Lei Maria da Penha: o movimento de mulheres chega ao Poder Judiciário

AutorRosane Maria Reis Lavigne
Páginas145-241
1. Introdução
O tema do presente trabalho resulta do propósito de destacar, registrar e co-
mentar passos dados, recuos e avanços na complexa relação, em pleno desenvol-
vimento, do movimento de mulheres e o Poder Judiciário no Brasil, observa-
do a partir do período de transição democrática, com ênfase na criação da Lei
Maria da Penha, marco inicial de uma possível nova cultura jurídica, despida
de preconceito contra a mulher.
Decorre, também, do escopo de alinhavar algumas ideias destinadas a pro-
mover o debate entre os que se interessam em aperfeiçoar a Justiça como serviço
público e sobre como incorporar a perspectiva de gênero em políticas compre-
endidas para esse sistema.
Para contextualizar o tratamento dado ao tema, torna-se necessário traçar
breves linhas acerca dos antecedentes da relação do movimento de mulheres
com os outros poderes da República, no curso histórico pré e pós-constituinte,
e realçar a posição do Poder Judiciário nesse período.
Pretende-se demonstrar, com isso, a receptividade e o empenho do Execu-
tivo e Legislativo às reivindicações das mulheres, ao impulsionarem, nos últi-
mos 20 anos, políticas de largo alcance social em favor do segmento feminino
da população. Por outro lado, salientar a forma refratária e hermética do Poder
Judiciário à época, aquietado com arquétipos de discriminação da mulher que,
reproduzidos em prestação jurisdicional, faziam e ainda fazem circular e refor-
çar a desigualdade de gênero no meio social.
Nota-se que a posição do Poder Judiciário, no que se refere à mulher, manteve-
se fora do esquadro da Constituição Cidadã até a instituição da Lei Maria da Penha,
em 7 de agosto de 2006, quando se inclina, lenta e gradualmente, rumo a novo
paradigma, condizente aos instrumentos internacionais que versam sobre a mu-
lher, f‌i rmados pelo Brasil e pelos quais o país deve, periodicamente, prestar contas
junto às respectivas entidades supranacionais que realizam, por intermédio de
comitês, o seguimento desses instrumentos junto aos Estados-parte.
III. Lei Maria da Penha:
o movimento de mulheres chega ao Poder Judiciário
ROSANE MARIA REIS LAVIGNE
146 DIREITOS HUMANOS E O PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL
Concorrem para a mudança de posição do Poder Judiciário, inovações in-
troduzidas pela Emenda Constitucional Nº 45, de 08.12.2004, relativa à Re-
forma do Judiciário Brasileiro, em especial, uma das mais marcantes, a que cria
o Conselho Nacional de Justiça — CNJ. O Poder Judiciário, dotado de novos
aparatos, harmoniza-se com o cenário democrático instalado no país.
Importante, para o recorte pretendido, conf‌i gurar a violência contra a mu-
lher em sentido amplo e estrito, nos moldes já consagrados nos instrumentos
internacionais de direitos humanos das mulheres, levando em conta algumas
posições teóricas que tratam a questão, tais como as que se encontram em obras
de Roger Garaudy, Pierre Bordieu, Habermas, Nancy Fraser, Manoel Atien-
za, Heleith Saf‌f‌i oti, Branca Moreira Alves, Jacqueline Pitanguy, Leila Linhares
Barsted, Sílvia Pimentel, Flávia Piovesan, Celi Regina Jardim Pinto, Suely Souza
de Almeida e outras citadas no decorrer do estudo. A metodologia que se aplica
ao estudo realizado, portanto, segue a linha do denominado estado da arte.
Na elaboração deste trabalho foram realizadas consultas bibliográf‌i cas,
também páginas web, dados estatísticos. Considerou-se a memória autobio-
gráf‌i ca, devidamente referida, formada por vivência em posto de observação
privilegiada no sistema de Justiça: órgão de execução da Defensoria Pública,
atualmente titular, junto à 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Esta-
do do Rio de Janeiro. E, sobretudo, como feminista, integrante da Articulação
de Mulheres Brasileiras — AMB, OAB-Mulher/RJ, Comissão de Segurança
da Mulher, Câmara Técnica de Gestão do Plano Nacional de Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres, ambas do Estado do Rio de Janeiro. Participante
do consórcio de organizações não-governamentais e expertas, que elaborou o
anteprojeto à Lei 11.340, sancionada em 6 de agosto de 2006, — Lei Maria
da Penha.
