Como os juízes pensam? Estudo empírico sobre o reconhecimento das decisões administrativas da Aneel envolvendo relações de consumo no Juizado Especial Cível do Estado do Rio de Janeiro

AutorIsabelle de Lima Lessa
Páginas165-265
Como os juízes pensam?
Estudo empírico sobre o reconhecimento das decisões administrativas
da Aneel envolvendo relações de consumo no Juizado Especial Cível do
Estado do Rio de Janeiro
ISABELLE DE LIMA LESSA
Introdução
O objetivo do presente estudo é fazer uma comparação entre aspectos doutriná-
rios e empíricos do clássico con ito entre decisões administrativas do Executivo
e decisões do Judiciário. Não é objeto deste estudo apontar uma solução para
este con ito, mas apenas comprovar sua existência, o qual se encontra calcado
nas próprias bases do Estado moderno — o Estado regulador e ao mesmo tem-
po provedor de soluções através de seu Poder Judiciário.
Segundo Habermas, em seu Direito e Democracia — entre faticidade e va-
lidade1, é papel do Direito fornecer paz social. Esta a rmação, de cunho simples
e objetivo, entretanto, pode ser transformada num ponto bastante complexo.
A começar, beirando o limite entre o zetético e o dogmático de Tércio Sampaio
Ferraz Júnior, pela de nição do que é o Direito.
No curso de Direito da Fundação Getulio Vargas, aprendemos que direito
não é apenas aquilo que surge da sentença judicial, quando da aplicação da
norma ao fato. Não é apenas a leitura de Miguel Reale, que engloba fato, valor
e norma.
Para nós, direito é todo aquele sistema complexo que envolve desde o pro-
cesso político de elaboração das normas até sua aplicação e suas consequências
no mundo real.
É aquele sistema complexo composto não apenas de leis, mas de regula-
mentos, instruções, resoluções, portarias e todos os demais atos oriundos dos
agentes públicos dotados de força.
Fatalmente, dentro de um sistema que engloba tantas possibilidades nor-
mativas, con itos entre normas surgirão. E é neste contexto que inserimos
àqueles entre o Poder Normativo das Agências Reguladoras como fonte do di-
reito em possível impasse com outro agente fundamental: o Poder Judiciário.
1 HABERMAS, Ürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Volume II. Rio de Janeiro: Tem-
po Brasileiro, 1997.
166 COLEÇÃO JOVEM JURISTA 2012
Seguindo ainda a linha lecionada pela Escola, adotamos um modelo de es-
tudo diferenciado e de escala relativamente recente no campo jurídico: o estudo
empírico. Entendemos que não podemos tratar de con itos dessa natureza —
envolvendo poderes legítimos do Estado — sem um mínimo de dados que nos
permitam identi car se, e em que medida, tais problemas ocorrem.
É neste sentido que este trabalho é inovador. Ele não busca analisar con i-
tos entre o Poder Normativo e o Poder Jurisdicional apenas em seu aspecto te-
órico ou simplesmente pontual — caso a caso. Ele tenta identi car o problema
e, a partir dele, sua genealogia.
Analogamente, podemos dizer que este trabalho tem por objetivo fazer um
diagnóstico de um paciente. Como uma pessoa que chega ao médico e não se
sabe, de antemão, o seu problema. Tenta -se medir seus efeitos, as dores para a
partir desses primeiros relatos seguir para os exames mais aprofundados. Esse é
o caminho de investigação adotado.
Tratar -se -á de um típico caso em que a Administração Pública encampa
uma tese e — diz -se — o Judiciário encampa outra: os con itos de consumo do
setor de energia elétrica no Estado do Rio de Janeiro, do qual se destacam pro-
eminentemente os casos de TOI — Termo de Ocorrência de Inspeção e Irre-
gularidades, procedimento instituído pela Resolução Normativa nº 456/2000
da ANEEL e modi cado pela Resolução Normativa nº 414/2010 da ANEEL.
Veri car se esse fenômeno realmente ocorre, e em que medida, foi fun-
damental para, de forma empírica, analisar o con ito objeto deste trabalho: o
con ito entre Administração Pública e o Judiciário. Este foi o nosso paciente.
Capítulo I — Estado e administração pública
O Estado, antiga instituição humana, é para muitos uma construção de vários
grupos de uma dada população, num dado território, com heranças culturais
comuns e com interesses con itantes, mas que, todavia, precisam satisfazer suas
necessidades com o objetivo comum de sobrevivência.
Apesar de em alguns Estados modernos como no Brasil — “país desco-
berto por conquistadores” —, sua evolução ter tido lógica distinta, uma vez
que o Estado antecedeu à sociedade e a moldou com suas características pa-
trimoniais2, é nessa linha que Claudia Costin descreve o Estado, optando por
uma de nição “operacional que procura fugir dos embates ideológicos, sem
desconsiderá -los”3.
2 TORRES, Antônio. Essa Terra. Livraria Didática. 2004, p. 82
3 COSTIN, Claudia. Administração Pública. São Paulo: Elsevier — Campos.2010, p.1
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O Estado é o conjunto de regras, pessoas e organizações que se
separam da sociedade para organizá -la. Esta visão parte do pressuposto
de que o Estado nem sempre existiu, mesmo que alguma forma de
organização da sociedade exista até em comunidades primitivas, como
as de povos indígenas, em que as funções de organização da vida em
sociedade são exercidas por Conselhos de Anciãos, pelo pajá e pelo
cacique. Observe -se que em nenhum desses casos ocorre comando da
comunidade. O estado só passa a existir quando o comando da co-
munidade é garantido por algum tipo de aparelho ou instância espe-
cializada que, funcionando de forma hierárquica, separa claramente
governantes e governados.
Sendo o Estado a instância que organiza a sociedade numa determinada
estrutura de poder4, pode -se entender a Administração Pública como:
[...] formada por órgãos e pessoas que trabalham contratadas pelo Esta-
do, operacionaliza suas decisões na forma de prestação de serviços públi-
cos,  scalização, regulação e exercício de funções de soberania.5.
Logo,  ca claro que o Estado está voltado para instituições ao passo que
a Administração Pública está voltada para gestão, que o Estado busca o valor
da concepção de poder compartilhado enquanto a Administração Pública pre-
za a e ciência administrativa6. Sendo assim, uma Reforma de Estado equivale
à mudança do modelo institucional porquanto uma Reforma Administrativa
equivale à mudança na forma de gerir a estrutura administrativa.
Podemos assim dizer que o Brasil, apesar de poder ser caracterizado
por mudanças no modelo de Estado — da economia liberal para a neces-
sidade de satisfação dos direitos sociais; da crise deste modelo para a ne-
cessidade de novos investimentos, o Estado Empresário; e do Estado Em-
presário para o Estado Regulador — somente teve duas grandes reformas
administrativas: a realizada por Getúlio Vargas a partir da década de 30 e
a iniciada no final dos anos 80 que fortemente caracterizou as mudanças
inseridas nos anos 90.
O Brasil de até 1930 é identi cado pelo modelo de Estado Mínimo, libe-
ral, dadas suas características, sobretudo na Administração Estatal que voltava-
4 Ibid p. 4
5 Ibid.p.4.
6 GONÇALVES, Luis Estevam. Apostila Governo e Administração Pública, p. 18 — Curso de MBA em
Administração Pública da FGV.

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