Direito penal do inimigo: quimera dogmática ou modelo orientado para o futuro?

AutorKarolina Víquez A.
CargoDoutoranda pela Universidade de Hamburgo
Páginas46-63

Traduzido por: Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira*

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Introdução

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O vocábulo quimera1 ou quimérico é utilizado metaforicamente para descrever coisas que têm características advindas de distintas fontes. Por exemplo, na mitologia grega quimera é um monstro mítico com partes de cabra, de leão e de serpente: uma criatura monstruosa criada por diversos inimigos. Deste modo, atualmente o termo quimera é popularmente conhecido como algo que se propõe à imaginação como possível ou verdadeiro, sem que o seja; de se dizer, é uma utopia.

No desenvolvimento deste ensaio, pretende-se, de forma geral, expor quais as semelhanças entre os conceitos citados e o conjunto de enunciados considerados válidos para o estudo do que hoje se conhece por direito penal do inimigo. Para poder entender essa relação, o direito penal do inimigo será, em um primeiro momento, descrito como uma quimera, de modo a assinalar os seus principais atributos, a sua intenção de proteger a sociedade de um perigo iminente, os métodos pelos quais tal direito pretende eliminar o inimigo, o objeto para fazê-lo e seus efeitos negativos. Desde logo será questionado o conceito de quimera como utopia e/ou engano, resposta à qual se chegará por meio de uma breve descrição do fenômeno de “expansão do direito penal”.

Em um segundo momento, estudar-se-á possibilidade de situar o direito penal do inimigo como um modelo futuro, suas conseqüências imediatas e sua diferenciação em relação ao direito penal vigente, o que permitirá, pelo menos de forma geral, terse uma perspectiva de como o mesmo se tem desenvolvido e das diferentes concepções dogmáticas que o integram. Em um terceiro momento e por fim, referirse-á ao papel do Estado de Direito na discussão do direito penal do inimigo e a interação entre política, inimizade (aversão) e guerra como conceitos inseparáveis, de modo a estabelecer os elementos necessários para fornecer a resposta à pergunta que motiva a realização do presente ensaio.

1. Descrição da quimera

O conceito de direito penal do inimigo foi introduzido por Günther Jakobs em um congresso ocorrido em Frankfurt no ano de 1985, no contexto de uma reflexão sobre a tendência na Alemanha sobre a “criminalização anterior a uma lesão” do bem jurídico. Nesta exposição, Jakobs manifesta a necessidade de separar em casos excepcionais o direito penal do inimigo do direito penal dos cidadãos com o fim de conservar o Estado liberal; tese esta que naquele momento não teve maiores repercussões. Em 1999, em um Congresso realizado em Berlim, o conceito de direito penal do inimigo surgiu novamente, a partir de uma reflexão em relação aos delitos graves contra bens jurídicos individuais. A reação crítica provocada entre os juristas alemães após a intervenção feita por Jakobs neste último Congresso2, principalmente em virtude da diferenciação que o autor propõe entre o direito penal do cidadão dirigido a pessoas e o direito penal do inimigo destinado a não-pessoas e que é, de acordo com Jakobs, necessário para combater, por exemplo, o terrorismo.

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Para poder descrever o direito penal do inimigo como uma quimera, devemos começar por assinalar quais os atributos que ele possui que são procedentes de fontes distintas. Em primeiro lugar, na primeira fase da reflexão (1985), o direito penal do inimigo é composto por aqueles tipos penais que antecipam a punibilidade a atos que têm o caráter de preparatórios para acontecimentos futuros. Tais tipos penais não se incluem na pretensão do direito penal da “normalidade”, haja vista que lhes falta a lesão ao bem jurídico, a punibilidade encontra fundamento apenas na periculosidade do autor manifestada em uma ação dirigida à realização de um fato futuro.

Neste mesmo contexto, Jakobs pretende explicar a existência de ditos tipos penais ao indicar o inciso II do artigo 30 do Código Penal alemão (StGB3), o qual se refere à tentativa de participação, uma vez que para o autor mencionado há uma contradição entre os princípios gerais do Código Penal alemão e o mencionado inciso II. É neste ponto que Jakobs passa a denunciar o papel do Estado de direito em relação à descrição do direito penal do inimigo. Por isso ele cita o artigo 30, vez que considera que uma delimitação clara de atos preparatórios e da tentativa punível constitui um postulado de primeira classe entre os próprios postulados de um “Estado de Direito4”.

Para Jakobs, em um Estado de direito não se pode responsabilizar o indivíduo pelo que lhe é inerente, e, com isso, não se refere apenas à liberdade de pensamento, mas também a todo o “âmbito privado5”. Assim, de modo geral, este modelo reflete oPage 49 ceticismo da sociedade diante um perigo. Daí que, por exemplo, por meio de tais tipos penais sejam criminalizados comportamentos que representem a pertença a uma organização criminosa, de se dizer, que representem perigo social.

