Jornada de trabalho e proteção aos direitos fundamentais do trabalhador

AutorJosé Antônio Ribeiro de Oliveira Silva
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, Titular da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara (SP), Gestor Regional (1º grau) do Programa de Prevenção de Acidentes do Trabalho instituído pelo Tribunal Superior do Trabalho
Páginas25-90

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1.1. A normatização do tempo de trabalho
1.1.1. O tempo em geral e o tempo de trabalho

O tempo é um fenômeno que tem fascinado os estudiosos no curso da história. Antes mesmo das medições do tempo com critérios científicos, ele era observado pelas pessoas e analisado por filósofos e demais estudiosos da natureza. Ademais, a medição do trabalho prestado por conta alheia, desde os primórdios, levou em consideração, entre outros fatores, a extensão temporal em que o trabalho é destinado a outra pessoa.

Nas palavras de Aparicio Tovar1: "O tempo, como não poderia ser de outro modo, tem sido, é e será um tema central no Direito do Trabalho, do mesmo modo que tem sido e é na História da Filosofia". Esse autor recorda que Aristóteles, em sua Física, já refletia que "o tempo consome, que tudo envelhece sob a ação do tempo, que tudo se apaga com a ação do tempo". Daí o poder imenso que possui o tempo. Não obstante, "na mensurabilidade do tempo entra o intelecto, logo o tempo que nos rodeia, o tempo do mundo deve se compatibilizar de algum modo com a subjetividade, com o tempo da alma" (destaques no original). Por isso Ricoeur2, em seu Tiempo y narración, expôs que o tempo fascina o filósofo, apresentando-lhe, ao mesmo tempo, as dificuldades de sua demonstração fenomenológica, pois o tempo é uma "palavra invencível que, antes de toda filosofia e apesar de toda nossa fenomenologia da consciência do tempo, ensina que não produzimos o tempo, senão que ele nos rodeia, nos envolve e nos domina com seu temível poder".

Assim, para a compreensão do significado do tempo em nossas vidas, no contexto atual, é necessário um aporte filosófico, antropológico, político e jurídico de sua configuração. Em definitivo, todo o universo é compreendido sob a dinâmica do fenômeno tempo. "Medimos o universo por seus giros temporários, desde o cosmos até o átomo, tanto em suas distâncias de anos-luz como na inconcebível oscilação que somente pode expressar as fórmulas."3

Ademais, é possível sustentar que o ser humano contemporâneo se tornou escravo do tempo. Como observa Ricardo Antunes4, nas civilizações da Antiguidade, a sociedade não tinha a mesma necessidade de medir o tempo que as sociedades industrializadas da Era Moderna. Nestas sociedades, o tempo exerce de fora para dentro, por meio de relógios, calendários e outras tabelas de horários, "uma coerção que se presta eminentemente para suscitar o desenvolvimento de uma auto-disciplina nos indivíduos".

Por isso, o tempo apresenta tamanha importância para o Direito do Trabalho, pois o tempo de trabalho ocupa uma posição de centralidade na normatização deste ramo do Direito. É possível susten-

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tar que o tempo de trabalho, mais precisamente sua limitação pela normativa estatal, que veio à luz após as lutas dos trabalhadores e dos sindicatos por melhores condições de vida às pessoas que vendiam sua força de trabalho, é parte inseparável da própria gênese do Direito do Trabalho. Daí por que, ainda que haja outros temas preciosos no estudo deste ramo do Direito, como assédio moral, teletrabalho e tantos outros, ainda hoje os dois temas fundamentais desta disciplina são o salário e a limitação da jornada de trabalho, assim como o era no surgimento das primeiras normas que procuraram estabelecer limites à obtenção do lucro empresarial, inerente ao processo de produção capitalista.

Francisco Trillo5, estudando os objetivos da normatização da jornada de trabalho, afirma que a relação entre o tempo de trabalho e o lucro empresarial é a quinta-essência do processo de produção capitalista. Daí "a demanda empresarial pelo maior tempo de trabalho possível", o que "tem incidido na normatização do tempo de trabalho fazendo aparecer limites oponíveis à função reguladora (original) deste". Assim, a busca pelo maior lucro empresarial propiciou o surgimento de jornadas extenuantes de trabalho, as quais motivaram, "através da luta do movimento obreiro, a fixação progressiva de uma regulação do tempo de trabalho que albergasse em seu código genético, entre outros e fundamentalmente, o objetivo da proteção à saúde dos trabalhadores".

