A condição-animal em Kaspar Hauser: Crítica à ética racionalista: O bom selvagem e a esterilidade da razão

AutorLaerte Fernando Levai
CargoPromotor de Justiça em São José dos Campos e atua na área criminal, ambiental e defesa dos animais
Páginas209-237

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1. Introdução

Sabe-se que a história emblemática de Kaspar Hauser tem inspirado diversos livros e ensaios literários, psicológicos, lingüísticos, filosóficos, antropológicos, jurídicos etc, além da produção de películas cinematográficas sobre o tema. A fim de delimitar o campo de pesquisa, restringimo-nos a duas obras: o romance "Kaspar Hauser ou a Indolência do Coração", do escritor austríaco Jacob Wasssermann (1908), que se baseou no texto original de Feuerbach, e o filme "O Enigma de Kaspar Hauser", do cineasta alemão Werner Herzog (1975), cujo título original evoca a solidão do homem em um mundo marcado pela indiferença: "Jeder für sich und Gott gegen alle" ("Cada um por si e Deus contra todos").

Não há como analisar a figura de Kaspar Hauser sem equipará-la ao bom selvagem que habita as teorias de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo este que se opõe à busca obstinada pelo progresso e à

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sociabilidade do homem natural. Dizer que o homem nasceu bom e a sociedade o corrompeu não basta, até porque seria impossível retornar ao estado pré-social. Não se trata, portanto, de voltar à natureza primitiva, mas fazer a Essência triunfar sobre a existência, dando vazão à natural bondade das pessoas.

Opondo-se frontalmente às idéias de Thomas Hobbes (1588-1679), que sustentava ser o estado original da humanidade uma guerra de todos contra todos ("bellum omnium contra omnes"), ou que o homem é o lobo do homem ( "homo homini lupus"), Rousseau propõe a fuga do brutal artificialismo da civilização para encontrar, na natureza, o sentido da existência. Para ele, as ciências - apesar de seu contínuo desenvolvimento - constituem um fator de decadência humana, haja vista que o verdadeiro progresso é de ordem moral.

Em meio a tal contexto há de se perguntar se o homem nasce ético. Se para Platão (427-347 a.C.) o conhecimento já faz parte, a priori, do indivíduo, para Aristóteles (384-322 a.C.) ele somente pode ser adquirido com a experiência concreta, a posteriori. Considerando que a ética, tida como ciência da moral, está envolta nas relações psicossociais, a resposta mais plausível a essa indagação seria a de que o ser humano não nasce ético nem antiético, podendo obter - ou não - tal virtude ao longo de seu desenvolvimento sócio-cultural.

O tema do estado de natureza foi aprofundado por Rousseau no "Discurso sobre as Ciências e as Artes", cuja conclusão é intrigante: aquele que vive em tal condição, sem governo, sem tecnologia e sem laços sociais, pode ser considerado como um indivíduo liberto de vícios, preservado e puro. A teoria rousseauniana da bondade natural ganha maior amplitude se contraposta ao pensamento do filósofo empirista Thomas Hobbes, para o qual o homem, por não possuir qualquer idéia do bem, é naturalmente pernicioso. Teria Kaspar Hauser, enquanto privado de qualquer contato social, noção do bem e do mal? Poderia ele, sem autoconsciência, desenvolver sentimentos morais se desconhecia a própria moralidade? Sua mente, quando aprisionado o corpo, poderia fazer juízos de valor sem conhecer a realidade externa?

Apesar de todas as conjecturas ao seu respeito, é certo que Kaspar Hauser manteve-se, durante e depois do período reclusivo, como um

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indivíduo pacífico. Homem de boa índole, por vezes admitiu preferir a solidão do calabouço à vida em sociedade. Esta revelação não deixa de ser perturbadora. Partindo da reflexão racional, com base na experiência vivenciada por Kaspar Hauser, é possível formular uma crítica à ética racionalista ligada ao cientificismo e ao racionalismo do século XIX. Neste sentido, o foco da presente argumentação coincide com um dos temas centrais da Filosofia Contemporânea: a crise da razão.

O projeto filosófico idealista pretende produzir um sistema capaz de abranger todas as questões epistemológicas: natureza, limite e modus operandi do conhecimento humano. Rousseau rejeita o progresso científico como fator de aperfeiçoamento do homem, propondo que se resgate o chamado ‘homem moral’. Acredita que o ideal humano não se encontra na sociedade artificial e desnaturada, mas naquilo que o homem possui de mais puro e natural. Na esteira do pensamento de Rousseau, que considera a razão estéril sem o recurso da emoção, aparece a tônica deste trabalho. A situação de Kaspar Hauser, portanto, traz dupla perspectiva rousseauniana: sugere o bom selvagem e mostra a esterilidade da razão.

Isso possibilita a reflexão sobre um indivíduo em estado de vulnerabilidade, estigmatizado por aquilo que se pode denominar de "condição-animal": a situação de alguém mantido em cativeiro, subjugado e em condições degradantes (fato comum na relação entre o homem e os animais não-humanos) e também a de um bicho selvagem em processo de domesticação, exposto à curiosidade pública (como ocorre com os animais não-humanos mantidos nos circos e zoológicos). Apesar do aprendizado da vida civilizada que lhe foi imposto, Kaspar Hauser sempre demonstrou inquietude e certa angústia em face da realidade do mundo exterior.