Para esse autor, a doutrina penal como proteção de bens jurídicos não contribui para a limitação da “antecipação da punibilidade6”, e sim “induz a crer na legitimação de todo aquele que pode ser colocado em uma relação positiva com o conceito de bem jurídico. O que razoavelmente se pode qualificar como um ataque perigoso a um bem jurídico tem que ser, ao que parece, socialmente nocivo, caso se pretenda definir o estado de integridade da sociedade a partir da intangibilidade dos bens jurídicos7”. Nesta alheta, desde a proteção de tais bens, “o sujeito ativo da conduta é definido apenas pelo fato de que pode vir a constituir um perigo para o bem jurídico, ao que se acrescente de que cabe antecipar potencialmente sem qualquer limite o início de tal perigo8”. Seguindo essa tese, a função da pena como eliminação de um perigo se justifica, haja vista que o sujeito ativo da conduta, observado de modo limitado, desde a proteção de bens jurídicos, é concebido apenas como “fonte de perigo”. Tal seria o segundo atributo, aqui traçado, do direito penal do inimigo.

O sujeito perigoso, rotulado como inimigo caracteriza-se por ter abandonado o direito permanentemente. Assim, no intuito de lhes fazer objeção, necessário que se estabeleça uma confrontação clara entre eles e a sociedade, uma guerra entre o Estado e o inimigo por meio de torná-los inofensivos. Ao que se deve dizer não se tratar de um castigo por uma conduta reprovável de dano social, e sim de eliminação preventiva da fonte de perigo que é o ser humano definido como perigoso9. Caso se mude o foco de atenção desde a revolta em si para o revoltoso, isto é, do direito penal do fato para o “direito penal do autor10”, ver-se-á que um direito penal do autor,Page 50 relacionado por alguns como sendo uma “caça às bruxas, uma cruzada contra os malfeitores arqui-malvados, ou, mais recentemente, uma caça aos fantasmas11”, sugere que o temo “inimigo tem uma acepção mais pseudo-religiosa do que uma acepção tradicional-militar12”.

E, por fim, em terceiro lugar, deve-se considerar que o direito penal do cidadão nunca se separará completamente do direito penal do inimigo. Embora o direito penal do cidadão se caracterize pela manutenção da vigência da norma13, e o direito penal do inimigo esteja orientado para combater perigos, isto não deve ser entendido como se os dois ocupassem esferas estanques do direito penal, e sim que são tendências opostas em um único contexto jurídico penal que se sobrepõem uma sobre a outra14. No direito penal do cidadão se encontra pelo menos uma pequena proteção diante de riscos futuros; assim como no direito penal do inimigo, incluído o terrorista, se pode tratar o inimigo como pessoa, ao lhe conceder dentro do processo penal os direitos de um cidadão que seja acusado15. Neste mesmo sentido, para separar um direito do outro deveria haver uma constante revisão normativa, haja vista que o fato de separá-los não impediria que as normas do direito penal dos cidadãos não se excedessem – como atualmente – no que tange à proteção diante dos riscos futuros. Do mesmo modo, o direito penal do cidadão degenera a figura do delinqüente habitual pelo delinqüente reincidente, e é por meio da mesma degeneração que se daria (no processo penal) a transição de pessoa (cidadão) a não-pessoa (inimigo).

Desta forma, ao descrever Jakobs descreve o direito penal do inimigo, suas características e sua existência dentro do direito penal vigente, Jakobs propõe a separação do direito penal do inimigo, ainda que não em sua totalidade, do direitoPage 51 penal dos cidadãos. Pare esse autor, seria menos contraditório evitar que os mesmos direitos se misturem, do que continuar a tolerar a existência de fragmentos do direito penal do inimigo dentro do direito penal dos cidadãos16. Por tanto, a idéia que Jakobs pretende transmitir é que se reconheça que é preferível ou menos “perigoso” para o Estado de Direito declarar abertamente a inimizade frente ao “inimigo” do que continuar como até agora: ocultando-a e mantendo-a em silêncio. O direito penal do inimigo aspira diminuir o grau de contradição que existe dentro de um direito penal composto por um conjunto de normas legítimas e ilegítimas (ou “inimiga”).

Tais tipos de propostas podem dar coerência à necessidade de um conjunto de normas “inimiga” ou excepcional, o que não deixa de ser motivo de preocupação. Assim, a existência de uma normativa “anormal” que em um período de “ameaça” salvaguarde os interesses dos “cidadãos” a sacrificar uma minoria – de não-pessoas – “perigosa e hostil”, consegue deixar de parecer insensata. Tanto mais quando se tem em mente que não é a primeira vez em que as mesmas exceções se executem ou ao menos foram levadas em conta pelo direito penal17. Mediante essa dedução e dos atributos anteriormente descritos do direito penal do inimigo é identificada a figura...

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