As sociedades de pessoas na atualidade. Uma visão comparativa crítica

AutorVera Helena de Mello Franco
Páginas93-111

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1. Linhas introdutórias - A permanência das sociedades de pessoas perante o direito comparado

Em que pese o modelo das sociedades em nome coletivo e da comandita simples estarem em desuso no Brasil isto não é verdadeiro perante o direito comparado, valendo a afirmação tanto para os países da família romano-germânica, como para aqueles da common law, no qual a figura da partnership permanece atual. Basta dizer que esta é a visão das joint ventures, a qual se apresenta no fundo como uma partnership, sem limitação da responsabilidade das sociedades agrupadas.

Qual a razão da manutenção em vida destas sociedades? Por um lado, o fato de que na maioria dos países europeus (bem como naqueles da common law), ressalva feita expressamente à França, Portugal e Espanha, estas sociedades não são dotadas de personalidade jurídica. Em decorrência, para efeito de tributação, os impostos so-mente incidem quando da percepção dos lucros pelos sócios e não quando produzidos pela sociedade. Por outro lado, na maior parte dos países europeus exige-se um capital mínimo para as sociedades, assim ditas "de capitais" (sociedades anônimas e limitadas).1 Note-se que a lei não

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distingue, para tal efeito, quando estas sociedades são unipessoais.

Pode-se indagar, ainda, qual a importância deste modo de ver nos países alienígenas para a realidade brasileira.

Neste ponto, não bastasse o fato das relações empresariais (melhor dizendo comerciais) ocorrerem dentre países, vale lembrar a tendência para a criação de um direito uniforme para os Países-membros da União Europeia, como denuncia a obra do Prof. Ole Lando nos seus Princípios Contratuais do Direito Europeu. E isto está na ordem do dia atualmente no continente europeu. Como não somos uma ilha e vivemos num mundo globalizado, sem deixar de lado a possibilidade de integração com os países vizinhos, justifica-se voltar à boa prática do direito comparado.

Aplica-se aqui a lição recente de um estudioso na nova introdução à 1P ed. da obra de Renè David em castelhano:2 "El derecho comparado no puede reducirse al ámbito reservado de algunos juristas. Todos los juristas están convocados a intere-sarse en el derecho comparado, ya sea para comprender mejor su propio sistema de derecho, ya sea para intentar mejorarlo, o bien para convenir, de común acuerdo con los juristas de países extranjeros, reglas de conflicto o reglas de fondo uniformes que propicien una harmonización de los diversos derechos".

Por final, e não por menos, é interessante ver como, a par da visão comparatis-ta, uma simples digressão histórica permite visualizar a postura singularmente caolha do nosso Código Civil (deste e do anterior) no tratar das sociedades.

2. As sociedades de pessoas - Definição genérica

Na lição de Herbert Wiedemann,3 que reflete sua origem, sociedades de pessoas são comunhão de objetivos contratuais na forma da sociedade e nome coletivo (Offe-nen Handelsgesellschaft - OHG) e da sociedade em comandita simples (Komman-ditengesellschaft - KG); sociedade em conta de participação (Stillen Gesellschaft); companhia de navegação coletiva (Parten-reederei); associação comercial em participação - partnership (Partnerschaftgesells-chaft) e da União de Interesse Econômico Europeia (Wirstchaftlichen Interessenve-reinigung).

Este conceito, como esclarece, não corresponde a um critério jurídico objeti-

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vo, já que por sociedades de pessoas entende-se, tão somente, uma ligação pessoal entre os membros de semelhante associação, diferenciadas da pessoa jurídica4 pela existência da propriedade em mão comum (gesammte Hand).

Esta particularidade da propriedade em comum (gesammte Hand), na lição de Wiedemann, permaneceria até hoje como sinal central das sociedades de pessoas, em que pese a possibilidade de combinações como a GmbH & Co. KG5 ou a existência das "Publikum Personengesellschaften”.

3. Características

Seriam suas características mais marcantes:

• Organização personalista - traduzida no intuitu personae (relevo à pessoa do sócio e consequente estabilidade do quadro societário) e na affectio societatis, entendida como o dever de colaboração entre os sócios de atuarem de boa-fé, uns perante os outros, para atingirem o fim comum.

