No mapa das religiões, há lugar para a religiosidade?

AutorPierre Sanchis
Páginas184-198

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“Religiosidade”.. uma* categoria usada em geral como apodo depreciativo e estigmatizante, que não esconde a sua origem institucional. Como se o único jeito válido de praticar “religião” fosse precisamente o jeito orientado, contido e modelado pelos contornos de uma instituição. O “resto”..

Mas é legítimo nos perguntarmos se este conteúdo da categoria - e da conotação que ele implica -, numa perspectiva exclusivamente relacional (em relação desigual..) e política (confirmando hegemonias internas aos espaços institucionais), é o único possível. Porque não partir da hipótese de que este uso estigmatizante revela a existência de uma direção para pensar ? Talvez com isso não cheguemos a um conceito analítico. Mas a simples construção de uma categoria “descritiva” pode também apontar “lugares” num mapa epistemológico. Perguntemonos então : No campo ou no território da “religião”, onde está situada a “religiosidade”?

I - A religião fundamental

“Religião”, sim, diz “instituição”. Durkheim insiste: “Uma sociedade cujos membros estão unidos pelo fato de conceber, da mesma maneira, o mundo sagrado e suas relações com o mundo profano, e de traduzir essa concepção comum em práticas idênticas é o que se chama de igreja. Ora, não encontramos, na história, religião sem igreja” (DURKHEIM, 1989:75-76). “Concepções”, “práticas”.. isto é: um culto, e o manejo regrado do simbólico que este realiza, uma visão do mundo cristalizada em dogmas, uma hierarquia de competências frente ao Sagrado, com instâncias de ortodoxia e de ortopraxis. O aparelho religioso inteiro, enfim, que assim faria parte da definição antropológica da própria”religião”

Mas, para não perder a sua especificidade “religiosa”, esta instituição tem sempre que se haver (está sempre em tensão) com umPage 185dimensão genérica, que a precede, a funda, lhe confere densidade - e sentido - mesmo se nunca se identifica totalmente com as suas determinações. Em sentido próximo, Durkheim e seus primeiros discípulos distinguiam, por um lado, o Sagrado, por outro, a “administração do sagrado”

Não existiria então uma dimensão mais diretamente e globalmente vital, logicamente anterior a qualquer institucionalização 1 ? Religião mais radical que as religiões, religião primeira, fundamental, primordial, a propósito da qual algumas afirmações (ou sugestões) tornar-se-iam possíveis?

1 - A sua situação no mapa do religioso está marcada como a de um lugar vazio. Somente indicado pela existência de duas oposições. Por um lado, mesmo situado no universo religioso e fornecendo-lhe seu fundamento, sua presença se opõe à simples ausência daquilo que, no meio dos universos simbólicos, constitui este universo particular. Por outro lado, no interior deste universo, ele se opõe a outro espaço, bem cheio de determinações, ele, o espaço das religiões. Vê-se que se trata de uma situação análoga, ao mesmo tempo repetida e invertida, à do “fonema zero” da lingüística estrutural ou, mais geralmente, do “valor simbólico zero” do estruturalismo, cuja única significação, à raiz do processo simbólico na sua máxima generalidade, é de se opor à ausência de significação2 . A religião fundamental, ela, não somente situa-se num universo simbólico já particular, o da religião, mas precisamente o funda. Isso significa que, à diferença do fonema zero e do significante flutuante do estruturalismo clássico, ela não é radicalmente vazia de determinação: universo religioso implica, com efeito, relacionamento tencional para com um além do mundo empírico, procura de solução para a vulnerabilidade do ser-no-mundo numa junção tendencialmente imediataPage 186- e por isso fisicamente emocional mesmo se sempre de algum modo mediada - com uma alteridade de quem este mundo depende. No entanto, no interior do universo assim delineado (dentro do universo “religioso” 3 ), ela recupera o seu caráter de vacuidade e indeterminação frente à(às) religião(ões), porque nem as modalidades desta tensão (o tipo de “rejeição do mundo” de que fala Weber - WEBER,1958), nem a concepção desta junção (mito, culto, ascetismo ou mística) nem a natureza deste “além” do mundo (seu avesso?, uma projeção no “ultra” - relativo ou absoluto- de seus valores reconhecidos?, uma totalização antropomórfica da natureza?, um universo povoado de seres “sobrenaturais” ? , uma profundidade ou terceira dimensão da própria realidade imediata?) recebem determinação e finitude. Nem por isso ela deixa de ser tensão ativa, força de ultrapassagem (lembremos de Durkheim e do caráter dinamogênico da “religião” 4 , de Jean Marie Gibbal : a religião como “passagem” 5 ), que se opõe à ausência de tensão, à tentativa de resolver os males do mundo pela força imanente dos meios contidos nos limites deste mundo, força descoberta e domesticada pela única razão. Religiosidade, razão, religião, uma dialética feita de três pólos ativos, cada um puxando a si a condição humana e pretendendo “determinála”.

