Manifestações cotidianas da crise do monismo jurídico: o fenômeno da "justiça midiática"

AutorJosé Carlos E. Araújo; Claudenor D. Figueiredo; Maria Júlia Câmara Facchim; Mariana Mársico; Raphael A. Borges
CargoBacharel em Direito e Mestre pela Universidade Federal de Uberlândia-MG; Alunos de Graduação do Curso de Direito do IES-COC de Ribeirão Preto-SP
Páginas1-7

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Introdução

O paradigma123 normativo ("monismo") que correspondeu ao apogeu da ordem jurídica moderna consolidou-se nas primeiras décadas do século XX, tendo por fundamento o pensamento positivista kelseniano. Este modelo, fundado no monopólio conferido ao Estado nacional para "dizer-o-direito" (Jurisdição), e que serviu principalmente para regular relações jurídicas inter- individuais e mercantis (modelo jurídico liberal-individualista), encontra-se atualmente em crise. Esta pode ser identificada na incapacidade do Estado contemporâneo em oferecer respostas satisfatórias aos anseios da sociedade complexa e desigual em que vivemos. Por outro lado, não se constituiu ainda um novo paradigma para a ciência do Direito. Identificada esta crise, é importante buscarmos uma melhor compreensão acerca de possíveis alternativas ao modelo jurídico vigente.

Admitindo-se a possibilidade de que o Estado não seja o único centro de produção normativa e de tomadas de decisões, sobretudo nesse momento em que parece estarmos transitando de uma sociedade industrial "moderna" para uma sociedade pós-industrial "pós-moderna" (Araújo: 2003), faz-se relevante investigar algumas manifestações extra-estatais de juridicidade, dentre estas, a chamada "Justiça Midiática" - objeto de reflexão do presente artigo. Todavia, antes de abordarmos diretamente esta questão, faz-se necessária uma melhor descrição acerca do processo de constituição, desenvolvimento, consolidação e crise do chamado "monismo jurídico", que, neste caso, se confunde com o próprio modelo jurídico da modernidade ocidental.

1. A crise do direito moderno

Em sua origem, o Direito Moderno irrompeu em meio a uma dada formação social econômica, a burguesia, e, principalmente, à junção histórica entre legalidade estatal e centralização burocrática. "... Nesse sentido o sistema normativo apareceu como conseqüência da realidade socioeconômica e sociocultural, refletindo e consolidando juridicamente no plano das representações simbólicas (ideológicas) todas aquelas relações produtivas" (Machado: 1936, 39). Page 2

Na verdade, a burguesia mercantil, ao suplantar a nobreza e o clero como nova classe social detentora dos meios de produção, busca adequar aos seus interesses uma ordem estatal fortalecida, apta a legitimar um sistema de normatividade. Esta ordenação, firmada na logicidade de regras genéricas, abstratas e racionalizadas, disciplina, com segurança e coerência, questões do comércio, da propriedade privada, da herança, dos contratos etc. (Wolkmer: 2001, 47).

O professor Antônio Carlos Wolkmer (2001) nos ensina que o paradigma jurídico moderno abrangeu quatro ciclos. O primeiro ciclo do monismo jurídico está relacionado com sua própria "formação", que compreende os séculos XVI e XVII, quando se deu início à redução do Direito como criação exclusiva do Estado.

A configuração do segundo ciclo, "sistematização", deu-se no período que vai da Revolução Francesa até o século XIX, período marcado pelo surgimento da codificação do Direito Estatal, quando se consagrou a exegese de que todo o Direito não só é Direito como produção, mas de que somente o Direito Positivo é verdadeiramente Direito.

O "apogeu", terceiro ciclo do monismo jurídico, implicou na constituição de uma legalidade dogmática com rígidas pretensões de cientificidade, atingindo o ápice entre os anos 20/60 do século XX. Nessa fase, constata-se a expansão do intervencionismo estatal no âmbito da produção e do trabalho; a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo monopolista; a necessidade de se estabelecer políticas públicas distributivas, o que favoreceu a construção de uma ciência do Direito técnico-formal.

O Direito escrito e formalizado da moderna sociedade burguês-capitalista alcança o apogeu com sua sistematização científica, representada pela Dogmática Jurídica. O paradigma da Dogmática Jurídica forja-se sobre proposições legais abstratas, impessoais e coercitivas, formuladas pelo monopólio de um poder público centralizado (o Estado), interpretadas e aplicadas por órgãos (Judiciário) e por funcionários (os juízes) (Wolkmer: 2001, 69).

Esta fase atinge o ápice com o formalismo da dogmática da Escola de Viena, representada, basicamente, por Hans Kelsen, em sua "Teoria Pura do Direito", compreendendo o Direito como um mundo monista e o Estado, em sua essência, como ordem jurídica politicamente centralizada. "... A proposta 'científica' de Kelsen descarta o dualismo Estado-Direito, fundindo-os, de tal modo que o Direito é o Estado, e o Estado é o Direito Positivo" (Wolkmer: 2001,57).

Ainda vale afirmar que Hans Kelsen:

...Pretendeu mesmo estabelecer um certo rigorismo lógico para o conhecimento jurídico, pretendendo com isso conferir à ciência do Direito um sólido estofo científico, no melhor estilo positivista. Nesse afã, reduziu o conhecimento jurídico-científico ao conhecimento do sistema normativo, sem contudo negar as outras dimensões não normativas do Direito, apenas considerando que estas outras dimensões não deveriam ser objeto da ciência jurídica propriamente dita (Machado: 1989, 89).

Por sua vez, a "crise do paradigma", quarto ciclo do monismo jurídico, teve seu início a partir dos anos 60/70 do século XX, encontrando seus fundamentos em uma extraordinária revolução tecnológica e no processo de globalização que ela potencializou. Esta, ao enfraquecer profundamente o Estado-Nacional, deslegitimou sua pretensão (sobretudo o plano prático) de centro exclusivo de toda produção normativa e de distribuição da justiça.

Chegou-se então ao esgotamento do paradigma da legalidade estatal moderna, o qual não...

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