O Direito Internacional dos Direitos Humanos: espaço transnacional para reivindicação de injustiças?

AutorPaula Spieler
CargoPossui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003)
Páginas94-104

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Introdução

Nancy Fraser, em Scales of Justice, parte de duas imagens para repensar a questão da justiça num mundo globalizado: a balança e o mapa. A primeira se refere à balança moral através da qual reivindicações distintas devem ser analisadas por um julgamento imparcial, sendo o principal desafio lidar com as diferentes visões sobre o que é justiça: redistribuição, reconhecimento ou representação. Já a segunda imagem diz respeito ao espaço geográfico para representação das relações. Nesta, a questão central é enfrentar as diferentes visões sobre quem é o sujeito1 da justiça: cidadãos ou humanidade global ou comunidades transnacionais de risco? (FRASER, 2010, p. 5).

No presente trabalho, focaremos no remapeamento, uma vez que é nessa imagem que surgem dois questionamentos: (I) se existem de fato espaços transnacionais para reivindicar justiça; e (II) quem são os sujeitos legitimados a fazer tais reivindicações. Essas questões podem ser analisadas conjuntamente com a ideia de proteção da pessoa pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos2 (DIDH), uma vez que tanto Fraser quanto o DIDH partem do pressuposto de que vivemos num mundo pós-Westfaliano e, consequentemente, de que precisamos de espaços transnacionais para reivindicar justiça e a proteção dos direitos humanos.

Nesse sentido, o principal objetivo do presente trabalho é analisar se o Direito Internacional dos Direitos Humanos, em geral, e os mecanismos de proteção dos direitos humanos3, em particular, contribuem para uma nova teoria da justiça social que consiga lidar com os problemas da globalização. Em especial, almeja-se verificar se os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos podem ser considerados, na prática, como um espaço para a luta contra injustiças globais e para ampliar o acesso dos sujeitos para além da delimitação da ordem Westfaliana.

Para tanto, o trabalho está estruturado da seguinte forma: (I) o conceito de justiça para Nancy Fraser; (II) a internacionalização dos direitos humanos e o uso de seu discurso; (III) a relação entre soberania e DIDH; e (IV) o sujeito do DIDH. Almeja-se, com isso, demonstrar que ainda que o DIDH constitua mais um espaço transnacional para lutar contra injustiças, ele não alcança todas as pessoas, sobretudo porque está baseado na ideia de que o Estado soberano ainda é o principal ator da ordem internacional.

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I Fraser: contribuições para o estudo da justiça hoje

Fraser propõe uma teoria de justiça tridimensional (cultural, econômica e política) para enfrentar os problemas de um mundo globalizado. Para tanto, a autora revisita sua teoria de justiça (composta por duas dimensões: reconhecimento e redistribuição) adicionando uma terceira dimensão (representação) por entender que a mesma tinha uma lacuna ao não reconhecer a autonomia relativa das desigualdades enraizadas na constituição política da sociedade - em oposição à estrutura econômica ou ordem estatal.

Além de possibilitar o enfrentamento de injustiças meta-políticas (FRASER, 2010, p. 6 e 16), esta dimensão questiona os critérios de pertencimento social, ou seja, os critérios que determinam quem é considerado membro de determinada comunidade. Sendo assim, a terceira dimensão especifica o alcance das outras dimensões: quem está incluído e quem está excluído da possibilidade de reivindicar uma distribuição justa e o reconhecimento recíproco. Nesse sentido, a dimensão política é de extrema importância uma vez que permite o questionamento da relação entre cidadania e reivindicação por justiça: "Do the boundaries ofthe political community wrongly exclude some who are actuallyentitled to representation?" (FRASER, 2010, p. 18).

Atrelada à dimensão política está a questão da falta de representação, que pode ser dividida em dois tipos: política-ordinária (ordinary-political) e misframing. Enquanto que a primeira diz respeito a um problema de representação dentro de fronteiras já delimitadas, a segunda se refere ao processo de estabelecimento de fronteiras. O segundo nível, ou misframing, tem repercussão gravíssima, pois delimita quem é membro e não membro de uma comunidade e, assim, quem está intitulado a reivindicar questões relacionadas à distribuição, reconhecimento e representação política-ordinária. A exclusão de determinadas pessoas da delimitação da justiça constitui um tipo de meta-injustice, na qual uma pessoa é privada da oportunidade de fazer reivindicações por justiça dentro de uma comunidade política, tornando-se, assim, uma "não pessoa" em termos de justiça (FRASER, 2010, p. 20).

No cenário internacional, Fraser afirma que apesar do modelo de Estado soberano ter sido por muito tempo incontestado, a globalização colocou a questão da delimitação (frame) na agenda política. Para a autora, o arcabouço Keynesiano-Westfaliano tem sido considerado como um instrumento de injustiça (FRASER, 2010, p. 21), já que divide o espaço político de tal forma que não permite que pessoas pobres ou excluídas de sua comunidade questionem as forças que as oprimem. Sendo assim, não surpreende o fato de misframing ser considerada a injustiça basilar da era globalizante. Nesse cenário, surge a questão central: como podemos integrar as lutas contra falta de reconhecimento, má-distribuição e falta de representação dentro de uma estrutura pós-Westfaliana?

Para enfrentara questão de misframing num mundo globalizado, Fraser distingue entre dois tipos de politics of framing: afirmativa ou transformadora. A primeira não questiona a ordem Westfaliana em si, e sim as fronteiras existentes, reivindicando, portanto, novas delimitações. O sujeito da justiça continua a ser o cidadão. Já a

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concepção transformadora entende que a gramática Westfaliana de frame-setting não consegue abranger causas estruturais de várias injustiças do mundo globalizado, uma vez que não são especificamente territoriais (FRASER, 2010, p. 22-23). O sujeito da justiça é, para esta abordagem, quem sofre injustiça, não havendo uma relação necessária com a demarcação territorial do espaço.

Nesse sentido, a abordagem transformadora de framing tem por objetivo substituir o princípio territorial estatal da ordem Westfaliana com um ou vários princípios pós-Westfalianos. Visa-se alterar o sujeito da justiça, assim como o modo de sua constituição. Fraser salienta que ainda não sabemos como essa ordem pós-Westfaliana seria, mas que o princípio do all-affectedseria o candidato mais promissor. De acordo com este princípio, "all those affected by a given social structure orinstitution have moral standing as subjects ofjustice in relation to it” (FRASER, 2010, p. 24).

Segundo a autora, ambientalistas, por exemplo, estão utilizando este princípio para reivindicar justiça. Eles alegam que questões não ou extra territoriais afetam suas vidas. Ao invocar um princípio pós-Westfaliano, esses movimentos objetivam alterar a própria gramática de frame-setting, bem como participar do processo de determinação do sujeito (FRASER, 2010, p. 26).

Nesse contexto, Fraser ressalta que uma questão central para ser enfrentada em relação ao sujeito da justiça é: qual é o arcabouço pertinente através do qual podemos refletir sobre os requisitos da justiça num mundo globalizado? Esta questão está atrelada à noção, para a autora, de que o contexto atual é de uma "justiça anormal"4 (FRASER, 2010, p. 49), pois não há concordância quanto aos sujeitos da justiça (quem está intitulado a fazer reivindicações) e sobre a quem (agência ou agency) se deve reivindicar.

Para Fraser, o lado positivo da justiça anormal é a expansão do campo de...

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