O personalismo axiológico de Miguel Reale

AutorAlexandre Marques da Silva Martins
CargoProcurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Empresarial pela PUC/SP e em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal pela FGV/RJ
Páginas181-201

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1 O valor na teoria dos objetos

Antes de se estudar as características do valor com mais detalhes, é preciso saber-se onde se situa o valor na realidade do conhecimento. Daí a importância da teoria dos objetos.

É possível entender-se a teoria dos objetos como o estudo da natureza de algo que é passível de ser colocado como objeto do conhecimento. Como obtempera Reale em seu Filosofia do Direito, geralmente tem-se uma percepção assaz pequena da realidade humana. Muitas vezes, considera-se como real somente aquilo que está imediatamente diante de nossos sentidos. Aquilo que pode ser alvo de conhecimento é bem mais abrangente, contudo.

Pode-se principiar citando os objetos físicos, que são aqueles que sempre fazem referência ao espaço e ao tempo. Imagine-se um automóvel: ao se pensar, pode-se dispensar algumas qualidades do automóvel, tais como cor ou resistência, mas jamais se pode evitar de pensar na sua extensão e na sua duração. Como corpo físico que é, o automóvel terá as suas medidas ou extensão, bem como, durante a sua vida útil, fará referência ao tempo.

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Por outro lado, há os objetos psíquicos. O ser humano, por suas qualidades próprias, possui toda uma série de sentimentos como paixão, raiva, amor, angústia, piedade etc. Essas sensações, que circulam no espírito humano, ao contrário dos bens físicos, dizem respeito tão-somente ao tempo. Esses sentimentos todos existem apenas enquanto duram na consciência do homem.

Os objetos físicos e os psíquicos são espécies dos denominados bens naturais. Aquilo que eles têm em comum a ponto de serem classificados num mesmo grupo é o princípio da causalidade. Com efeito, é este princípio

“que nos possibilita atingir e explicar os objetos naturais, quer físicos, quer psíquicos, porque se distinguem como fenômenos que se processam, em geral, segundo nexos constantes de antecedente a conseqüente. Todos os objetos nesse domínio são suscetíveis de verificação experimental, segundo pressupostos metódicos “não teleológicos”, pois os processos finalísticos tornariam impossíveis a Física e a Psicologia como ciências positivas” (REALE, 2002, p. 179).

Diferentemente dos objetos naturais, há aqueles que não fazem referência nem a espaço nem a tempo. São os objetos ideais. São entidades abstratas, que existem enquanto pensadas pelo homem. A matemática e a lógica são as ciências que cuidam desses entes formais. Um quadrado, um número complexo ou um silogismo são entidades abstratas que, para existir, independem de duração no tempo (como um sentimento de frustração) ou de extensão (como uma cadeira). Estão na mente humana. Melhor ilustrando: mesmo que um professor de matemática, por exemplo, deixe de pensar num número de uma equação por alguns dias, quando ele voltar a pensar nessa equação, o dito número lá estará, como sempre, diferentemente de algum sentimento que esse mesmo professor tenha experimentado em sua mente, pois esse sentimento jamais retornará, tendo deixado de existir simplesmente quando o professor o dissipou de sua consciência. Podem alguns confundir o objeto ideal com a sua representação gráfica: um triângulo na mente de um físico é representado quando este físico o utiliza num gráfico. A representação desta figura geométrica não é ideal, mas física.

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Prosseguindo na investigação da teoria dos objetos, o valor é tido por Reale como uma realidade autônoma. E nisso consiste uma grande inovação realeana. Embora também seja desprovido de espacialidade e temporalidade como o objeto ideal, o valor possui uma característica bem peculiar: ele só pode ser considerado a partir de alguma coisa existente anteriormente, qual seja, das coisas valiosas. Outra diferença digna de nota é que o objeto ideal pode ser quantificável, já o valor não. Podem-se imaginar três circunferências, mas não se pode afirmar que

“o Davi de Miguel Ângelo valha cinco ou dez vezes mais que o Davi de Bernini. A idéia de numeração ou quantificação é completamente estranha ao elemento valorativo ou axiológico. Não se trata, pois, de mera falta de temporalidade e de espacialidade, mas, ao contrário, de uma impossibilidade absoluta de mensuração” (REALE, 2002, p. 187).

Reale admite que se possa, por meios indiretos, medir o valor, quando se quer, à guisa de exemplo, saber o preço de uma estátua ou de um instrumento musical, porém, tal mensuração seria, segundo ele, simples parâmetro para tornar nosso cotidiano mais pragmático.