Não se pode olvidar de que o trabalhador não deixa de ser pessoa quando entrega parte de seu tempo de vida ao empregador, para que seja possível a prestação dos serviços pactuados no contrato de trabalho. É dizer, o trabalhador vende sua força de trabalho, física e/ou intelectual, porém não perde sua condição humana. Por isso, o tempo de trabalho não pode impedir à pessoa o exercício de seus direitos, tampouco lhe impedir o desenvolvimento de sua personalidade, de modo que o trabalho deve propiciar que a dignidade da pessoa humana do trabalhador seja protegida. Por isso, fala-se tanto hoje em dia, na Espanha, em conciliação da vida pessoal, familiar e laboral.

Em outras palavras, o trabalhador trabalha "para ganhar a vida", para obter o numerário suficiente "com o que comprar tudo aquilo que necessita e que é produzido por outros. Não obstante, este fim primário do trabalho na civilização moderna não exclui que o trabalhador possa também se interessar por ele próprio ou pelo que goste, obter satisfações pessoais etc."6 (destaque no original).

Sem dúvida, para que haja o livre desenvolvimento da personalidade, em respeito à dignidade essencial da pessoa, necessário lhe oferecer um tempo livre para tanto. É dizer, se a pessoa se ocupa tanto do trabalho que não lhe sobra o tempo necessário ao desenvolvimento de suas atividades pessoais, ademais de sua vida familiar - também a possibilidade de participar da vida social, comunitária, sindical etc., inclusive de melhorar seu grau de conhecimento através do estudo, até mesmo para a sua formação profissional -, por certo que não terá nenhuma possibilidade de exercer seu direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade - direito que é assegurado expressamente pelo art. 10.1 da CE (Constituição Espanhola).

Dissertando a respeito do tempo livre do trabalhador, Alarcón Caracuel7 apresenta como pressuposto de sua tese que o trabalhador "vende" ao empregador somente um número determinado de horas ao ano, por exemplo, 1.700 horas. E afirma que o resto é "tempo livre" do trabalhador, ou seja, "tempo não vendido, tempo seu". De modo que o trabalho não pode ser o centro do universo. É necessário promover uma filosofia da vida. Em definitivo, se deve "trabalhar para viver" e não "viver para trabalhar". A propósito, adverte-se que na época contemporânea o excesso de trabalho, mais precisamente a excessiva jornada de trabalho, tem sido um grave fator de risco de acidentes e doenças

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ocupacionais, pois os trabalhadores estão "vivendo para trabalhar"8, e não o contrário, questão que será melhor analisada nos próximos capítulos.

Como observa Francisco Trillo9, a limitação efetiva da jornada de trabalho "através da normativa trabalhista condiciona de forma direta a configuração do resto de tempos vitais, assim como a realização da pessoa do trabalhador", de modo que direitos como a educação, a participação política e sindical do trabalhador, o culto religioso, a família "ou, em definitivo, qualquer outro aspecto pessoal que o trabalhador pretenda cultivar se opõem ao tempo de trabalho em forma de limites específicos que contribuem para a normatização da jornada de trabalho".

Por isso, de se destacar que o tempo de trabalho normalmente delimita a "vida ativa" da pessoa, em contraposição à "vida contemplativa", a se pensar em termos tradicionais estes dois modos de vida. É por meio do trabalho que as pessoas "produzem o vitalmente necessário para alimentar o processo de vida do corpo humano". Há, portanto, uma conexão entre o labor - trabalho entendido como "atividade" humana - e a vida, sendo que a referida conexão "é inerente à condição humana, ao processo de vida; ambos são parte do ciclo da vida. A atividade laboral se incorpora à circunstância humana"10.

É mais que isso, "o labor produz bens de consumo, sendo que laborar e consumir não são mais que duas etapas do sempre recorrente ciclo da vida biológica. São duas etapas do mesmo processo vital no desenvolvimento das atividades humanas" (destaques no original). Destarte, no ciclo vital "as etapas biológicas e cronológicas do labor e do consumo se pressupõem mutuamente". É dizer, o trabalho "molda o ser social". A pessoa se produz a si mesma, enquanto pessoa, "através do trabalho como práxis social". Em definitivo, o...

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