Livre concorrência na concepção de Adam Smith

AutorHeraldo Felipe de Faria
CargoMestre em Direito pela Universidade de Marilia
Páginas287-300

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1. Introdução

As transformações que sacudiram a sociedade europeia a partir do desmantelamento do regime feudal são conexas à expansão do comércio e à formação dos estados nacionais. O absolutismo, ancorado na hegemonia do capital comercial, desenhou, aí, a política econômica ajustada a seus fins: o mercantilismo. O fortalecimento do poder do Estado foi a peça central que norteou uma série de medidas práticas. O protecionismo, a acumulação de saldos na balança comercial, os estímulos ao comércio de longa distância, o escravismo colonial, o desenvolvimento da marinha mercante e o crescimento demográfico se articularam, sempre, em torno a um mesmo princípio: o Estado forte. Forte em braços, forte em armas, forte em ouro. Capital comercial, absolutismo e mercantilismo conformam, na verdade, uma unidade indissociável.

Para que a economia viesse a ter um estatuto próprio, e fosse pensada como tal, duas condições básicas deveriam se colocar. Em primeiro lugar, a produção mercantil deveria se generalizar. Isso só ocorre sob o regime do capital plenamente constituído, fenômeno que se consolida a partir da revolução industrial inglesa. Nesse sentido a autonomia do econômico é sinônimo de autonomia da própria mercadoria: é só quando os nexos de sociabilidade se dão compulsória e exclusivamente pela via das relações econômicas, no caso, pelas relações de troca, que esta esfera da vida social se emancipa da religião e da política. Em outras palavras, é só quando os homens passam a se relacionar- indiretamente - através do mercado (vale dizer, sob o capitalismo) que a economia passa a ter uma dinâmica própria, independentemente de quaisquer outras determinações.

A economia, como "esfera autônoma", supõe um padrão de sociabilidade fundado nas relações de troca, e não em relações políticas de sujeição pessoal. Em segundo lugar, a reflexão necessitaria se emancipar das amarras da explicação religiosa, processo que remonta à emergência do racionalismo e ao desenvolvimento das "ciências da natureza".

A "mão invisível" de Smith é a síntese que articula tais elementos: a interação espontânea entre os indivíduos, qualquer que fosse sua motivação, sempre redundaria em uma ordem virtuosa. Virtuosismo que só não seria alcançado quando a intervenção do Estado - à maneira das práticas mercantilistas - se sobrepusesse ao automatismo da vida social. Na sociedade, assim como na natureza estudada por Newton, prevaleceria a tendência ao equilíbrio. A lei cega da regulação do mercado teria a mesma eficácia da lei da gravidade. Os distúrbios que porventura existissem seriam, por definição,

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passageiros, já que o sistema disporia de propriedades imanentes que o reconduziriam sistematicamente, automaticamente, a uma situação de repouso e equilíbrio.

Se a paternidade da economia ainda é objeto de disputa entre os historiadores do pensamento econômico, poucos deixariam de reconhecer na obra de Adam Smith um momento de inflexão no curso do pensamento econômico. Nela, a economia política adquire as feições de uma ciência autônoma - ciência, em oposição ao caráter eminentemente prático e prescritivo dos escritos mercantilistas, autônoma, pois não mais subordinada à esfera da reflexão política e moral como ainda permanecia no pensamento fisiocrático.3

2. Desenvolvimento
2. 1 Motivos que Propiciaram o Nascimento da Economia Política

Oliveira demonstra que enquanto o capitalismo não se constitui plenamente, a subordinação da classe trabalhadora (disciplina laboral, salários, jornada de trabalho) depende da ação coercitiva do Estado. Da mesma forma, a expansão dos mercados não é produzida como um desdobramento natural do processo de acumulação, senão que remete à intervenção explícita do Estado. Em outras palavras, a estreiteza da base técnica e o fato de o capital não ter revolucionado, ainda, o processo de produção "desde suas entranhas", fazem com que a regulação dos mercados (incluído o mercado de trabalho) - e a própria reprodução - se dê pela via extraeconômica da intervenção do Estado: "as limitações do processo de acumulação de capital ... exigirão o apoio e a intervenção do Estado para que este processo se desenvolva, intervenção que se cristaliza na política mercantilista".4

A profusão de mercadorias em meio a um ambiente que tudo submete ao crivo da razão é condição crucial para o surgimento da Economia Política. Nas palavras de Belluzzo,

O nascimento da Economia Política, como disciplina autônoma, está amplamente comprometido tanto com modificações que se produziram no ambiente econômico, quanto com as transformações que se operaram na consciência dos povos. Ela surge como uma tentativa de explicação de um mundo abarrotado de mercadorias, onde os homens trocavam seus produtos não para consumir senão para trocar, de novo, amanhã [...].

