Efetivação Judicial do Direito à Saúde no Brasil: Uma Breve Reflexão à Luz do 'Modelo de Direitos Fundamentais Sociais' de Robert Alexy

AutorJoão Paulo de Souza Carneiro
CargoMestrando em Direito (UFSC)
Páginas19-29

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1. O "modelo teórico da utopia" e os direitos sociais

A Constituição Federal de 1988 contém um extenso catálogo de direitos fundamentais. Dentro desse catálogo estão os direitos sociais, enumerados basicamente no art. 6o da carta magna e posicionados no título II, que trata "Dos direitos e garantias fundamentais", podendo-se falar, em nosso direito positivo, em "direitos fundamentais sociais":

''Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a pro-teção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição" (Brasil, 2011, p. 32).

Parte respeitável da doutrina -senão a maioria - entende que os direitos sociais previstos na Constituição são plenamente exigíveis em juízo, independentemente da existência de legislação infracons-titucional, cabendo ao Poder Judiciário um papel ativo na sua efetivação e garantia. Esse posicionamento é claramente defendido por Luís Roberto Barroso, dentre outros doutrinadores:

"De outras vezes, as normas constitucionais atributivas de direitos sociais:

(B) ensejam a exigibilidade de prestações positivas do Estado.

Aqui, ao contrário da hipótese anterior, o dever jurídico a ser cumprido consiste em uma atuação efetiva, na entrega de um bem ou na satisfação de um interesse. Na Constituição de 1988, são exemplos dessa espécie os direitos à proteção da saúde (art. 196), previdência social (arts. 6o e 201), aposentadoria da mulher após trinta anos de contribuição (art. 201, § T, I)" (Barroso, 2000, p. 109).

Coerente com a sua ideia de que "o legislador constitucional é invariavelmente mais progressista que

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o legislador ordinário" (Barroso, 1996, p. 260), o autor mencionado chega a defender a possibilidade de fixação do valor do salário mínimo por via judicial, com a invalidação da lei que defina tal valor sem observar os requisitos insculpidos no art. 7o, IV, da Constituição:

“Quid iuris, se o vício se contiver, não no ato em si do empregador, mas no do Congresso Nacional, por fixar um salário mínimo que desatenda os requisitos constitucionais? Em outras palavras: existe remédio jurídico a ser utilizado contra o ato legislativo que institua um salário mínimo incapaz de satisfazer as necessidades normais de um trabalhador e sua família?

A resposta é afirmativa. Tanto mais agora que o novo texto constitucional simplificou a tarefa jurisdi-cional ao estabelecer uma série de parâmetros objetivamente aferíveis. No regime da Carta de 1969, a cláusula "necessidades normais", sem qualquer outro detalhamento, padecia de um conteúdo fluido, algo impreciso, ainda que não indeterminável. Presentemente, todavia, o próprio inciso IV enuncia os fatores a serem tomados em conta na fixação do salário mínimo: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. E muito embora seja impossível erradicar-se totalmente um certo grau de subjetividade, é plenamente possível a um juiz, por dados oficiais ou mediante prova técnica, estimar, v.g., o valor de aluguel de uma habitação modesta em bairro operário, o custo de alimentação valorado por uma cesta básica, as despesas de transporte tendo em vista o preço da passagem etc. Mesmo quando os valores pudessem oscilar significativamente, de acordo com o que cada um viesse a considerar como padrão mínimo de dignidade, o fato é que há um núcleo central em relação ao qual haverá consenso em qualquer circunstância" (Barroso, 2000, p. 151).

Nesse mesmo sentido, lembre-se o magistério de Paulo Bonavides, para quem "os direitos fundamentais da segunda geração tendem a tornar-se tão justiciáveis quanto os da primeira" (2000, p. 518), e de Flávia Piovesan, que defende que "a ideia de não acionabilidade dos direitos sociais é meramente ideológica e não científica" (2002, p. 240).

Dentro desta ideia de plena e pronta exigibilidade dos direitos fundamentais sociais em juízo, independentemente da atuação do legislador - ou até mesmo contra essa atuação - caberia ao Poder Judiciário um papel de relevância. Dotando-se de uma postura "ativista", os juízes garantiriam a efetivação daqueles direitos, em prol da concretização da promessa constitucional, suprindo a omissão do legislador ou a inércia da sociedade civil. Como exemplo desse pensamento, cite-se trecho de obra de Andreas J. Krell:

"Concordamos com Clève, que defende um novo tipo de Poder Judiciário e de compreensão da norma constitucional, com juízes 'ativistas', vinculados às diretivas e às diretrizes materiais da constituição, voltados para a plena realização dos seus comandos e não apenas apegados aos esquemas da racionalidade formal e, por isso, muitas vezes simples guardiões do status quo. Torna-se necessária, portanto, uma 'mudança de paradigmas' na percepção da sua própria posição e função no moderno Estado Social de Direito" (2002, p. 98).

