A motivação da decisão judicial: o mito da neutralidade e a influência dos discursos punitivistas no modo de pensar dos magistrados brasileiros

AutorMarcelo Marcante Flores
CargoAdvogado/RS
Páginas23-26

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I - Considerações iniciais

A importância da função jurisdicional para a realidade social revela a necessidade de uma análise crítica da motivação das decisões judiciais. A imparcialidade do julgador é um imprescindível requisito de validade das decisões, segundo a ótica do princípio acusatório consagrado pela Constituição Federal. Contudo, será que basta o cumprimento deste requisito para que a decisão esteja livre de qualquer (pré)conceito? Qual seria o plano de fundo (ideológico, político e social) das decisões na contemporaneidade?

A concepção de neutralidade do juiz, forjada sob o paradigma do Estado Liberal, orienta a racionalidade instrumental legal e, consequentemente, as decisões judiciais. Entretanto, o magistrado é "mais um ser no mundo"1 , com suas ideologias, sua cultura, seu subconsciente, sendo influenciado por seu inconsciente e por fatores extrajurídicos que fazem parte da complexa realidade contemporânea, embora a fundamentação esteja motivada2em premissas legais. Este artigo pretende descaracterizar o mito da neutralidade dos magistrados e desvelar a influência do discurso punitivista que está "por trás" da motivação das decisões judiciais, denotando a tendência de extirpação de garantias individuais operada pelo Poder Judiciário.

II - A crise da ciência moderna e a decisão judicial: a desconstrução do mito da neutralidade do juiz

As premissas e métodos da ciência moderna, vinculados a uma verdade totalizante, cartesiana, determinaram a formação da racionalidade jurídica moderna. Esta concepção de ciência está estruturada na experimentação, objetividade, neutralidade e generalização, sendo que suas premissas se complementam e demarcam o conhecimento científico. A experimentaçãotrouxeaprimaziadatécnica, aobjetividade sustentou o discurso da neutralidade do cientista e do juiz. Não é por acaso a comum advertência de que "decisões sensatas provêm de uma cabeça fria", pois, em outras palavras, razão e emoção jamais se misturariam3.

Seguindo este paradigma, valores como a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões são os pressupostos da racionalidade jurídica moderna, que viam nas codificações do final do século XIX a possibilidade de sua concretização. A crença na unidade e coerência dos Códigos (vontade de sistema) aponta o diagnóstico de que as falhas no ordenamento jurídico são disfunções eventuais e eminentemente metodológicas, suprimíveis pelas técnicas de interpretação. O Poder Judiciário conforma a ideia de que as leis acomodam um universo autossuficiente, o projeto exegeta conduz à mecanização da atividade do juiz, sujeito apolítico e axiologicamente neutro4.

Portanto, a tradição jurídica do Estado Liberal concebia a atividade de julgar como um ato totalmente desvinculado da criatividade, restringindo-se a uma estrita aplicação silogística da lei. O juiz era apenas, na expressão de Montesquieu, a "Boca da Lei", limitando-se a ser o "porta-voz" daquilo que já estava previamente decidido pela racionalidade legal. Exercia um poder nulo, neutro, completamente autômato, sem qualquer influência externa ou interna, pois a Instituição fazia a justiça5.

Entretanto, não se pode conceber a aplicação do direito como um poder neutro, puramente racional, sendo o julgador livre de qualquer influência externa e/ou emocional. Conforme DAMÁSIO, a frase cunhada por Descartes "penso, logo existo", caso considerada literalmente, ilustra exatamente o oposto daquilo que se estuda acerca das origens da mente e da relação entre a mente e o corpo. Sentimentos e emoções são uma percepção direta de nossos estados corporais e constituem um elo essencial entre o corpo e a consciência. Uma pessoa incapaz de sentir pode até ter o conhecimento racional de alguma coisa, mas será incapaz de tomar decisões com base nessa racionalidade6. Nessa perspectiva, a afirmação cartesiana sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. Na verdade, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, ainda começamos por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser causado por estruturas e operações do ser7.

Uma visão crítica desacolhe o mito da neutralidade do julgador8. Percebe-se que a racionalidade e a subjetividade vão se agregando e ocupando espaços. O juiz deve saber que, ao examinar a pretensão das partes, a prova produzida e, especialmente, ao julgar, não estará sendo neutro e, tampouco, puramente racional. No momento de decidir, o magistrado será influenciado por seus sentimentos, emoção, razão, pré-compreensão, valores, história, concepção de mundo e, até mesmo, peloPage 24 inconsciente. Em última análise, a subjetividade relegada às partes no processo também está presente no juiz9.

