Inventário no Brasil e Contas Bancárias no Uruguai: Unidade ou Pluralidade Sucessória?

Autor1.Silvio Javier Battello - 2. Elías Mantero
Cargo1. Doutor em Direito (UFRGS). Especialista em Direito Empresarial (PUCRS). Coordenador Acadêmico do Curso de Pós-graduação em Direito Civil Aplicado da UFRGS. - 2. Mestre em Direito (Universidade de Montevidéu). Professor na Faculdade de Direito da Universidad de la República (Uruguai).
Páginas139-153

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1 Introdução

O presente trabalho analisa um caso de Direito Internacional Privado, mais especificamente, uma questão sucessória.

Sabe-se dos estreitos laços que vinculam o Brasil com o Uruguai, e de que muitos brasileiros (principalmente os da região sul) tiram feiras no país vizinho, geralmente na conhecida cidade balneária de Punta del Este, assim como compram imóveis e abrem contas bancárias. Destacamos que no Uruguai é possível realizar depósitos bancários em dólares americanos, motivo pelo qual muitos brasileiros escolhem poupar suas economias no Uruguai, usufruindo, ainda, de algumas vantagens tributárias.

Com essas considerações, partimos da seguinte premissa:

"A", cidadão brasileiro, domiciliado e residente na cidade de Porto Alegre, viúvo, falece na cidade antes referida sem deixar testamento. Deixa como herdeiros seus filhos naturais "B" e "C", ambos maiores.

"B" inicia o inventário de seu progenitor. No processo são arrolados, como patrimônio do autor da herança, além dos bens situados no Brasil (imóveis, carros, depósitos bancário, etc.), cópia de depósito bancário realizado pelo de cujusPage 140no banco 'X', no Uruguai, efetivado 1 ano antes da sua morte, pelo valor de U$S 300.000,00 (dólares americanos).

Os valores depositados no Uruguai formam parte do processo brasileiro? E caso a resposta seja afirmativa: de que forma os fundo depositados no Uruguai se integralizam ao espólio brasileiro?

Importa salientar que o inventário de A instaura-se no Brasil conforme determina a regra do art. 89, II, do Código de Processo Civil, que determina:

Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:

  1. proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional.

No que tange ao Direito material, aplica-se o Direito brasileiro, por força do caput do art. 10 da Lei de Introdução ao Código Civil, que reza:

Art. 10. A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a situação dos bens.3

Conforme determina o Código Civil brasileiro, os herdeiros necessários de "A" são "B" e "C", a quem lhes corresponde, por partes iguais, o conjunto de bens, materiais e imateriais do autor da herança4.

No entanto, devemos verificar se o Direito uruguaio reconhece a jurisdição brasileira em matéria sucessória, e se a Lei brasileira também regulamenta os depósitos bancários de "A" no Uruguai.

2 A sucessão de ab intestato no Direito Internacional Privado

As normas5 que regulamentam as sucessões ab intestato, independentemente do país, pretendem, de modo especial, dar respostas a duas interrogantes:

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a)quem deve herdar os bens do autor da herança, e b) quanto corresponde a cada um dos legitimados.

Quando a situação sucessória é estritamente nacional, isto é, quando todos os elementos do caso se vinculam exclusivamente a país determinado (por exemplo, o Brasil), o Direito material e processual do Estado dão respostas claras a essas questões.

Entretanto, quando na situação sucessória aparecem elementos alienígenas (direitos, bens ou sujeitos localizados em mais de um Estado), as respostas às interrogações antes formuladas perdem clareza, porque cada país regulamenta as questões sucessórias conforme seus próprios interesses nacionais. Para uma melhor compreensão, podemos dividir as diversas legislações nacionais em dois grandes sistemas: o romano e o germânico6.

2. 1 O Sistema Romano

O herdeiro é o eixo ao redor do qual giram todos os conceitos na matéria. O título de herdeiro constituía uma condição subjetiva de capacidade para a aquisição universal do patrimônio do de cujus. Nos primeiros tempos de Roma, a família não se dividia com a morte do pater familias, sendo o herdeiro sucessor do pátrio poder sobre o grupo agnaticio ou a gens, e, conseqüentemente, também dos bens. A herança considerava-se mais uma forma de transpasso da soberania sobre o grupo que um transpasso patrimonial.

As características deste sistema eram: 1. liberdade absoluta do testador; 2. a responsabilidade ultra vires do herdeiro pelas dívidas do de cujus; 3. a forma subsidiária da herança ab intestato que só se utiliza em ausência expressa de vontade do autor da herança; 4. o objeto da transmissão era uma universum jus.

A elaboração do conceito de patrimônio está associada às teorias elaboradas sobre a hereditas yacens, isto é, o patrimônio deixado pelo titular até o momento de sua assunção pelo sucessor. Verificamos que no Digesto a hereditas yacens se comportava como se fosse uma pessoa ("... persona vice fungitur"). Patrimônio relicto e sujeito de direito eram sinônimos, e por tal motivo não havia dificuldade em afirmar que esse 'sujeito' (o patrimônio) era único, com uma únicaPage 142lei que o regulamentava, dando assim nascimento à teoria da Unidade em matéria sucessória.

