Instrumentos de proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade

AutorMárcia Rodrigues Bertoldi - Karyna Batista Sposato
CargoPossui graduação em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (1998) - Possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1997)
Páginas75-93

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Introdução

Um dos elementos ambientais organizadores do ecossistema Terra é a diversidade biológica ou biodiversidade, objeto de proteção jurídica desde o início do século XX. Primeiramente, de maneira setorial, ou seja, fracionada e amparada dentro de uma estratégia de zonas especialmente protegidas - parques nacionais, jardins botânicos, zonas silvestres, reservas naturais, etc.- e de conservação de determinadas espécies da fauna e flora. Posteriormente, coincidindo com o sucesso da globalização,

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de forma transetorial: a biodiversidade entendida como um todo indissociável. Neste contexto é aprovada a Convenção sobre a diversidade biológica (CDB).1

O conceito de biodiversidade compreende três elementos: a diversidade de espécies da fauna, da flora e de microorganismos; a diversidade de ecossistemas; e a diversidade genética dentro de cada espécie.

De fato, são estes os elementos que norteiam a definição contida no artigo 2o da

CDB:

Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.

A biodiversidade é a total variedade de espécies, seus genes e ecossistemas que habitam o Planeta Terra, constituindo uma das propriedades essenciais do meio ambiente, do equilíbrio da biosfera2 e das relações entre os seres vivos.

Isto se dá porque a biodiversidade é indispensável para manter os processos de evolução do mundo vivo; tem um papel dentro da regulação dos grandes equilíbrios físico-químicos da biosfera, notadamente ao nível da produção e da reciclagem do carbono e do oxigênio; contribui para a fertilidade do solo e sua proteção, bem como para a regulação do ciclo hidrológico; absorve e decompõe diversos poluentes orgânicos e minerais e participa, por exemplo, da purificação das águas. (LÉVÊQUE, 1999, p. 15-16).

É fonte econômica direta e base das atividades agrícola, pesqueira, florestal e das emergentes indústrias biotecnológica e nanotecnológica. Portanto, juntamente com outros recursos naturais, indispensável para a sobrevivência da humanidade e da própria natureza. Assim, grosso modo, a biodiversidade poderia ser definida como a vida sobre a Terra e, juntamente com a água, o ar e o solo, o bem mais valioso que dispomos. Este valor é o resultado dos aspectos ecológico, genético, social, econômico, científico, cultural, histórico, geológico, espiritual, recreativo e estético que compõem a diversidade biológica.

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Por sua vez, a diversidade genética compreende o material genético que os recursos genéticos (ou patrimônio genético, expressão utilizada no Brasil) contidos em cada espécie, possuem. É a diversidade em nível genético que permite que os organismos vivos se perpetuem no tempo e se distingam entre si. Assim, a variedade de espécies é possível em razão da diversidade genética, aquela que se constrói a partir de informação hereditária que um organismo recebe de seu progenitor na reprodução e que o distinguirá de qualquer outro organismo da mesma espécie pela singularidade do genoma que possuirá.

O patrimônio genético é "a expressão tangível da diversidade genética e possui um potencial extraordinário, sobretudo nos campos da alimentação e farmacêutico (PÉREZ SALOM, 1997, p. 373) juntamente, em muitas ocasiões, do componente intangível: o conhecimento tradicional associado das comunidades indígenas e locais. Por conseguinte, constituem um patrimônio natural/intelectual de difícil valoração e de dimensões sociais, econômicas, culturais e ecológicas capazes de desempenhar um papel transcendental no desenvolvimento da humanidade e na estabilidade ambiental planetária.

À dimensão material se agrega o conhecimento, as inovações e práticas consuetudinárias sobre a biodiversidade, uma dimensão imaterial ou patrimônio material imaterial de saberes de populações que vivem em e de ecossistemas e suas espécies.

O conhecimento tradicional, saber tradicional, etnoconhecimento associado à diversidade biológica ou ainda o componente intangível, imaterial da biodiversidade, aquele que é particular das comunidades tradicionais -indígenas e locais- é a "informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético" (art. 7o, IIdaMP2186-16).3

Esse componente compreende: desde técnicas de recursos naturais até métodos de caça e pesca, conhecimentos sobre os diversos ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas de espécies e as próprias categorizações e classificações de espécies de flora e fauna utilizadas pelas populações tradicionais (SANTILLI, 2005, P.192).

