o processo e se reduzir garantias, ou, como muitos intentam, reduzir as possibilidades de recurso. Somos da opinião de que o que deve ser alterado é o sistema recursal, ainda impregnado com um formalismo inexplicável e desarrazoado. Nessa reformulação do sistema recursal, não havendo como não adjetivá-lo de complexo e, atualmente, lento, deverão constar igualmente soluções para um crônico problema de gestão dos Tribunais brasileiros, sobretudo devido ao aumento vertiginoso do número de demandas propostas.

Não logrará êxito levar adiante outra reforma no CPC sem que as causas do problema estejam propriamente identificadas. Não basta uma reforma legislativa que se fulcre em um mundo distante daquele vivenciado por jurisdicionados e profissionais da área nos corredores dos fóruns. O cuidado ao se importar determinado instituto jurídico estrangeiro deve ser redobrado. As idiossincrasias de cada país hão de ser respeitadas e avaliadas quando da abertura das portas do palco jurídico nacional para recebermos inovações jurídicas.

No dizer de GRECO2 o sistema recursal está atualmente impregnado de vícios que precisam ser apontados e corrigidos. O mestre enumera alguns deles: 1) Desrespeito aoPage 208princípio do duplo grau de jurisdição; 2) Criação de obstáculos ilegítimos, como o preparo e o depósito recursal, este que ainda subsiste na Justiça do Trabalho; 3) Inexistência de oralidade; 4) Supressão da colegialidade; 5) Restrições ao contraditório participativo; 6) Violação do princípio do juiz natural; 7) Violação ao princípio da isonomia; 8) Falta de comunicação real; 9) Violação à imparcialidade; 10) Subordinação do direito de ser ouvido à jurisprudência; e 11) Déficit no acesso à jurisdição constitucional.

Pois bem, no exame do Princípio da Colegialidade, será indisfarçável a discussão sobre muitos desses pontos levantados pelo professor acima. Nossa preocupação será colaborar para que seja atribuída ao Princípio da Colegialidade a dimensão merecida, bem como para que seja repensado o papel do relator no sistema recursal. O estudo terá um caráter marcadamente preventivo, quer dizer-se, buscará acima de tudo alertar para evitar que a supressão da colegialidade se espraie e contamine irreversivelmente o processo civil brasileiro.

1 – O Princípio da Colegialidade

O sistema processual3 brasileiro reveste-se de julgadores monocráticos no primeiro grau de jurisdição, empossados segundo critérios técnicos. O fator primordial de reconhecimento da legitimidade de suas decisões diante do povo, que não os escolheu nem opinou acerca de suas escolhas, é a fundamentação da tomada de posição. Esse o espírito que encarta o art. 93, IX, da CRFB.

O recurso faz parte da tradição jurídica romana e, por conseguinte, de nossa tradição jurídica. Muito se alterou acerca do sistema recursal desde antes de Cristo até os dias atuais, obviamente. Conquanto formalmente não mais adotemos a ritualística romana que regia a appelatio, é inegável que a ratio dos recursos permaneceu inabalável no transpassar de todos os séculos.

O recurso, quase de forma utópica, porquanto no afã de ilustrar a assertiva partimos do que é ou não justo, busca confirmar a decisão mais justa, reformar a injusta ou cassar aquela proferida com a inobservância de preceitos cogentes de ordem formal. Sem querermos adentrar nos aspectos filosóficos da justiça, cientes da equivocidade do substantivo, tomemos como a concepção ideal para trabalhar o ensinamento de Platão, segundo o qual, em A República, conclui que ela consiste em dar a cada um o que lhe é devido. Eis a árdua missão do magistrado, visto sob o prisma de instrumento da efetivação da justiça.

Page 209

Em primeiro grau encontram-se os juízes não tão experientes quanto aqueles que compõem o tribunal. Esta é a formatação ideal e que justifica a promoção por antiguidade mesclada com o merecimento. Para a tomada de decisões mais justas, que conjuguem o direito objetivo de forma a inseri-lo harmonicamente na vida de relação, o constituinte, na constituição dos tribunais, abriu mão de juízes estritamente técnicos, realçando a importância de, ao lado destes, figurarem juízes mais experientes. É justamente no debate entre a técnica e a experiência que nasce a melhor decisão, ou pelo menos que se aumenta a chance dessa decisão ser tomada corretamente.

Num olhar prático para a formatação de nossos tribunais concluiremos ser incompatível com o nosso ordenamento a revisão de decisões por juízes monocráticos. A colegialidade é a grande força dos tribunais. A matéria a ser decidida deve ser discutida, debatida, pontos de vista devem ser expostos, uns descartados e outros acolhidos, sempre em busca da melhor decisão. Quanto maior e mais intenso o debate, maior a oportunidade para que a causa em exame se amadureça. Incluir nesse debate o jurisdicionado é de indelével importância. A propósito, tanto a oralidade quanto o contraditório, em primeiro e segundo graus, laboram igualmente em prol da decisão mais justa. Falar e não ser ouvido é tão prejudicial quanto não falar nada. Mais do que permitir que as partes participem do processo, levar em consideração a verdade de cada uma é um trabalho que demanda experiência e perspicácia.

Há um equilíbrio em torno dos três poderes idealizado pelo constituinte originário. No Executivo, por meio de eleições diretas, o povo é encarregado de eleger aqueles que administrarão a coisa pública. No Legislativo, o povo optará, no cenário federal, por deputados, estes seus legítimos representantes, e senadores, estes que representarão seus estados. A própria constituição e a feição arquitetônica das casas legislativas querem revelarnos o equilíbrio. Quanto ao Judiciário, conforme afirmado linhas atrás, após a escolha técnica de juízes de primeiro grau, é a fundamentação das decisões e a conduta proba dos aprovados em concurso público que justificam o posto assumido. O constituinte optou pela ampla independência do magistrado, que não deve ser grato a ninguém por sua escolha para que ocupe o cargo de juiz. Daí o exaltado trinômio da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. Essa isenção é imprescindível para o exercício da judicatura. O magistrado deve julgar nos conformes da lei e, se necessário, em busca da decisão mais justa e pacificadora da sociedade, deve transcendê-la.

Em princípio, o cidadão comum, apelidado por nós de jurisdicionado padrão, que procura o judiciário irá bater as portas da Justiça Estadual, da Justiça Federal ou da Justiça do Trabalho. Seus tribunais, em regra4, constituirão a instância revisora, provocados mediante recurso voluntário. Para todas essas Justiças, a forma de ingresso dos magistrados é a mesma: o concurso público de provas e títulos, art. 93, I, CRFB. A formatação dos respectivos tribunais é também semelhante, conforme se depreende dos artigos, 94 e 115 da CRFB. Os juizes de primeiro grau ascenderão aos tribunais de segundo grau, cuja constituição será complementada em 1/5 por advogados e membros do Ministério Público, alternadamente. A fertilidade de fontes para a composição dos tribunais demonstra-nos que o constituinte apontou que o melhor caminho para a formação das decisões mais justas seria a conjunção dePage 210ideais e idéias, de membros do Ministério Público, advogados, juízes experientes e juízes que se destacam pelo trabalho eficientemente prestado ao Judiciário.

Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal são, respectivamente, os guardiões da legislação federal e da Constituição da República. Não são tribunais de terceira e quarta instâncias e não lidam com matérias fáticas, salvo as exceções exaradas pela Carta da República5. O método de escolha de seus integrantes é peculiar porque peculiares são as suas funções quando comparadas aos tribunais mencionados. Já a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar se prestam a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT