Os Limites da Incidência do Código de Defesa do Consumidor nos Serviços Públicos

AutorGisele Cristiane Prudêncio da Silva
CargoAdvogada. Assessora jurídica da presidência da Associação. dos Magistrados Catarinenses
Páginas23-40

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Introdução

É cediço que a incidência legal da norma consumerista decorre tanto da liberalização econômica desencadeada nas últimas décadas, como pela notória influência do capitalismo em todas as esferas econômicas, sejam elas públicas ou privadas, ensejando regras protetivas de consumo em contrapartida às regras de mercado cuja sistemática difere-se, nitidamente, da natureza solidária que subsidia o serviço público, razão pela qual surge a necessidade de melhor delimitação do tema1.

Partindo-se da premissa de que o CDC e os serviços públicos são contextos jurídicos distintos, segundo Alexandre Santos de Aragão2, sob o aspecto inclusive mercadológico, sendo um privatista - ainda que suas regras tenham conteúdo de ordem pública - e outro publicista, voltado à prestação de serviço essencial à coletividade, a questão ainda suscita dúvidas acerca dos limites de aplicação das normas do CDC às relações entre o usuário e o poder público.

Nesse contexto, Jacques Amar, citado por Aragão3, afirma que "a infiltração de uma lógica de mercado faz com que as prestações de serviços públicos também sejam igualmente analisadas à luz das expectativas dos usuários. Consequentemente, o surgimento de uma lógica de mercado (lógique d’échange) altera integralmente a lógica solidária (lógique de don) própria do serviço público e do poder que era invocado como necessário a alcançar o interesse público (...). Sob essa perspectiva, a aplicação do direito do consumidor aos serviços públicos é indissociável dos debates contemporâneos sobre a posição e o papel do Estado na economia, já que ela introduz a lógica de mercado onde outrora havia unicamente a lógica solidária. Com efeito, a defesa dos direitos dos consumidores e usuários assume um papel relevante para demarcar até onde os preceitos fundamentais do consumidores devem ser aplicados aos conceitos fundamentais publicísticos do serviço público."

É bem verdade que a eficiência dos serviços públicos, prevista na Constituição da República em seu art. 37, caput, autoriza, implicitamente, ao cidadão-usuário buscar a proteção jurídica quando tais atividades não estiverem de acordo com seus direitos, o que por vezes implica a incidência do CDC.

Contudo, as normas do CDC não sugerem, por si só, a sua aplicação ilimitada a toda relação jurídica envolvendo prestação de serviço público e usuário na medida em que o interesse público e social sempre permeará essa relação, não podendo, simplesmente, ser reduzido diante da norma jurídica de caráter privado e mercadológico.

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Sabe-se que o objetivo maior do Estado é assegurar a realização dos direitos sociais estabelecidos na Constituição por meio da prestação de serviços públicos tais como saúde, assistência social, lazer, moradia, trabalho, segurança, deveres estes impostos ao Estado, dos quais não pode se desincumbir4. Portanto, os objetos de tutela de ambas as esferas jurídicas são nitidamente distintos e como tais não podem ser ignorados. Disto se indaga: até onde as normas do Código de Defesa do Consumidor incidem sobre a relação entre usuário/cidadão e Estado?

Dessa forma, com a utilização do método indutivo, este artigo busca analisar, em breves considerações, a incidência do CDC nas relações entre usuários e poder público, tratando, num primeiro momento, a concepção e natureza da relação de consumo sob a ótica do CDC. Em seguida, passa-se pelo conceito de serviço público e usuário, arrematando-se com os limites das normas consumeristas na atividade estatal à luz de decisões dos tribunais pátrios.

1. Relação de consumo: consumidor e fornecedor na visão do CDC

A concepção de consumidor está prevista no artigo 2º, caput, do Código de Defesa do Consumidor, o qual estabelece: "Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final."

Nesse sentido, o consumidor está submetido ao controle dos titulares de bens de produção, constituídos pelos empresários. Da mesma forma, todo produtor também depende, em maior ou menor grau, de outros empresários que atuam como fornecedores de matéria-prima ou financiadores da sua atividade produtiva, razão pela qual, neste aspecto, também é consumidor. No entanto, em se tratando de proteção do consumidor, a tutela se refere ao indivíduo em si, ou à sua coletividade, inclusive aos empresários enquanto adquirentes de produtos ou usuários de serviços sem relação à sua atividade comercial5.