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Pressionada pelas transformações materiais em curso e penetrada até os ossos, pelo racionalismo iluminista, a Economia Política nasce com a responsabilidade de desvendar e enunciar a 'lei natural' que regia a nova sociedade econômica".5

A "nova sociedade econômica", construída sob a égide da violência e da expropriação, redundou em indivíduos "livres". Livres, e com o "direito natural" a propriedade . Indivíduos que passam a se relacionar através de um sistema expandido de trocas. Indivíduos que movidos por pulsões benignas ou egoístas terminam produzindo, na visão da filosofia moral inglesa, uma sociedade próspera e harmoniosa. Prosperidade e harmonia que, por sua vez, deveriam corresponder a uma vocação espontânea, natural, do organismo social.

Ordem natural, individualismo metodológico, harmonia de interesses, automatismo da regulação mercantil, liberdade e propriedade se combinam, dessa forma, no axioma da "mão invisível" de Adam Smith. O quadro aqui, é inteiramente oposto ao da situação mercantilista. Não mais se trata de descobrir os meios para assegurar o fortalecimento do poder do Estado, mas sim de investigar como se processa o aumento da riqueza real da sociedade. Na verdade, uma nova sociedade, onde as três classes originárias e principais se apropriam de um modo natural do "produto do trabalho de uma nação"

Todo o produto anual da terra e do trabalho de uma nação ... se divide de um modo natural ... em três partes: a renda da terra, os salários do trabalho e os lucros do capital, constituindo, portanto, a renda de três classes da sociedade - a que vive de rendas, a que vive de salários e a que vive de lucros. Estas são as três grandes classes originárias e principais de toda sociedade civilizada6

2. 2 A Influência de Adam Smith na Política Econômica

Enquanto sua primeira obra literária - A Teoria dos Sentimentos Morais - se apoia principalmente na presença do "homem interior" para prover as necessárias restrições para a ação particular privada, sua segunda obra - Riqueza das Nações - não espera que essa natureza seja contida. Ao contrário, demonstra que são aqueles mesmos homens que agem segundo sua liberdade e pensam exclusivamente no próprio lucro, é que finalmente serão, involuntariamente, os motores do desenvolvimento social.

"Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse", diz Smith.7

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Smith procura fornecer uma descrição do estatuto ontológico da esfera econômica, apresentando-a como um sistema de liberdade natural. Eliminadas as restrições ao comércio impostas pelos mercantilistas ou a preferência dada à agricultura pelos fisiocratas, o funcionamento desimpedido da economia ocorreria, segundo Smith, de modo ordenado e capaz de proporcionar o máximo bem-estar possível para a sociedade. Neste sentido, o estudo da economia poderia prescindir de uma referência direta à moral: "Tal visão ontológica do sistema de livre mercado permite ao economista estudar as leis deste sistema natural da mesma maneira que Newton estudou a natureza".8

Essa concepção da economia ganhou uma expressão clássica na metáfora da "mão invisível". Não deixa de ser sugestivo que a única vez em que o conceito aparece na Riqueza das nações seja no contexto de uma crítica às restrições mercantilistas ao comércio. Do ponto de vista econômico, esta metáfora é a expressão da admiração de Smith pelo funcionamento eficiente e elegante do mercado como mecanismo de coordenação das decisões individuais dos produtores e consumidores, que impede que uma economia descentralizada e guiada apenas pelas motivações individuais de inúmeros agentes degenere no caos.

Do ponto de vista da filosofia moral de Smith, a "mão invisível", além de coordenar as escolhas individuais, "deve moldar os indivíduos em seres sociais construtivos - seres éticos".9

É no inesperado resultado dessa luta competitiva por melhoramento próprio que "a mão invisível" regula a economia, e Smith explica como a mútua competição ou concorrência força o preço dos produtos para baixo até seus níveis "naturais", que correspondem ao seu custo de produção. Isto vem a ser o foco no qual Smith demonstra que o mecanismo protetor, conversor do mal em bem, é a concorrência e a competição.

Em sua Teoria dos sentimentos morais, Smith parte do princípio de que os homens estão dotados de um conjunto variado de sentimentos. Para Smith, os diferentes sentimentos não são em si mesmos bons ou maus. A moralidade de uma ação é ditada apenas pela sua harmonia com o plano divino, ou seja, pelo fato de estar de acordo com as intenções da divindade. Um homem é virtuoso, na medida em que combina e contrabalança seus sentimentos de modo a ser capaz de agir em conformidade com o plano divino, ou seja, agir de modo justo...

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