O valor, consoante Reale, é insuscetível de definição. Isto decorre do fato de que tanto o ser como o valer são duas categorias fundamentais do homem perante a realidade. Se tenho um automóvel antigo cheio de defeitos, ao olhá-lo, a realidade enuncia-me todas as qualidades que o meu veículo possui, principalmente os defeitos. Este é o mundo do ser. Todavia, se sonho em ter meu automóvel repintado, com assentos novos e motor consertado, isto pertence ao mundo do dever ser. E aqui se vislumbra a autonomia do valor como expressão do dever ser. Ao imaginar ter um veículo melhor, faço um juízo de valor, ou seja, imagino como algo deveria ser. Disso deflui que, à luz do entendimento realeano, tanto o ser como o valor são indefiníveis. O máximo que se pode afirmar, como faz Reale, é que “ser é o que é” e que “valor é o que vale”. Na verdade, a realidade resume-se a juízos sobre o ser ou juízos de valor. Outras alegações do tipo “o homem transforma-se na sociedade” sempre consistirão num daqueles dois juízos. “Transformar-se na sociedade” significa o ser evoluindo na escala temporal.

Finalmente, objetos complexos são os objetos culturais, que representam “uma forma de integração de ser e dever ser”. Reale aduz que tais objetos “são enquanto devem ser”. Vê-se,Page 185 assim, que “trata-se de realidades cujo ser é entendido sempre sob o prisma de algum valor. Por essa razão, seu ser não é acessível apenas do plano do ser, mas do dever ser que os julga, sempre, como objetos valiosos” (GARCÍA, 1999, p. 19). Nessa linha de pensamento, a cultura integra o mundo do ser e o mundo do dever ser. Ver-se-á, logo mais, que, para Reale, a cultura é tida como forma integrativa daquilo que é natural à esfera dos valores, de sorte que, sem a mesma, a natureza careceria de significado e o valor seria inconcebível.

Compreendido como o valor situa-se na teoria dos objetos, cumpre passar-se à análise das suas características, que igualmente receberam tratamento inovador do saudoso mestre.

2 Características do valor

A primeira característica básica do valor é a bipolaridade. Isto quer dizer que todo valor tem um desvalor que lhe contrapõe. É como se o valor fosse uma pessoa que, diante de um espelho, ver-se-ia de cabeça para baixo. O desvalor é a antítese do valor. Desta maneira, há o bom e o mau; o bonito e o feio; o certo e o incerto. Disso decorre que para que um valor possua sentido, é mister que se exija, concomitantemente, o sentido de seu desvalor. Verificam-se, então, valores positivos e negativos em permanente conflito numa dialética de complementaridade1.

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A seara jurídica é particularmente fecunda para o estudo da bipolaridade dos valores. Todo o ordenamento jurídico funda-se em valores que pretende ver tutelados, isto é, protegidos. Com efeito, pode-se asseverar que para o lícito, existe o ilícito. Essa dialeticidade está presente tanto no plano do direito material como no do direito adjetivo. No Código Penal, em contraposição ao valor vida há o desvalor morte. No processo penal, há um autor e um réu, cada qual defendendo interesses conflitantes: o autor pretendendo a condenação do réu e, este, a sua inocência. Reale vai ainda mais longe, sustentando que o motivo da existência do direito repousa na possibilidade de desrespeito aos valores que a sociedade reputa como indispensáveis à harmonia coletiva.

Implicação recíproca é outra nota do valor, na medida em que nenhum valor é concretizado sem ter interferência, ainda que indireta, na concretização de outros valores. A eventual proibição do porte de arma por civis, por exemplo, poderia servir para assegurar o valor paz. Sucede que a paz asseguraria, também, o valor segurança, e assim por diante. Destarte, pode-se asseverar que há verdadeira solidariedade entre os valores.

Da bipolaridade e implicação recíproca decorre a referibilidade. Quando uma pessoa toma partido acerca de um valor, ela está se inclinando numa dada direção ou fim. Aquele valor que ela adota como sendo o mais apropriado em determinada situação implica um sentido, uma referência. O valor, por assim dizer, atua como verdadeiro vetor como se fosse uma bússola apontando para uma direção.

Outra característica do valor é a preferibilidade. Situando-se o valor no plano do dever ser, ele enuncia como algo, em tese, teria de ser. Por outro lado, o ser humano é um ser livre, ou seja, tem a possibilidade de escolher este ou aquele caminho numa determinada situação. A liberdade do ser humano – como bem realçado por Reale na vastidão de sua obra - é fundamental para o seu desenvolvimento. Nota-se, pois, a íntima relação entre valor e liberdade, já que, em razão de ser livre, o indivíduo pode escolher aquilo que lhe mais aprouver. Nesta quadra, importante salientar que a preferibilidade explica como uma sociedade, numa dada época, tem certo entendimento do mundo e da vida, dependendo do modo como os seus valores são classificados, permitindo, assim, uma hierarquia axiológica.

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Historicidade é a característica por excelência na teoria dos valores de Miguel Reale. Neste diapasão, o valor não pode ser compreendido como uma realidade estanque, divorciada do desenrolar histórico-cultural do ser humano. Nas diversas civilizações, o modo de percepção da vida e dos costumes baseava-se numa tábua de valores. Sobre o que era tido como dado, ou seja, sobre a...

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