A superação deste modelo traz à tona a imagem de um juiz que projeta sobre o processo suas vivências pessoais, paixões, gostos e desgostos, seu modo de ser no mundo. Não é mais suficiente imparcialidade do julgador que emerge como pressuposto processual de validade das decisões, para que haja uma decisão sem (pré)conceitos. Há muito se sabe que é impossível a separação entre sujeito e objeto10(neutralidade científica) ou o inconsciente e o modo de ser no mundo exerce ativamente influência nas tomadas de decisões11.

Nessa lógica, percebe-se um espaço argumentativo dentro da sintaxe discursiva consciente preenchido por um "discurso inconsciente", que está "por trás" da decisão. O magistrado busca convencer os sujeitos do processo que sua decisão foi justa, através de um jogo de imagens: o que ele pensa do interlocutor (os sujeitos do processo e a sociedade), a imagem que deseja transmitir, a imagem que faz de si mesmo e do profissional que é a imagem do justo que pretende buscar. Assim, por baixo da busca da clareza e justiça de uma decisão, existem motivações que foram aplainadas (seja através da semântica, ou da psicologia do discurso), mas que importam serem consideradas. O magistrado deve reconhecer a existência de influências interiores e exteriores ao ato de julgar, a fim de possibilitar decisões mais justas12. No entanto, ainda hoje e via de regra, o Poder Judiciário tem optado (voluntária ou involuntariamente) pela postura tradicional, acreditando no ideal da neutralidade judicial13.

Em outras palavras, o Poder Judiciário ainda atua como se a emoção não exercesse qualquer influência sobre a razão, sustentando a possibilidade de se obter uma decisão judicial neutra, de acordo com os ditames da racionalidade legal. No contexto contemporâneo, verifica-se um frenesi nos discursos punitivistas, proporcionando o ambiente favorável à fomentação do expansionismo penal.

III - A política criminal contemporânea e o consenso punitivista

Diante da ruptura com o modelo de um juiz "neutro" proposto pelo Estado Liberal, é possível observar a influência de aspectos extrajurídicos na formação da convicção do magistrado no momento de decidir. Portanto, o sistema penal (material e processual) não pode ser objeto de uma análise estritamente jurídica14, sob pena de ser minimalista ou, até, ingênua. O processo penal não está num compartimento estanque à realidade, imune aos movimentos sociais, políticos e econômicos, devendo ser abordado sob o paradigma da interdisciplinaridade15.

Ocorre que as sociedades contemporâneas ocidentais vivem um momento de grande difusão do fenômeno da "expansão"16do direito penal e a aceitação do punitivismo e dos movimentos repressivistas. Tal tendência apresenta uma ampla unanimidade no meio social, um consenso quase geral sobre as virtudes do direito penal como instrumento de proteção dos "cidadãos de bem" contra o crime17.

SILVA SÁNCHEZ enumera dez fatores (exemplificativos) que justificariam a cristalização deste consenso: aparição de novos bens jurídicos18; surgimento efetivo de novos riscos19; a institucionalização da insegurança20; a sensação social de insegurança21; a configuração de uma sociedade de sujeitos passivos22; a identificação da maioria social com a vítima do delito23; o descrédito de outras instâncias de proteção24; os gestores atípicos da moral25; a atitude da esquerda política26; e o "gerencialismo" penal27.

Portanto, toda a mudança ocorrida nos discursos operados no âmbito jurídico e político encontra eco na sociedade, revelando o consenso do expansionismo penal. Porexemplo, a ideologia de lei e ordem antes era vinculada aos grupos de "direita" que assumiam o discurso do incremento de seguridade através de uma maior pressão punitiva; enquanto que os partidos e organizações de esquerda defendiam uma postura contrária, ou seja, a diminuição da pressão punitiva28. A lógica dos processos de criminalização se produzia com coordenadas políticas distintas diante da distribuição de funções tradicionais. Estas poderiam se resumir na seguinte fórmula: esquerda com demandas de descriminalização e direita com demandas de criminalização29. Esta realidade mudou.

A mudança desta dinâmica é apontada por BARATTA, pois as classes "desfavorecidas" passam a se interessar por uma luta radical contra os comportamentos socialmente negativos, almejando a superação das condições próprias do sistema sócio-econômico capitalista. Com isso, busca-se o deslocamento da atual política criminal às zonas de nocividade social, ainda imunes ao processo de criminalização/penalização (criminalidade econômica, ambiental, organizada, corrupção etc.)30. Neste contexto, ocorre uma mudança fundamental no discurso da esquerda31, desencadeado a partir do momento em que a social democracia europeia passa a assumir um discurso de seguridade, cujo slogan mais popular era: Tough on crime, tough on the causes of crime32. A ideia reitora dessa proposta baseia-se na premissa de que a...

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