Paradigmas filosóficos - ambientais e o direito dos animais

AutorMery Chalfun
CargoAdvogada
Páginas209-246

Page 210

1. Considerações iniciais

"A Natureza precede ao próprio ser humano. Por isso as demais formas de vida apresentam um significado próprio em si mesmas, enquanto expressão criadora de Deus ou da natureza, conforme o posicionamento religioso de cada um. Com efeito, nem tudo o que existe foi criado para a utilidade imediata do homem; há outros fins, outras razões criadoras que escapam à nossa sensibilidade e aos nossos cálculos. Muitas outras realidades e aspectos superam as nossas "vãs filosofias". (Édis Milaré)

A proteção ambiental ou a forma de posicionamento em relação ao meio ambiente, influenciada por pensamentos filosóficos, culturais, religiosos e sensibilidade humana geram tratamentos e visões diferentes que incluem os animais, e conseqüências para estes. Antropocentrismo, antropocentrismo alargado, ecocentrismo e suas ramificações, paradigmas que influenciam o pensamento e tratamento dispensado a natureza e mais especificamente aos animais.

Nesta seara, o direito dos animais se desenvolve, sendo por vezes visto como uma ramificação do direito ambiental, na qual se pretende defender o valor intrínseco dos animais, mas, mais que uma simples ramificação ou particularidade do direito ambiental, trata-se verdadeiramente de um novo ramo do direito, no qual se defende a ética da vida, não apenas uma ética global, planetária ou ambiental, mas sim animal, ética da vida animal, estes como titulares de direitos fundamentais. Defende-se seu valor individual e os protege nas mais diversas formas de exploração, tais como; ciência, entretenimento, alimentação, companhia... Respeito, compaixão, amor, consideração e moralidade

Page 211

por seres que antes do homem já habitavam o planeta terra. Não se trata apenas de proteção como decorrência da necessidade de proteção do meio ambiente, e suas consequências para o ser humano, mas sim, proteção de seres que merecem consideração em decorrência deles próprios.

No entanto, é certo que antigos paradigmas filosóficos influenciaram e continuam influenciando no tratamento dispensado aos animais não-humanos, como seres subjugados, como importantes para o homem ou para natureza. Ocorre que, o pensamento de superioridade humana prevalece ao longo dos séculos. Em decorrência de princípios como racionalidade, capacidade de estabelecer princípios morais ou éticos o homem se atribui superioridade, domínio sobre a natureza e todos os animais, subjugando-os como simples objetos e seres inferiores.

Durante anos o homem explorou a natureza sem qualquer preocupação ou compromisso com o futuro, paralelamente explorou e explora os animais, como se estes fossem privados de dor, sofrimento, ou do sagrado valor da vida. Considerados uma criação para servir aos interesses humanos, os animais foram e permanecem sendo utilizados sem que haja um efetivo conhecimento das atrocidades cometidas ou um olhar mais cuidadoso com sua triste realidade.

O homem, porém, esquece que é parte da natureza, que é também uma espécie animal, devendo respeito e proteção às demais espécies, não apenas como forma de proporcionar equilíbrio e harmonia à natureza, mas principalmente considerando o animal por ele próprio.

Conseqüências são observadas na esfera privada, pública, normativa, mas, entender e ultrapassar antigos paradigmas são também uma questão de moralidade, evolução, é abandonar a idéia imoral de domínio do mais fraco pelo mais forte, é alcançar idéias de solidariedade, fraternidade, irmandade, amor ao próximo, seja ele humano ou não-humano.

Necessário ultrapassar paradigmas antropocêntricos seja utilitário ou alargado, despertar para uma nova filosofia de vida,

Page 212

na qual o animal humano não é o único ser merecedor de consideração, mas também os animais não-humanos, uma ética além de ambiental, uma ética animal, considerando estes não mais apenas em decorrência do homem, ou do meio ambiente, mas como seres individualmente considerados, com valor inerente e intrínseco, como irmãos na longa jornada da vida.

No presente artigo destacam-se assim alguns posicionamentos principais no que tange ao meio ambiente, com seus reflexos para os animais, ou seja, o antropocentrismo e ecocentrismo, bem como o direito dos animais propriamente dito, como um novo ramo do direito, fundamental e essencial.

