Jogando limpo: Uma análise da inelegibilidade por “ficha suja”

AutorNaira Gomes Guaranho de Senna
CargoAdvogada; Ex-monitora de direito constitucional da Faculdade de Direito da UFF.
Páginas61-87

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I Introdução

No jogo* da eleição, da democracia representativa, dois são os jogadores principais: os que votam e os que são votados. Aqueles escolhem os que irão representá-los, através de eleições periódicas e justas. Porém, nem todos estão habilitados a jogar esse jogo. Suas regras constitucionais vedam aos menores de 16 anos e estrangeiros, por ex.,Page 62participarem como sujeitos passivos, recebendo os votos. Dessa forma, algumas restrições são estabelecidas para a continuação do jogo democrático, impedindo que alguns o joguem 2 .

Chama-se de inelegibilidade as restrições à participação no pleito eleitoral daqueles que são sujeitos passivos (candidatos). Elas são limites impostos ao direito fundamental de elegibilidade em razão de princípios como o da moralidade para o exercício do mandato, da lisura das eleições, da impessoalidade, ou seja, em nome da salvaguarda do próprio princípio democrático.

Não é recente a crise da democracia brasileira, que consiste na perda do sentimento de representação pelos representados em relação aos seus representantes. Os inúmeros casos de corrupção política e eleitoral, a impunidade dos crimes contra o interesse público e a reeleição de candidatos não condenados por crimes cometidos durante o mandato formam um círculo vicioso que desestabiliza as regras desse jogo. A recuperação da saúde da democracia representativa é matéria de urgência para conservação da governabilidade do país. Por isso, tanto se exige uma reforma política.

No presente texto, propomos uma análise da inelegibilidade por “ficha suja”. Os candidatos com essa qualificação são os que possuem no mínimo uma condenação criminal ou de improbidade administrativa, sem o trânsito em definitivo da sentença. Essa restrição é entendida como um pequeno passo em direção à moralização do exercício do mandato eletivo. Ao final, a recente aprovação da lei da “ficha limpa” será estudada como uma reação da sociedade contra os males atuais democracia representativa brasileira.

II Pressupostos conceituais

O regime político brasileiro, instituído pela Constituição de 1988, é “um regime democrático fundado no princípio da soberania popular”. São várias as definições de democracia, mas em seu núcleo reside a soberania popular e não a de um grupo apenas, como ocorre em Estados oligárquicos, despóticos, etc.

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A democracia indireta ou representativa consolida-se no Estado democrático moderno onde o poder público é formado por pessoas do povo escolhidas por um eleitorado o mais universalizado possível. A representação foi a alternativa para o fim do Estado monárquico absolutista ou despótico e para o exercício do poder estatal, pois era impossível que todos decidam sobre tudo 3 a todo momento (democracia direta 45 )6 ”.

Alguns autores discordam da tese de que a representação foi uma boa alternativa para a democracia direta nas sociedades complexas, pois, de fato, ela teria sido pensada desde o início como uma forma de afastar a presença popular do governo, reservando este apenas para uma elite que possui os meios de se eleger 7 . Essa não foi a tese adotada pelos Estados democráticos contemporâneos.

A democracia representativa significa, de modo simplificado, que as deliberações coletivas não são tomadas diretamente pelos cidadãos eleitores, mas por eleitos para tal mister 8 . Então, são dois os sujeitos da representação democrática: o representante e oPage 64representado. O direito político de votar e o de ser votado são fundamentais para a continuação desse regime político.

É o direito de ser votado que merecerá mais atenção nestas linhas. “Direito político de ser votado” recebe outras denominações, como, por exemplo, elegibilidade, cidadania passiva e capacidade eleitoral passiva. Todas significam o mesmo: a capacidade de participar do procedimento eleitoral como candidato – sujeito passivo da eleição910 . Adriano Soares da Costa entende que a elegibilidade é mais do que o direito de receber votos. Consiste ainda em praticar atos de campanha, consubstanciando um direito público subjetivo 11 . Para preservar a lisura das eleições e da própria democracia, a elegibilidade não é conferida a todo povo. Concorrer ao pleito eleitoral significa preencher as condições de elegibilidades constitucionais e legais, além de não incorrer em inelegibilidades.

São condições de elegibilidade constitucionais aquelas previstas no art. 14, §3º, CF 1988: a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição, a filiação partidária e a idade mínima, dependendo do cargo concorrido. Existem outras condições, denominadas por alguns doutrinadores 12 de impróprias, apenas por não estarem junto às demais, mas em outros dispositivos ou diplomas: o analfabetismo (art. 14,§4º), indicação em convenção partidária (art. 94, §1º, I, Código Eleitoral), tempo de filiação partidária (art. 18, Lei Orgânica dos Partidos Políticos – Lei 9.096/95) e as condições especiais para militares (art. 14,§ 8º, CF).

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As inelegibilidades são limitações constitucionais ou legais sobre a candidatura. Segundo Pedro Henrique Távora Niess, a inelegibilidade é uma barreira para o exercício regular do mandato político, seu sentido é amplo, pois abrange a ausência de condições de elegibilidade, as inelegibilidades estrito senso e as incompatibilidades. Assim, aquele que não preenche qualquer das condições de elegibilidade é inelegível de forma indireta 1314 . As inelegibilidades foram previstas na Constituição, como mencionado, e podem ser estabelecidas especificamente na lei complementar, conforme dispõe o art. 14,§9º. As inelegibilidades infraconstitucionais foram disciplinadas na Lei Complementar 64 de 1990.

Existem ainda as incompatibilidades que buscam conferir um tratamento isonômico na disputa eleitoral, preservando, dessa forma, sua lisura. Consistem no impedimento de assumir o mandato eletivo por quem esteja no exercício de determinadas funções públicas ou particulares, tendo em vista a incompatibilidade de ambas. As incompatibilidades estão nos artigos 1º, II a VII, e parágrafos 1º a 3º, da Lei Complementar 64/1990, e 14, parágrafos 6º e 7º, da Constituição Federal 15 .

Diante desse resumido panorama, a cidadania passiva (o direito de ser votado), no âmbito de um Estado democrático, é considerada um direito fundamental. É direito político formal e materialmente fundamental 16 . Do outro lado, as inelegibilidades são restrições impostas ao seu exercício. As restrições aos direitos fundamentais são comuns no âmbito de uma sociedade complexa e plural cuja Constituição possui valores e direitos opostos e não-absolutos 1718 . As restrições ao direito político de ser votado podem serPage 66justificadas em nome de outros princípios sagrados pelo constituinte. A impossibilidade de candidatura dos políticos “ficha suja” é uma dessas restrições ao exercício da elegibilidade. Porém, antes de enfrentarmos o tema central desse texto, vejamos algumas questões teóricas sobre a teoria da restrição dos direitos fundamentais políticos.

III Questões teóricas sobre a restrição dos direitos políticos

Como19 não existem direitos absolutos, é possível restringir o direito fundamental de ser votado. A premissa da relatividade dos direitos fundamentais é adotada pela teoria externa dos direitos fundamentais. As teorias internas dos direitos fundamentais 20 , de outro lado, sustentam a inviabilidade de restrições ou limitações impostas ao exercício dos direitos. Seguindo essa última teoria, a única tarefa reservada ao legislador é regulamentar o direito fundamental, definindo o seu modo de exercício, e ao juiz compete configurar quais posições jurídicas pertencem ao âmbito de proteção 21 do direito e quais não fazem parte deste.

A teoria externa, por sua vez, considera os direitos fundamentais, a priori, como direitos prima facie – o oposto da teoria contraposta, que os considera de antemão direitos definitivos (regras). Ou seja, o âmbito de proteção abarca todas as posições jurídicas, ações ou estados possíveis de proteção pelo dispositivo do direito fundamental. O direito garantido de forma definitiva, para esta segunda corrente, é alcançado após a restriçãoPage 67legislativa ou “nos casos concretos, após sopesamento ou, se for o caso, aplicação da regra da proporcionalidade” 22 . A teoria externa parte de um modelo de princípios, pois entende os direitos fundamentais como direitos prima facie que podem ser restringidos por regras ou outros princípios 23 .

A intervenção estatal ao âmbito de proteção dos direitos fundamentais é sempre uma restrição que só é autorizada se for fundamentada na Constituição. Caso a intervenção não se fundamente em outros valores constitucionais, estar-se-á diante de violação aos direitos fundamentais 24 . Segundo Robert Alexy, um grande expoente dessa tese, não há que se falar em “configuração do direito fundamental”, pois toda ingerência ao direito fundamental é uma intervenção, mesmo que necessária para a sua promoção e otimização 25 .

É importante observar que o legislador ou o juiz na sua tarefa deve ter dois objetivos: evitar restrições indevidas ou inconstitucionais e ainda promover esses direitos, para reforçar a sua proteção. Os direitos fundamentais não são apenas subjetivos, mas possuem uma dimensão objetiva que orienta a atividade legislativa, judicial e administrativa. A restrição legislativa ou aquela feita pelo juiz não significa a desvalorização do direito, mas “traduz a idéia de que a limitação imposta se faz necessária para a compatibilização do âmbito de proteção daquele direito com outros valores...

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