As circunstâncias de sua vida, em síntese, sugerem a existência de um ser humano naturalmente bom, ainda não moldado pela ditadura da razão. Não obstante isso, com o advento do mecanicismo a concepção da natureza perde espaço para um mundo em que os valores quantitativos e mecânicos sobrepõem-se aos valores qualitativos e espirituais. Contra o tradicional pensamento racionalista, retratado nos costumes da sociedade de Nüremberg, é que se opôs Kaspar Hauser. Pode-se dizer que ele representou, no curto espaço de sua existência,

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um outro olhar sobre o mundo, uma voz dissonante do sistema, uma peça deslocada da engrenagem social. Também por isso é possível traçar um paralelo entre o homem inserido nos padrões sociais de normalidade e aquele que permanece vulnerável sob o estigma da "condição-animal", fazendo-se enfim a crítica à Ética racionalista.

2. Mistério em nüremberg

Deixai-me chorar! Isto não me envergonha: os homens que sabem chorar são bons. (GOETHE)

Na manhã de domingo de Pentecostes, em 1828, surge na praça central de Nüremberg uma figura estranha, de olhos arregalados, que mal conseguia permanecer em pé. Tratava-se de um rapaz pálido, vestido com trajes de camponês e que trazia na mão uma carta. Até então esse jovem, recém-saído de um calabouço, ignorava as palavras, o mundo exterior e a existência dos homens. Chamava-se ele Kaspar Hauser e, naquele momento - pela primeira vez em sua vida - aparecia perante a sociedade, olhando com indecifrável espanto para as ruas, para as casas e para as pessoas. A missiva apócrifa endereçada ao capitão da cavalaria, de conteúdo dissimulado, em vão tentava explicar o seu mistério:

Envio-lhe juntamente um rapaz, senhor capitão, que desejaria servir fielmente ao seu rei e tornar-se soldado. O rapaz, em 1815, foi posto em frente da minha porta. Tendo filhos, e sendo pobre, dificilmente eu poderia encaminhá-lo na vida. É uma criança abandonada, e jamais conseguiu encontrar a sua mãe. Ele nunca saiu da minha casa, razão por que desconhece o nome e o lugar onde ela está situada, não existindo uma só pessoa que o conheça. Dou-lhe permissão para interrogá-lo mas, não estando muito avançado quanto a palavra, nada poderá dizer. Tivesse pais, e poderia haver se tornado alguém útil: ele, porém, não os tem. Mostrando-lhe algum objeto, imediatamente saberá distinguir o que é. Foi em plena

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noite que eu conduzi, e o conduzi sem dinheiro. Caso o senhor não o queira, restará apenas espancá-lo e suspendê-lo na chaminé.

Decerto que essa carta ocultava a verdade sobre Kaspar Hauser. Basta dizer que o jovem foi mantido cativo durante anos a fio, sem contato algum com pessoas ou com a natureza, privado da luz do sol e recebendo como alimentação apenas pão e água. Seu algoz provavelmente o dopava à noite para limpá-lo e trocar sua roupa. No porão não havia janelas e nem vinham ruídos exteriores, de modo que o rapaz desenvolveu maior acuidade visual para conseguir enxergar no escuro e, concomitantemente, acentuada capacidade auditiva, o que lhe permitia escutar o que as pessoas em condições normais não ouvem. A única atividade lúdica de Kaspar Hauser, segundo os relatos históricos, era um brinquedo, mais especificamente um cavalo de madeira que se movimentava sobre pequenas rodas. Proposital ou não, a frase decorada por ele em seu último período no cativeiro - época em que também aprendeu a rabiscar o próprio nome - correspondia a um pretenso desejo incompreendido, ligando a figura paterna ao citado animal: "Cavaleiro quero, como pai era".

Foi esta frase, aliás, exaustivamente repetida por Kaspar Hauser aos guardas que passaram a custodiá-lo. Tido a princípio como insano, selvagem ou possível impostor, o fato é que ele nada dizia a seus inquisidores, tampouco conseguia articular palavra com lógica, apresentando comportamento insólito e por vezes infantil. O escrivão encarregado do processo fez os seguintes registros sobre o suspeito: "Ele se recusa a dizer seu nome (...), ele se recusa a responder (...), ele cuspiu a comida... (...) Devemos enquadrá-lo nas normas legais". Diante disso Kaspar Hauser, misterioso pária social, acabou recolhido à prisão, na torre em que se encerravam ladrões, ébrios e mendigos.

Quanto ao temor diante do perigo, ele não reagiu à ameaça de uma espada afiada em seu pescoço ou da aproximação de uma vela acesa sob seus dedos. Faltava-lhe o referencial da dor associado à ocorrência de uma agressão, por isso a indiferença. Segundo o escritor austríaco Jacob Wassermann, autor de "Kaspar Hauser ou a Indolência do Coração" - romance elaborado sob a influência do Romantismo

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Alemão do século XIX - o jovem prisioneiro chorou durante oito dias...

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