Por Um Processo Penal Brasileiro de Instrumentalidade Constitucional Garantista: Um Intróito à Discussão

AutorFabiano K. Clementel
CargoAdvogado. Especialista e mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS)
Páginas21-58

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O presente texto visa alo-car o processo penal brasileiro na pós-mo-dernidade. Para tanto, a tentativa será situá-lo, com suas particularidades, na teia da complexidade do fenômeno da violência. Assim, o processo penal será apreciado como um mecanismo de controle social apresentado pelo Estado brasileiro para o enfrentamento da criminalidade na sociedade contemporânea.

Por importante, tentar-se-á verificar se e como o processo penal pode compactuar com as características próprias da sociedade pós-moderna, dentre as quais a velocidade, a fluidez conceitual e a incerteza epistemológica. Pretende-se demonstrar, ainda que em breves linhas, quais os reflexos da complexificação dos fenômenos sociais no ordenamento jurídico-penal vigente, especialmente no que tange às garantias processuais penais constitucionalmente estabelecidas.

Mister é, neste contexto, enfrentar a crise do processo penal brasileiro, aproximando-o da dinâmica jurídico-social em sentido lato, especialmente no que diz às propostas de transição dos modelos estatais - vislumbradas no último século (XX) - do Estado liberal para o Estado social e, posteriormente, do Estado social para o Estado democrático de direito.

Com efeito, diante das conquistas pós 1988, decorrentes do processo de (re)democratização do Brasil, tentar-se-á demonstrar que o processo penal - em que pese caracterizado por sua ambivalência -, para cumprir o papel de instrumento de aplicação do direito penal (aqui entendido como delito e pena), deve possuir um conceito substancial de natureza jurídica, qual seja: a instrumentalidade constitucional garantista.

O propósito aqui, neste sentido, não é oferecer "a resposta verdadeira" como panaceia para todos os problemas vislumbrados no processo penal brasileiro, e muito menos se pretende que este singelo estudo seja a tábua de salvação para os diversos conflitos de interesses que subjazem aos fatores conectados à violação dos direitos fundamentais por meio da aplicação desse mecanismo de controle social.

O interesse presente, frisa-se ainda, não é discutir a (des)legitimação do direito penal, tampouco da pena, mas sim analisar a tensão vivida no processo penal hodiernamente1, numa perspectiva interdisciplinar2, demonstrando a necessidade de se fixar as garantias mínimas para os sujeitos processuais, especialmente para o (débil) acusado que será o indivíduo submetido ao processo penal concreto, até porque os critérios democráticos para responsabilização criminal das pessoas já estão especificados nos postulados de direitos e garantias processuais penais previstos na Carta Política de 1988 e na legislação ordinária.

Em que pese neste estudo a proposta seja de abertura do processo

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penal à interdisciplinaridade, é consabido que no plano prático ainda se está lejos dessa incorporação. O que se percebe é que as reformas feitas no Brasil, máxime as trazidas pela novel legislação de 2008 (Leis 11.689, 11.690 e 11.719, todas de 2008), continuam sendo pontuais, concretizadas sob o manto do pensamento único - de matriz episte-mológica eminentemente inquisito-rial -, afastadas do fundamento da existência do processo penal, qual seja: sua instrumentalidade constitucional garantista.

Nereu José Giacomolli3, neste sentido, vai ensinar que:

"Dos vários projetos de reforma do Código de Processo Penal, apresentados em 2001, três deles, após sete anos de incubação, emergem envoltos em uma magia redentora do processo penal brasileiro. Essas novas (?) leis fragmentam, além da realidade, ainda mais, o Código de Processo Penal e o próprio processo penal, mas não rompem com a base epistemológica e política da década de quarenta: supremacia do ius puniendi sobre o direito de liberdade; busca da verdade material a todo custo, inclusive com atuação ex oficio; bases inquisitoriais ofuscantes da Constituição, com alto teor de blindagem ordinária, protetiva das subestruturas (lei ordinária e atuação dos sujeitos processuais oficiais). Tudo isso incrementado pela superficialidade digital da contempora-neidade, quantificadora de resultados, sem percepção do real e da terceira via entre a simplicidade e a complexidade contemporânea (o outro, o ser humano, avida, a cidadania)."

Com isso, como bem nos disse Albert Camus em uma passagem de O Estrangeiro, "...todas as noites e todas as manhãs, desde que o cão pegara aquela doença de pele, Sa-lamano passava pomada nele. Mas, na sua opinião, a sua verdadeira doença era a velhice, e velhice não se cura"4.

Feita essa introdução, passa-se agora a contextualizar os fenômenos sociais no período da pós-moderni-dade, iniciando com a apresentação dos pilares da modernidade (suas promessas), para depois demonstrar alguns dos reflexos do descumpri-mento dessas promessas no homem contemporâneo. Posteriormente, far-se-á uma análise do processo penal na sociedade atual.