Também, se refere ao extrativismo, uso e conhecimento de fibras, sementes, óleos, resinas; ao conhecimento e manejo do solo, da água e sua função; a tecnologias de feitura de casas, instrumentos de trabalho; ao conhecimento sobre os astros, planetas, satélites e sua relação com as práticas espirituais e místicas; à produção artística e visão estética originárias do uso de recursos naturais, tais como tinturas, cerâmicas, etc.(DIEGUES, 2001, P.184). Em suma, um amplo conhecimento do mundo natural e sobrenatural.

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É de observar-se que a MP 2186-16 de agosto de 2001 - que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização - não oferece, sem embargo, um conceito de comunidades indígenas e tão somente de comunidades locais4, conceito este disposto no Estatuto do Índio (Lei 6001/1973, art. 3, II): "um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados".

Conforme explicam Da Cunha e Almeida, o que todos esses grupos possuem em comum é o fato de que tiveram uma história de baixo impacto ambiental e de que têm no presente interesses em manter ou recuperar o controle sobre o território que exploram. E, acima de tudo, estão dispostos a uma negociação: em troca do controle sobre o território, comprometem-se a prestar serviços ambientais (DACUNHA, 2001, P.184).

Os conhecimentos tradicionais são práticas, experimentações e inovações consuetudinárias dinâmicas, transmitidas entre gerações comumente via oral; constituem a memória viva, a história desses povos.

Com a entrada em vigor da CDB em 1993, o peculiar predicado desses saberes desfrutou de um horizonte de possibilidade de proteção jurídica5. Resulta que pela primeira vez na esfera jurídica internacional, os conhecimentos tradicionais receberam a devida atenção, tanto no preâmbulo como em artigo próprio. O artigo 8j incita os Estados Parte a respeitar, preservar e manter estes saberes, bem como criar mecanismos para repartir justa e equitativamente os benefícios derivados de seu uso, o que abrange um sistema de direitos de propriedade intelectual.

Não obstante, em 2003, uma vez mais esses saberes foram olhados juridicamente. A Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial6 contempla os saberes tradicionais associados à biodiversidade e promove o respeito à

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diversidade cultural e à criatividade humana. No Direito brasileiro o tema passou a ter tratamento normativo, embora emergencial através da MP 2186-16/2001.

Essa normativa afirma que a proteção do conhecimento tradicional associado não afetará, prejudicará ou limitará direitos relativos à propriedade intelectual, porém ainda não contamos, no Direito brasileiro, com legislação pertinente e o clássico sistema, que confere direitos de exclusividade aos indivíduos e às empresas por suas inovações ou invenções, não se adéqua a esse particular modo de criar.

Também, cabe referir a proteção constitucional dispensada no artigo 216 sobre os elementos que constituem o patrimônio cultural e os bens de natureza material e imaterial. Os conhecimentos tradicionais se ajustam ao inciso II: os modos de criar, fazer e viver.

Em palavras de Inês Soares, por isso, os conhecimentos tradicionais são considerados pelo ordenamento jurídico brasileiro como gênero cultural, que abriga elementos culturais (pesca, caça, saberes sobre propriedades medicinais de uma planta etc.) com potencialidade de serem bens culturais brasileiros. No entanto, vale destacar que, além do valor de referência ligado à seara patrimonial, os conhecimentos tradicionais são portadores de outros valores e interesses, também relevantes juridicamente, inclusive para a preservação de seus elementos: de manifestação cultural, de exercício de direitos intelectuais, de direito ao território em que vivem as comunidades tradicionais, entre outros. (SOARES, 2009, p. 197)

A proteção jurídica, tanto nacional como internacional, nasceu da necessidade de promover a continuidade do saber tradicional, ameaçado pela homogeneização cultural, bem como, de garantir a distribuição dos benefícios gerados do uso desses recursos com a comunidades possuidoras e reduzir a biopirataria. Sobre esse aspecto

Baptista assinala: a apropriação de informação...

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