Na visão do CDC, o consumidor se constitui como toda pessoa natural ou jurídica que contrata a aquisição de mercadoria ou prestação de serviço para sua utilização direta, sem que se obrigue alguma forma especial de manifestação da vontade, exceto quando a lei exigir6.

Com efeito, a definição de consumidor e, por conseguinte, a constituição da "relação de consumo" ligam-se à ideia de relação contratual privada, na qual os interesses essencialmente patrimoniais e individuais estão em jogo. Envolvem, pois, o exercício da livre iniciativa e da economia de mercado previstas no art. 170 da CR (Constituição da República), o que para alguns doutrinadores não ocorre com a natureza própria dos usuários de serviços públicos.

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A concepção de "consumidor" baseia-se na destinação final do bem objeto do contrato. O destinatário final é o destinatário econômico de fato, seja pessoa jurídica ou física. Ou seja, não deve haver aquisição do produto para revenda ou para uso profissional, porque assim o bem entraria novamente no sistema de produção7, perdendo a característica de consumidor final.

Na mesma linha, a concepção de fornecedor estabelecida no CDC também vem atrelada à visão privatística. O art. 3º do CDC dispõe que:

"Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços."

Observa-se que a definição de fornecedor, no CDC, assim como a de consumidor, é ampla. O critério que caracteriza o fornecimento de produtos está atrelado ao desenvolvimento de atividades essencialmente profissionais, cuja atividade deva ser contínua, habitual, assim como a transformação e distribuição de produtos8.

Para Rizzatto Nunes9: "Não há exclusão alguma do tipo de pessoa jurídica, já que o CDC é genérico e busca atingir todo e qualquer modelo. São fornecedores as pessoas jurídicas públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, com sede ou não no País, as sociedades anônimas, as por quota de responsabilidade limitada, as sociedades civis, com ou sem fins lucrativos, as fundações, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as autarquias, os órgãos da administração direta etc."

Em síntese, infere-se que o CDC protege as relações de consumo constituídas pelo consumidor e fornecedor objetivando uma transação de natureza comercial, isto é, privada e sem conotação social, mesmo que se admita que as regras do CDC sejam de ordem pública em virtude da relevância assumida no contexto econômico das relações humanas para coibir práticas abusivas e tutelar a parte hipossuficiente.

2. A relação do usuário com o serviço público

Em linhas gerais, o usuário é o titular do direito de usufruir e gozar da atividade pública produzida por órgãos da administração (seja direta ou indireta), na maior parte das vezes mediante o pagamento de determinado valor fixado por lei, sendo o serviço colocado à sua disposição. No serviço público o usuário, na condição de beneficiário, é parte integrante do Estado como instrumento de efetividade das garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição da República. Em outras palavras, é parte fundamental do sistema estatal, para não dizer a própria razão de ser deste e para o qual se dirige a prestação do serviço público10.

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Ao contrário do que ocorre no direito privado, tal como na própria relação de consumo do CDC, a condição dos usuários de serviços públicos é de natureza jurídico-pública, ainda que por vezes possa existir, em certos serviços, a autonomia de vontade das partes e a própria aplicação de regras de direito privado, pois toda relação entre usuário e prestador do serviço público11está adstrita às condições previamente fixadas pelo poder público, estas quase sempre vinculadas à lei cogente e imperativa, da qual a relação não pode se afastar nem mesmo por vontade do órgão/entidade contratante, diversamente do que costuma ocorrer numa relação entre consumidor e fornecedor estritamente privada12.

Com efeito, a condição jurídica do usuário será sempre regida por normas (leis e regulamentos) que criam direitos e deveres aos usuários, mesmo que a situação decorra de um contrato de direito privado. É justamente por ser um beneficiário do serviço público, custeado mediante tributos, taxas e tarifas, que o usuário se torna uma figura jurídica, por vezes distinta daquela acepção jurídica utilizada pelo CDC para definir o consumidor13.

No que tange ao serviço público, numa concepção constitucional e legalista, Celso Antônio Bandeira de Mello14destaca que "é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral", frisando que deve ser fruível pelos administrados, cujo Estado assume como obrigação legal que deverá ser prestada por si mesmo ou por um terceiro sob um regime de direito público com as prerrogativas de supremacia e de restrições especiais15.

Já na visão do jurista Eros Grau16, a ideia de serviço público é sintetizada como uma atividade essencial para a...

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