A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito do Consumidor

AutorAcyr Mauricio Gomes Teixeira
CargoAdvogado e professor universitário
Páginas223-240

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1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a defesa do consumidor seria promovida pelo Estado, incluindo-a no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos1. Mais adiante acrescenta tratar-se de um princípio da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assegurando a todos uma existência digna.

Com isso, são legitimadas as medidas de proteção estatal para assegurar não propriamente o consumidor, mas a sociedade de consumo, pilar da economia de mercado. Também é reconhecida uma nova categoria de sujeitos de direito, os consumidores.

Michel Miaille, a respeito do sujeito de direito, destaca que esta noção é algo "indispensável ao funcionamento do modo de produção capitalista. A troca das mercadorias, que exprime, na realidade, uma relação social - a relação do proprietário do capital com os proprietários da força de trabalho -, vai ser escondida por ‘relações livres e iguais’, provindas aparentemente apenas da ‘vontade de indivíduos independentes’"2.

E arremata: "o modo de produção capitalista supõe, pois, como condição de seu funcionamento a ‘atomização’, quer dizer, a representação ideológica da sociedade como um conjunto de indivíduos separados e livres. No plano jurídico, esta representação toma a forma de uma instituição: a do sujeito de direito".

Nesse contexto, é possível airmar que o Código de Defesa do Consumidor protege o consumo e não o consumidor, que é visto apenas como um elemento da sociedade de consumo.

Há evidente interesse público na proteção e defesa do consumidor, pois as relações de consumo são a força motriz da economia, promovendo a circulação de bens, a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano.

Cuidou o Estado de proteger o consumidor, geralmente hipossuiciente na relação de consumo, pois a concepção de Estado Social permite a tutela das relações entre consumidores e empresários, evitando abusos do poder econômico e as práticas negociais onerosas3. Ao assim atuar, protege o próprio consumo.

É evidente que a proteção ao consumidor não pode inviabilizar a livre iniciativa, sendo certo que um dos elementos fundamentais para garantir o desenvolvimento econômico é a possibilidade de pessoas unirem-se formando sociedades voltadas para um im comum, onde há limitação das responsabilidades de cada um dos sócios.

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Com isso estimula-se a atividade econômica, permitindo a circulação de riquezas e o atendimento dos princípios constitucionais (arts. 1º, inc. IV, e 170).

Contudo, isto não pode servir de entrave para que o consumidor obtenha a mais ampla reparação por vícios de qualquer natureza, motivo pelo qual o princípio, antes absoluto, da autonomia patrimonial, sofre temperamento para adequar-se à realidade da nova sociedade que procura se afastar da visão liberalista e não intervencionista do Estado, pois orientada pelo princípio da salvaguarda da dignidade da pessoa humana.

O Código de Defesa do Consumidor prevê a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade:

"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso do direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1º Vetado.

§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 3º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 4º As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."

2. Desconsideração ou corresponsabilidade?

A pessoa jurídica atua manifestando sua vontade através daqueles que a compõem, sócios, gerentes ou seus administradores. Basta que se apliquem as regras de responsabilidades, previstas no ordenamento jurídico, para ressarcimento daqueles atingidos por atos danosos praticados pelos sócios ou administradores por intermédio da pessoa jurídica.

Isto porque a teoria da desconsideração possui utilização restrita, não podendo desgarrar-se daqueles pressupostos que lhe são próprios, abuso de direito ou fraude à lei. Tampouco é possível a sua utilização para o caso em que o ordenamento jurídico fornece meios de responsabilização direta dos sócios, gerentes, acionistas e administradores4.