2. Origens antropocêntricas

"Pergunte a qualquer um na massa de gente obscura: qual o propósito da existência das coisas? A resposta geral é que todas as coisas foram criadas para nosso auxílio e uso prático ... Em resumo, todo o cenário magnífico das coisas é diária e confiantemente visto como destinado, em última instância, à conveniência peculiar do gênero humano. Dessa forma, o grosso da espécie humana arrogantemente se eleva acima das inumeráveis existências que o cercam." (Toulmin, G.H)

A primeira e mais tradicional posição, com conseqüências, em regra negativas para a natureza e principalmente para os animais é o antropocentrismo. Este sistema põe o homem como centro de todo o universo, e, assim, toda proteção, preocupação com a natureza, com os animais, possui como objetivo apenas o homem, ele é o centro e a medida de todas as coisas, todo restante não possui qualquer valor em si.

Nesta visão adotada por filósofos influentes no Ocidente, como Aristóteles e São Tomás de Aquino (1225 - 1274)1, o homem ocupa o lugar mais alto da pirâmide, os vegetais ocupam a base e servem aos animais, e estes servem ao homem, ser dotado de razão e superioridade. A natureza estava à disposição do homem, e os animais eram considerados seres inferiores, des-

Page 213

providos de razão, e, apesar da primeira grande obra2que se tem notícia sobre os animais ser provavelmente de Aristóteles, abordando as partes, classificações sobre os animais, sua marcha e geração, ele entendia que o cosmo estava a serviço e disposição do homem, bem como todos os seres, o que será repetido posteriormente por São Tomás de Aquino entre outros. Esta doutrina influenciou as épocas seguintes, principalmente a partir do século XIII, sedimentando a visão antropocêntrica.3Suas obras constituem a base do Direito Ocidental, e, com ela, a idéia de que a finalidade da natureza e do animal é servir ao homem.4A natureza, conforme frequentemente dizemos, não faz nada em vão; ela deu somente ao homem o dom do discurso (lógos). O mero som da voz é apenas a expressão de dor ou prazer, e disso são capazes tanto os homens como os outros animais. Mas enquanto estes últimos receberam da natureza apenas essa faculdade, nós, os homens, temos a capacidade de distinguir o bem do mal, o útil do prejudicial, o justo do injusto. Com efeito, é isso o que distingue essencialmente o homem dos outros animais: discernir o bem e o mal, o justo e o injusto, e outros sentimentos dessa ordem (...)5

Posteriormente, atinge o homem seu ponto máximo com Descartes (1596 - 1650)6e Claude Bernard (1813 - 1978)7pelo mecanicismo, período cartesiano no qual o animal torna-se uma máquina, privado de qualquer valor intrínseco, mas apenas como instrumento do homem; a vivissecção torna-se um método oficial de pesquisa médica, e o animal uma coisa.8

Esta concepção antropocêntrica possui origem essencialmente na tradição judaico-cristã, na idéia de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, com domínio sobre as demais espécies, predominando essencialmente no mundo Ocidental, já que as religiões orientais possuem outras concepções.9A visão bíblica muito contribuiu para o entendimento de superioridade humana e subjugação dos animais, pois segundo seu entendimento o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, possuindo assim uma posição de destaque e domínio em rela-

Page 214

ção às demais criaturas. Diversas passagens bíblicas parecem demonstrar esta superioridade e domínio, e logo no início do Gênesis10, observa-se a idéia de que o homem é um ser especial, estando os demais seres vivos sob seu domínio.

2: 26 E disse Deus: façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. (grifo nosso)

2: 27 E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou;11

Assim nesta concepção antropocêntrica, o meio ambiente é protegido somente dentro do limite de proteção do homem e seu bem estar, havendo uma visão utilitária do direito ambiental e dos animais; e todas as suas necessidades, interesses e valores são subjugados em favor dos interesses humanos. Na proteção contra a degradação ambiental e das espécies, as vítimas serão sempre o homem.12O vocábulo antropocentrismo, etimologicamente, possui composição greco-latina, sendo anthropos (proveniente do grego) o homem, ser humano como espécie, e centrum ou centricum (latim), o centro, o centrado. O que significa uma visão na qual o homem é o centro do universo e as demais espécies estão ao seu redor em papel subalterno, condicionado, distanciado, já que o homem ocupa uma posição de superioridade, e os animais são seres dominados, instrumentalizados.13Há uma idéia de que os bens naturais, incluindo os animais, foram criados para livre disposição do homem, que são reno-váveis. Entretanto, em épocas pré-históricas e no início da civilização, não havia um consumo exacerbado, pois o homem consumia na medida de sua subsistência, porém este quadro se modificou e o homem passou a consumir de forma desenfreada, utilizando a natureza de forma exagerada, além de qualquer possibilidade de renovação dos recursos naturais, e influenciando no equilíbrio do ecossistema e do meio.14

Page 215

Após a revolução industrial15, e ação direta do homem sobre o ambiente de forma despreocupada, a degradação ambiental alcança níveis alarmantes, poluição, efeito estufa...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT