Parâmetros positivos ao controle da administração pública pós-moderna: Uma questão de efetividade constitucional

AutorKaline Ferreira Davi
Páginas223-249

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1 Introdução

Causa perplexidade1 a falta de coincidência entre o discurso constitucionalista – que prega o dirigismo constitucional e a plena efetividade das normas constitucionais – e o discurso da maioria dos administrativistas, que chegam a considerar os atos praticados pelo governo como atos insindicáveis em virtude de forte conotação política.

Pretendemos demonstrar ao longo desse trabalho que a Administração Pública pós-moderna tem um dever prestacional tão relevante num Estado providência como o nosso, que ela deve ser controlada ativamente a realizar ações capazes de promover o bem-estar social, o que se demonstra até mais prioritário do que o controle abstensivo.

No entanto, para que o Estado torne realidade os programas constitucionais, ele deve ser impulsionado ativamente pelos órgãos de controle, que necessitarão de um instrumental teórico compatível com a dinâmica proposta pelo Direito Administrativo, nesse caso já redimensionados pelos valores constitucionais.

2 Atualização do direito administrativo por intermédio da sua constitucionalização

Sobre essa proposta de constitucionalização do direito administrativo Paulo Ricardo Schier observa que grande parte dos doutrinadores nacionais, prevalecendo-se de idéias que embasam esse próprio regime jurídicoadministrativo, principalmente a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, justificam a vulneração de “direitos fundamentais e de seu regime jurídico-constitucional”,2 o que demonstra a contramão do direito administrativoPage 225 brasileiro em relação ao processo de neoconstitucionalização3. Não existe constitucionalização onde persiste a vulneração de valores primordiais por razões tão pouco democráticas.

No mesmo sentido, Marçal Justen Filho4 demonstra que o processo de constitucionalização do direito administrativo ainda está pendente de concretização, porque o instrumental teórico em que se funda esse direito está fora do contexto histórico, social e político do país. Afirma o autor que dotar um país de uma Constituição não é o bastante para se realizar os valores desejados, pois “[...] a transformação concreta da realidade social e sua adequação ao modelo constitucional dependem primordialmente do desenvolvimento de atividades administrativas efetivas”5.

Adotamos sem restrições o ponto de vista do autor, esclarecendo que a afirmação acima transcrita em nada diminui ou altera a supremacia da Constituição e sua força normativa, ao contrário, permite concretizar os ideais constitucionalistas que têm como elementos caracterizadores formais tanto a supremacia da constituição quanto sua força normativa. A idéia é não permitir que essa supremacia e normatividade constitucionais resumam-se a meros elementos de discurso, o que somente ocorrerá com o auxílio do direito administrativo.

No mesmo sentido afirma Caio Tácito6que o Direito Administrativo e o Direito Constitucional completam-se, pois as Constituições se tornarão inúteis repositórios de conselhos sem o socorro do Direito Administrativo, “[...]que fará do sonho a realidade, da norma programática a efetividade da prestação administrativa, como duas faces que se completam na concretização dos ideais de justiça e igualdade social.”

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Diante dessa premente necessidade de constitucionalização do Direito Administrativo, entra em crise um de seus pilares mais consistentes, que é a vinculação positiva à lei, como se a Administração pudesse ser realmente apenas uma aplicadora mecanicista da regra legal. A erosão da lei formal e o desprestígio do legislador, somados ao surgimento do Estado providência, que criou para a Administração Pública uma série de atribuições novas, culminou com a derrocada do paradigma da estrita vinculação legal.7

Necessário, entretanto, fazermos uma breve análise da doutrina tradicional brasileira e da concepção por ela difundida no meio jurídico acerca da vinculação da Administração à lei.

Para Hely Lopes Meirelles8 enquanto na Administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza; para Miguel Seabra Fagundes9 administrar era aplicar a lei de ofício; para Jean Rivero10 a lei era o fundamento e a medida da Administração.

Baseada nessa doutrina clássica foi construída a dogmática do Direito Administrativo brasileiro, que era adequado para um momento histórico, político e sociológico que não mais existe. Construímos um Estado democrático de direito dotado de uma Constituição com força normativa e por isso não podemos admitir que seja imposta uma inversão na sistemática jurídica para privilegiar a norma infraconstitucional em detrimento da Constituição, com absoluta indiferença a sua superioridade.