Percebe-se, no mundo contemporâneo, que a violência contra a mulher,
lato senso, alicerçada na distribuição desigual de poder entre homens e mu-
lheres, herança cultural de séculos, exige medidas contínuas de ref‌l exão e ação
por parte da sociedade civil e do Estado, com vistas a promover a “revolução
fundante” preconizada por Maria de Lourdes Pintasilgo, e, assim, romper com
a perpetuação da violência contra a mulher, inserida na “ordem natural das coi-
sas”, para usar expressão de Pierre Bourdieu. Este é o ideal a alcançar, em tempo
difícil de mensurar, e o que movimenta as mulheres, mundialmente.
A violência de gênero, na sua forma estrita, manifestação perversa des-
sa histórica relação assimétrica de gênero, revela face de extrema crueldade e
impõe as maiores humilhações às mulheres, constituindo violação aos direitos
humanos e obstáculo ao desenvolvimento, assim reconhecido pela Organização
LEI MARIA DA PENHA 147
das Nações Unidas — ONU. Essa compreensão encontra-se melhor traduzida
pela Convenção de Belém do Pará, no âmbito da Assembleia Geral da Organi-
zação dos Estados Americanos — OEA.
Desse modo, algumas políticas públicas no Brasil, impulsionadas pelo mo-
vimento de mulheres e produzidas com o objetivo de afastar os impedimentos
à plena cidadania feminina e de imprimir igualdade material de gênero, são
destacadas neste trabalho, cotejando-se o empenho dos Poderes da República,
percebido em iniciativas e programas de ação constantes de documentos como
Planos Plurianuais, Relatórios Of‌i ciais periódicos, referentes à observância da
Convenção pela Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mu-
lher — CEDAW, da Convenção Belém do Pará, e outros a estes assemelhados.
Concede-se maior ênfase a algumas das políticas que operam mudanças
de realce no sistema de Justiça, aparelhando-o para melhor desempenho de sua
missão. E algumas lacunas mais notadas são apresentadas, aquelas que justif‌i cam
a demanda por concepção de novos mecanismos e instrumentos, destinados a
prevenir e combater a violência contra a mulher, notadamente a estrito senso,
com potencialidades para reduzir tal fenômeno a sua menor escala possível. Para
isso, considera-se a experiência espanhola retratada em estudos relacionados à
administração da Justiça na aplicação da Lei Orgânica de Proteção Integral con-
tra a Violência de Gênero, de 29 de dezembro de 2005. Toma-se como norte,
os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres,
a Constituição da República, a legislação infraconstitucional, analisando breve-
mente o uso da Lei 9099/1995 nos casos de violação aos direitos humanos da
mulher, e o avanço representado pela criação de norma jurídica específ‌i ca para
tratar esta temática, a Lei Maria da Penha.
Ref‌l etir sobre o tema em questão — Lei Maria da Penha: o movimento de
mulheres chega ao Judiciário — decorre de um alento e ao mesmo tempo de
um desaf‌i o. Em primeiro lugar, a satisfação por verif‌i car, após inúmeras tentativas
infrutíferas, ao longo de anos, o vinculo f‌i rmado com o Poder Judiciário e insti-
tuições af‌i ns, que, inexoravelmente, passam a se defrontar com conceitos caros ao
movimento de mulheres, transpostos para o corpo da dileta f‌i lha desse movimento:
a Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. E a partir dessa constatação, surge o desaf‌i o:
como expandir esses conceitos junto ao sistema de Justiça e promover uma política
judicial com perspectiva de gênero, legitimada por ativa participação das mulhe-
res, nesse sistema, que mal acordou de uma longa e devedora letargia? Busca-se
uma política judicial orientada para o desenvolvimento permanente e sistemático
de programas de ação, coordenados em rede, ampliando o acesso substancial das
mulheres à Justiça e garantindo-lhes a efetividade dos seus direitos.

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