1. Entre modernidade e pós-modernidade: da direta transição do Estado liberal ao Estado democrático de direito no Brasil

Neste contexto de transição é possível traçar-se um paralelo entre modernidade e pós-modernidade. Em linhas gerais, a modernidade, iniciada aproximadamente no período entre os séculos XV e XVI, apresenta como peculiares características a reforma protestante, o humanismo renascentista, e as revoluções industrial e científica. Na realidade, a ideia que prepondera como marco temporal inicial da modernidade, sob o ponto de vista do homem, é do deslocamento da sociedade holística (estamental) medieval para outro tipo de sociedade. Com a modernidade há o (re) surgimento do individualismo5 e a crença na racionalização do sujeito organizado e progressista, o qual é considerado, nesta etapa, como o posto central dos valores do conhecimento (valorização do sujeito -antropocentrismo)6.

Esse pensamento moderno estruturou-se e dinamizou-se por cerca de quatro séculos. No século XX, contudo, especialmente ao final da década de 80 - em que pese na década de 50 vários pensadores já tivessem vislumbrado a mudança nas artes, nas ciências, nos costumes da sociedade ocidental, criando um ambiente de crise e discussão sobre a modernidade - a necessidade de substituição do paradigma moderno era latente, eis que a saturação dos grandes valores da modernidade tornou-se visível, especialmente pela inexistência de crença no futuro. Assim, a partir daquele momento passou-se a não se olhar mais para o futuro como algo promissor, o lugar do sonho, mas sim como um mero prolongamento do presente, um tanto quanto desinteressante (já não se vive mais, apenas se sobrevive)7.

Neste sentido e pensando nesse espectro de transição, é possível sustentar que a relação entre o indivíduo e o Estado, dimensionada pelo Estado social, contemporaneamente, rompeu-se. Isso porque a promoção do bem-estar social, tratada como a transição possível e necessária do Estado liberal do início do século XX para o Estado social de meados do mesmo século, na maioria dos países - como é o caso do Brasil -, não ocorreu8. Mesmo assim, ulteriormente, "constituiu-se" em terra brasilis uma Constituição democrática e cidadã (1988) como protótipo do Estado democrático de direito, considerando a pessoa humana como valor supremo, o que não fora concebido na história das pretéritas constituições brasileiras.

Em que pesem todos esses detalhes, não foi percebido que a outorga de direitos e garantias elementares aos cidadãos depende sempre de uma atuação permanente e ostensiva do Estado, que, para assim agir, precisa estar preparado e bem estruturado. Daí por que a importância da transição9 (do social para o democrático).

Luigi Ferrajoli vai lembrar que há, hodiernamente, uma crise do direito e uma crise da razão jurídica. Para esse autor:

"(...) esta crisis ha sido con fre-cuencia asociada a una suerte de con-tradicción entre el paradigma clásico del Estado de derecho, que consiste en un conjunto de límites y prohibiciones impuestos a los poderes públicos de forma cierta, general y abstracta, para la tutela de los derechos de liberdad de los ciudadanos, y el Estado social, que, por el contrario, demanda a los propios

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poderes la satisfacción de derechos so-ciales mediante prestaciones positivas, no siempre predeterminables de manera generaly abstractay, por tanto, eminentemente discrecionales, contingentes, sustraídas a los principios de certeza y estricta legalidady confiadas a la inter-mediación burocrática partidista.10

Nesse cenário, sob a ótica jurídica, é necessário que se estabeleça um sistema de garantias mínimas, onde haja um paradigma do Estado constitucional de direito11.

A dinâmica social ocorrida no último século vem atrelada aos pilares da então sociedade que se estrutura, a qual tem, como dois de seus principais eixos, o capitalismo, sob o ponto de vista econômico, e o (neo)liberalismo na perspectiva política12; aquele como escolha econômica, esse como opção política.

A crise dos pilares da modernidade é percebida com efeitos dire-tos na convivência em sociedade. Assim é que os reflexos sócio-po-líticos perceptíveis do fracasso das promessas da modernidade, sob o enfoque da violência e do controle social - na medida em que os conflitos sociais são administrados/ gestionados pelo Poder Público e a ele, dentro desse modelo estatal, cabe(ria) oferecer a paz e a fadada segurança sociais -, são, primeiramente, a pobreza13, e, como consequência "administrativa", a crimi-nalização (voltada para o passado) e a repressão de condutas por meio de uma pena (voltada para o futuro), processo esse movimentado por uma espécie de ideologia de salvação do paradigma social.

Neste sentido, o homem pro-blematiza-se porque, no auge da ambivalência do seu agir racional ordenado para a...

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