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Neste sentido Alexandre Ferreira de Assumpção Alves sustenta:

"Insta sublinhar que a matéria contida nos parágrafos 2º a 4º não é considerada como desconsideração, mas simples extensão da responsabilidade do fornecedor ou fabricante a outras empresas do mesmo grupo econômico, como já se encontra em outras searas jurídicas idênticas medidas (à guisa de ilustração, no art. 2º, § 2º da Consolidação das Leis do Trabalho)."5A lei consumerista enumera as hipóteses em que é possível desconsiderar a personalidade jurídica: 1) quando houver abuso do direito; 2) em caso de excesso de poder; 3) infração da lei, fato ou ato ilícito; 4) violação dos estatutos ou contrato social;

5) falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

O primeiro item - abuso de direito - está em conformidade com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica6.

Os itens 2 a 4 versam a respeito da responsabilidade do sócio ou representante por ato próprio na condução da sociedade, quando o fato ilícito é imputado diretamente aos sócios ou representantes.

No item 5 veriica-se a presença de um conceito vago - má administração - que conduz à responsabilização do sócio-gerente ou administrador. Não há como alcançar diretamente os sócios, acionistas ou controlador, pois se trata de responsabilidade própria do administrador, gerente ou liquidante que não agiu conforme regras administrativas próprias para o caso.

Logo, podendo ocorrer a direta responsabilização dos sócios ou administradores, não representa a personalidade jurídica um obstáculo e, portanto, não se faz necessária a sua desconsideração.

A respeito, destaca Fábio Ulhoa Coelho:

"Com efeito, a teoria da desconsideração tem pertinência quando a responsabilidade não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica. Quando a imputação pode ser direta, quando a existência da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem quer que seja, não há por que se cogitar do superamento de sua autonomia. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador ou representante legal de pessoa jurídica, provoca danos a terceiros em razão de comportamento ilícito, ele é responsável pela indenização correspondente. Nesse

O Código de Defesa do Consumidor protege o consumo e não o consumidor, que é visto apenas como um elemento da sociedade de consumo

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caso, no entanto, estará respondendo por obrigação pessoal dele, decorrente do ilícito que praticou."7Dessa forma, não há desconsideração diante da imputação direta da responsabilidade ao sócio ou administrador por excesso de poder, infração da lei, violação dos estatutos ou do contrato social, hipóteses previstas no Decreto 3.708/19, art. 10, e na Lei 6.404/76, arts. 115, 117 e 158.

3. Desconsideração dos grupos

É controvertida a abordagem da desconsideração no Código de Defesa do Consumidor, sendo possível notar que a intenção do legislador foi atingir os grupos societários, como se observa dos §§ 2º a 4º:

"Art. 28. (...)

§ 1º (...)

§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 3º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 4º As sociedades coligadas só responderão por culpa."

A preocupação do legislador procede, na medida em que se constata o crescimento da igura da empresa como "principal protagonista da sociedade moderna"8, destacando, no âmbito econômico, a superação do capitalismo industrial para o "capitalismo de grupos, da concentração empresarial".

Através da concentração, as empresas buscam crescer para tentar ocupar o maior mercado consumidor possível, o que pode se dar através da expansão simples, fusão, incorporação, cessão do ativo, acordos e uniões.

Na visão de Cavalcante Koury: "Os grupos de empresa constituem, sem dúvida, um dos procedimentos concentrados mais apropriados para a obtenção de maior produtividade e maiores lucros, com menores custos, pois, através deles, submetem-se à unidade de poder diretivo, empresas juridicamente independentes, mas economicamente unidas".

Quanto à personalidade jurídica, apesar da sua unidade em termos diretivos entre pessoas jurídicas independentes, permanecem autônomas em relação umas das outras. Não são afetadas, portanto, as personalidades jurídicas, que permanecem independentes: "Com efeito, a personalidade jurídica de cada uma das empresas do grupo revela a autonomia formal das

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unidades que o compõem, apesar de elas visarem aos mesmos objetivos e encontrarem-se, na realidade submetidas à unidade de direção".

Novamente é importante resgatar, nesse ponto, algumas noções de direito societário. Grupos de sociedade são aqueles constituídos por uma controladora e suas controladas.

No grupo de sociedade tem-se um processo convencional em que a sociedade passa a ser integrada em um grupo que é responsável pela condução das sociedades convenientes...

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