Para Carmen Lúcia Antunes Rocha11, a atividade administrativa é o direito dinamizado. Neste sentido não se pode falar que ela se submete ao Direito, mas sim que ela faz funcionar o Direito posto pela norma, sendo apenas outra etapa desse processo de fazer o Direito, a de concretização. A juridicidade é o liame quePage 227 identifica o Direito em sua estática (legislação) e em sua dinâmica (administração), conferindo harmonia e unidade à ação estatal.

Podemos concluir, a partir dessa relação direta estabelecida entre a atividade legislativa e a atividade administrativa – dois momentos distintos de elaboração do direito –, que a mesma obediência devida pelo legislador à Constituição da República é devida pelo administrador público, cuja ação tem o mesmo caráter de primariedade que as outras ações estatais, legislação e jurisdição, não se subordinando a nenhuma delas.12 Por isso é que Carmen Lúcia Antunes Rocha13 justifica a necessidade de submissão da atividade administrativa à lei, já que as duas ostentam qualidade paritária: “[...] para se resgatar a juridicidade que, eventualmente, e por desmando e ruptura em determinado desempenho, se verifique tenha ocorrido.”

Acreditamos, nesse caso, que a lei será parâmetro para a atividade administrativa retomar o curso da legitimidade, o que somente ocorrerá se a lei não tiver divorciada da materialidade da Justiça e da expressão dos valores fundamentais da sociedade, hoje positivados na Constituição. Portanto, é mediante a distinção entre legalidade e legitimidade14, amadurecida no século XIX, principalmente a partir do segundo pós-guerra, considerando a legalidade como exercício do poder e a legitimidade como qualidade do poder, que é formada a idéia de juridicidade administrativa, como reunião da forma (legalidade) e da substância (legitimidade).15

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Assim, a legalidade administrativa não é rejeitada pelo direito administrativo, mas passa a ocupar uma posição secundária em relação à juridicidade administrativa, que prestigia os princípios e regras constitucionais como parâmetros de aferição da legitimidade das leis.

Depreendemos do que foi exposto que o direito administrativo precisa do constitucionalismo para superar sua defasagem teórica, o que ocorrerá com a adoção do sistema de direitos fundamentais e do sistema democrático. Esses vetores serão responsáveis por imprimir mudanças radicais na relação entre a Administração e os cidadãos – aproximando-os e informando-os – afastando o paradigma weberiano de distanciamento da Administração dos conflitos sociais e políticos como forma de garantir sua autonomia e eficiência.16

Defendemos o estabelecimento de um canal de comunicação entre a política e o direito, nos moldes propostos por Maria Paula Dallari Bucci17, o que alimentará as alternativas facultadas ao administrador público no exercício da competência discricionária. Esse abandono do isolamento político pela Administração resultará na definição do conteúdo de interesse público de uma forma participativa, em que os titulares do referido interesse serão consultados.

Essa transformação deverá ser instrumentalizada pelo Direito Administrativo constitucionalizado, que passará a reger não somente atos administrativos como expressão da simples execução da lei, mas toda a atividade administrativa, desde a escolha política do caminho a ser seguido, passando por sua execução, até o alcance dos fins. Assim, teremos o mais eficaz instrumento para a concretização dos valores constitucionais, um direito administrativo capaz de resolver os problemas entrePage 229 Estado e cidadão, autoridade e liberdade, sociedade e indivíduo. Ressaltamos que não se trata de um campo estritamente jurídico, mas sim jurídico-político.

Existe uma lacuna no espaço intra-estatal entre o momento da decisão e o instante da execução. Essa lacuna é um vácuo, no qual as leis e normas não conseguem manter seu poder coativo. Falta o instrumento correto, para nós, a atuação do Direito Administrativo.

3 Ultrapassando o paradigma weberiano: a politização unida à profissionalização da administração pública

Concordamos que no século XIX o Estado sofreu um grande avanço na substituição de uma Administração Pública do tipo patrimonialista para um modelo burocrático e Max Weber que foi seu principal idealizador. Este filósofo fixou as bases dessa nova forma de administrar na atuação racional, no estrito cumprimento das leis, num modelo hierárquico rígido, na obediência estrita aos procedimentos e na separação entre a administração especializada e a política.18

O tipo de administração patrimonialista erguida com o absolutismo, no qual não havia separação entre o patrimônio público e o privado, originava um contexto satisfatório à proliferação do nepotismo e da corrupção, o que já não era compatível com o cenário que se delineava no século XIX – capitalismo industrial e democracias...

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