Andreas J. Krell deixa claro que o juiz deve agir como uma "alavanca dinamizadora", forçando até mesmo a realização de direitos sociais cuja satisfação é considerada impossível:

"Esse tipo de ativismo judicial seria capaz, diante de cada situação e sem seguir receitas uniformes, de superar muitos dos óbices e representar uma 'alavanca dinamizadora' para a realização dos direitos sociais postergados ou até 'impossíveis', como tantas vezes denominamos aqueles que não são desfrutáveis por muitas pessoas sumidas na marginalidade, e os quais 'podam a Democracia de um dos seus essenciais conteúdos'" (2002, p. 98).

A posição dos autores acima citados, que tende a ser hegemônica nos dias de hoje, pode ser resumida nos seguintes pontos: 1) os direitos sociais previstos na Constituição são direitos originários a prestações cuja exigibilidade em juízo independe de legislação inferior; 2) o Poder Judiciário, baseado na autoridade da Constituição, deve ter uma atitude ativista em prol da concretização desses direitos. Pode-se chamar essa posição, com base no magistério de Flávio Galdino, de "modelo teórico da utopia" (2005, p. 186), cuja característica marcante é a abstração dos fatores extrajurídi-cos inerentes à realização dos direitos sociais.

Pelo "modelo teórico da utopia", o juiz ativista ater-se-ia ao que diz a Constituição, "levando os direitos a sério" e não se deixaria influenciar por questões estranhas ao plano meramente normativo, como aquelas relativas aos custos financeiros. Acerca disso, é interessante transcrever o seguinte trecho da obra Introdução à teoria dos custos dos direitos:

"Interessa salientar também, no plano conceituai, que os custos financeiros são vistos aqui como absolutamente externos ao conceito do direito, de tal sorte que o reconhecimento dos direitos subjetivos fundamentais precede e independe de qualquer análise relacionada às possibilidades reais de sua concretização (rectius: efetivação). Em síntese: o conceito e a eficácia dos direitos subjetivos especificamente considerados (v. g. direito à educação) são analisados em vista dos textos normativos, sem qualquer consideração concernente às possibilidades reais de efetivação" (Galdino, 2005, p. 187-188).

Curiosamente, os adeptos do "modelo teórico da utopia" adotam o mais puro normativismo kelse-niano, muito embora digam seguir as trilhas da "nova hermenêutica" e do "neoconstitucionalismo". Assim como o juiz legalista pode ser

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acusado de insensibilidade social, o juiz ativista, na sua luta em concretizar a Constituição, pode ser acusado de insensibilidade financeira ou até mesmo institucional, pois não se importa com os impactos negativos das decisões tidas como realizadoras de direitos fundamentais sociais.

Apesar das críticas que lhe possam ser dirigidas, o "modelo teórico da utopia" tem uma grande influência no Poder Judiciário brasileiro, podendo-se dizer que uma parte significativa - senão a maioria - dos juizes o adota ao apreciar pedidos que envolvem os direitos fundamentais sociais previstos na Constituição. A aplicação do "modelo" é particularmente visível nos casos em que se pleiteia a satisfação do direito à saúde.

2. Uma decisão judicial paradigmática sobre o direito à saúde

Sem dúvida alguma, dentre os direitos fundamentais sociais que estão sendo objeto de ações judiciais no Brasil sobreleva em importância o direito à saúde. Demandas judiciais pleiteando o fornecimento de medicamentos, a realização de cirurgias e exames e o fornecimento de aparelhos médicos tornaram-se corriqueiras.

Como fundamento de tais demandas, invoca-se, de forma genérica, o direito constitucional "à vida e à saúde". Ao apreciarem tais pedidos, os juízes geralmente aderem aos argumentos dos demandantes, retirando de dispositivos constitucionais de natureza principiológica direitos subjetivos praticamente ilimitados à prestação estatal.

Um grande exemplo da adoção do "modelo teórico da utopia" no âmbito judicial - talvez o mais representativo - é a decisão proferida pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a Petição 1.246/SC, que vem servindo como paradigma para a apreciação de demandas relacionadas ao direito à saúde (Sarlet; Timm, 2008, p. 164).

O caso começou com a propo-situra de uma ação cautelar na qual se pleiteava, em face do Estado de Santa Catarina, o custeio de tratamento para a distrofia muscular de Duchenne em clínica norte-ameri-cana, no valor de US$ 63 mil. O juízo de Io grau concedeu a liminar para que o Estado pagasse pelo tratamento, determinando, em seguida, o bloqueio de montante suficiente para tal depositado nas contas do ente público, e...

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