Somente discreparam os doutrinadores do Direito Internacional Privado na preferência pela lei que devia regulamentar a sucessão: a lei do último domicílio ou a lei da nacionalidade do morto.

2. 2 O Sistema Germânico

No sistema seguido pelos povos germânicos, o grupo era o dono dos bens, adotando-se um condomínio pro indiviso.

Muito mais importante que a propriedade, era determinar quem devia ser considerado como o mais apto para administrar o conjunto de bens pertencentes a todos os integrantes do grupo.

O regime de propriedade germânico não teve o preciosismo romano que levaram à teoria da unidade sucessória. As duas figuras criadas no âmbito sucessório foram a "Gesamte Hand" (mão em comum) e a "Genossenschaft ”. Mas nenhuma delas conseguiu eclipsar o conceito anterior de que se tratava de um conjunto de bens pertencentes em condomínio a todo o grupo, prevalecendo o interesse familiar sobre o individual.

Como principais conseqüências se destacam: 1. limitado âmbito para disposições de última vontade; 2. responsabilidade limitada do herdeiro pelas dividas deixadas pelo autor da herança (intra vires hereditatis); 3. a distinção entre móveis e imóveis conforme a capacidade do de cujus para dispor deles mortis causæ (limitada principalmente aos bens móveis); 4. o patrimônio é um conjunto de bens isolados (universum facti).

O mesmo fundamento (de manter a unidade familiar por meio do regime de bens) explica a proibição do direito germânico à transmissão inter vivos ou mortis causæ entre cônjuges para evitar a confusão de patrimônios entre os distintos grupos ou famílias. Esse sistema (germânico) se aplicou no norte da França e passou ao Código Civil francês.

De forma mais específica sobre as questões de Direito Internacional Privado, na Idade Media se afirmou a tendência de submeter os bens móveis à lei pessoal do proprietário e os imóveis à lei de sua situação. Para os móveis elaborou-se a fórmula mobilia sequitur personam, e para os imóveis, a lex rei sitae.

Por motivos mais pragmáticos ou econômicos (crematisticos), na época feudal predominou a teoria romana da sucessão. Como os senhores feudais cobravam um direito para que os herdeiros "se colocassem na possessão da herança", a "saisine ", os vassalos apoiaram o rei na luta contra os senhores feudais e cobrou força a concepção romana que considerava que a transmissão da herança operava de pleno direito com a morte "le mort saisif le viv" - a morte põe em possessão da herança aos vivos.

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Ambos sistemas repercutiram nas legislações do mundo.

O Sistema Romano inspirou a Unidade da Lei Aplicável e o Sistema Germânico, o da pluralidade de leis para regulamentar as sucessões conectadas com diversos ordenamentos jurídicos, com maior ou menor incidência na questão da jurisdição internacional.

Destacamos que "unidade" sucessória implica uma única lei para regulamentar toda a herança, com independência de que existam bens situados em diferentes países, em quanto que "pluralidade" sucessória significa que a herança se "quebra" ou se "fragmenta" em tantas leis distintas como países em que o autor da herança tenha deixado bens.

3 A Regulamentação no Direito Uruguaio 3 1 Competência Internacional

As normas internas de Direito Internacional Privado Uruguaio, Apéndice del Código Civil7, filiam-se ao sistema da pluralidade de sucessões ou de fracionamento, próprio do sistema germânico. A adoção desse sistema implica, necessariamente, o dever de dar-se início a tantos juízos sucessórios quantos forem os Estados nos quais o de cujus tenha deixado bens, e cada uma dessas sucessões será regulamentada pela lex rei sitae, isto é, a lei do lugar onde estejam localizados os bens8.

Quintín Alfonsín (o mais renomeado dos internacionalistas uruguaios) destaca que, conforme o sistema sob análise, devem iniciar-se sucessões parciais, em todos os Estados em que o autor da herança deixou bens. Cada processo judicial terá em conta, exclusivamente, os bens situados em seu respectivo Estado. Por conseqüência, cada juízo aplica somente a lei nacional9.

Deve enfatizar-se que as decisões proferidas nos processos de cada Estado em que tenha sido instaurada sucessão, terão, em principio, somente eficácia territorial.

Por não existir atualmente Convênios ou Tratados entre Brasil e Uruguai em matéria de sucessões, o foco desta análise são exclusivamente as normas uruguaias internas de Direito Internacional Privado sobre a matéria.

Assim, o artigo 2.401, inciso 1o, do Código Civil Uruguaio, estabelece:

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São competentes para conhecer nos juízos a que dão lugar as relações jurídicas internacionais os juizes do Estado a cuja lei corresponde o conhecimento de...

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