2 - Uma dialética constitutiva e estrutural. Isto significa que esta “religião fundamental”, onde quero ler uma primeira aproximação do que seria a “religiosidade”, não é religião “primitiva”, situada ao pontoPage 187um de uma evolução, mas “primeva” e “primordial”; dotada de certa “permanência” na história da humanidade , sempre em articulação, ao mesmo tempo confirmadora e contrastiva, com outra dimensão, “racional” e ética, mais elaboradamente transcendente, que parece ter ocupado um lugar crescente no desenvolvimento institucional histórico das religiões 6 .

Desta constatação emerge a pergunta: Tal “religiosidade” será um atributo necessário, em grau permanente, da ‘natureza humana” (pelo menos do homo sapiens, como o afirma M.Eliade)?. Tudo indica (a posteriori ) que está empiricamente presente pelo menos desde Neandertal, bem antes do neolítico. Mas não compete à ciência social afirmar a sua existência a priori como uma dimensão necessária da estrutura humana. Certa fenomenologia religiosa (M.Eliade 7 , Jung, Servier, Dupront, talvez Durand) o faz (ou parece fazê-lo). Afirmação discutível 8 . Em todo o caso, conforme a lição de Durkheim quando fala do sagrado e da “natureza” da sociedade, o que se pode dizer, parece-me, é que, em termos de questionamento, de desafio e debate, esta problemática está no horizonte de todas as sociedades ao alcance, mesmo longínquo, de nossas indagações. Algumas a cultivarão menos, outras mais. Algumas até poderão deixá-la definhar quase que por completo. Isto porque a sua afirmação (i.e., a afirmação de sua existência como um fato) é negativamente correlativa à certa “racionalização do mundo”, aquela racionalização que os analistas da modernidade, seguindo a trilha de Weber, já nos acostumaram não somente a detectar na história daPage 188cultura em geral, mas a observar também como racionalização religiosa, quer dizer, no campo da religião, através do processo interno de evolução dos arranjos institucionais que este campo comporta.

3 - Assim, na dialética dos três pólos que identificamos, alianças e conluios vários revelam-se possíveis no decorrer da história. E a expressão: “administração do sagrado”, pela qual os durkheimianos descreviam a “religião”, bem poderia traduzir-se, na perspectiva que é a nossa neste momento, por essa outra: “racionalização” do universo da própria religião, isto é, questionamento da “religiosidade”. Neste sentido especializa-se a dialética doravante estabelecida entre “religião” e “religiosidade” (neste primeiro sentido de “religião fundamental”). Por um lado, se definir, com Leroi-Gourhan, a religião como : “O sistema organizado de mitos e de ritos destinados a estabelecer de modo permanente relações entre o homem e as potências do invisível (ancestrais e espíritos), no interesse da comunidade” 9 , basta tornar indeterminadas, vazias e como que a-conceituais, todas as categorias utilizadas (sistema - organização - mito - rito - relações permanentes - potências- invisível - interessecomunidade ) para obter uma simples estrutura: a que consiste numa tendência a estabelecer uma relação misteriosa e finalmente benfazeja entre o mundo empírico e um seu entorno meta-empírico. Estrutura cuja vacuidade as religiões costumam julgar deficiente, não significativa e por isso mesmo incapaz de orientar eficazmente o homem, individual e social. Arriscando-se assim a esquecer (cf. toda a dialética weberiana do sacerdote e do profeta, da...

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