• Relação patrimonial solidaristica -expressa pela responsabilidade solidária e ilimitada (no direito brasileiro, subsidiária) pelas perdas sociais;

• Natureza jurídica - ligado ao desenvolvimento da sua independência conforme se lhe atribua personalidade jurídica ou não;

• União patrimonial comunheira (Ge-samthänderische Vermögensbindung) -para justificar a solidariedade em direitos e obrigações, visto que em sua base, conforme a postura germânica, ter-se-ia um regime de copropriedade em virtude da ausên-cia de atribuição de personalidade jurídica (assim também no direito italiano, suíço e canadense).

Para estas formas de propriedade em comum, ao invés de personalizar, o BGB criou atualmente a figura do Sondervermo-gen (§§ 717-720, 738 BGB), o qual como patrimônio afetado a um determinado fim, passou a responder pelos débitos sociais, eliminando a responsabilidade dos copro-prietários.

Mas em que pese a tendência alemã atual no sentido da independência jurídica, a sociedade de pessoas permanece como uma figura intermediária entre a pessoa jurídica e a pessoa natural. De um ponto de vista geral, no direito alemão, a sociedade de pessoas é apenas um Träger (portador) de direitos e obrigações, correspondendo ao que o saudoso Walter Moraes6 definia como personalidade jurídica em sentido impróprio. Confira-se a lição: "Pela lei, toda sociedade autorizada é uma pessoa jurídica. Mas só corporações dão pessoas jurídicas em sentido próprio. A sociedade simples7 (societas), não constituindo corporação, não é portanto pessoa jurídica em sentido próprio. Esta, em síntese, a lição de Unger (...)".

4. Antecedentes

Nesta linha de rebuscar o passado a fim de aferir as incongruências do presente, impõem-se linearmente o recurso ao direito romano, o qual, principalmente tendo em vista os projetos de uniformização do direito europeu, tem sido revalorizado como possível fonte comum desta tarefa.8

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A assim ser, coerentemente, a visão deve voltar-se para esta fonte.

  1. A "societas" romana

    O direito romano não reconheceu quer personalidade jurídica quer autonomia patrimonial para as sociedades privadas. Tampouco se podia falar de representação para estas sociedades. Com este modo de ver o vínculo societário, nas palavras de Margherita Pena,9 "não tinha qualquer relevância perante terceiros" (trad. nossa).

    A doutrina10 situa sua origem no con-sortium ercto non cito (forma de coproprie-dade comum indivisa) e em experiências associativas ligadas à práxis das relações internacionais da iurisdictio peregrina (século II a.C.) mediante recurso à iudicia bonafidei. Elemento essencial era afrater-nitas resultante do vínculo familiar. Conforme a lição11 este era: "O consórcio que se instalava entre os herdeiros quando o pai falecia intestato e se apresentava como uma legítima e natural sociedade (Gaio). A comunhão não se estabelecia voluntariamente, mas no decorrer do tempo admitiu-se a possibilidade da divisão (com a actiofami-liae erscicundae) pela vontade de um dos fratres e ainda em decorrência da sua morte ou incapacidade" (trad. livre nossa).

    A justificativa da unidade do grupo, prossegue esta pesquisadora, repousava na Fraternitas (ideia de colaboração para a obtenção de um fim comum, inexistindo qualquer hierarquia ente os participantes ou atribuição de quotas). Mas ao contrário do condomínio tradicional em que cada coproprietário detinha uma quota parte, cuidava-se de comunidade do tipo dinâmico, na qual qualquer dos consortes poderia alienar qualquer bem pertencente ao patrimônio com efeitos reais para todos. Por outro lado qualquer um deles poderia adquirir qualquer dos bens mantidos em co-propriedade.

    Com o tempo o instituto perdeu autonomia sendo absorvido no regime da co-propriedade por quotas ideais e em virtude da evolução socioeconômica surge a base de nova forma organizativa para unir as forças econômicas, a saber, o contrato de sociedade fundado então no consentimento de todos os partícipes.12

    Passa-se assim da "fraternidade" (relevo à qualidade como membro do grupo familiar), e de um regime de coproprieda-de obrigatório e indiviso decorrente de um vínculo natural para uma relação consentida. A finalidade deixa de ser aquela de gerir bens em um regime de copropriedade e é substituída por aquela de atingir um ob-jetivo ou uma finalidade em comum. O vínculo natural familiar "fraterno" dá lugar à affectio societatis resultante da vontade de colaboração na realização do obje-tivo comum.

    São exemplos conhecidos de contratos associativos as sociedades universais, assim a societas omnium bonorum (de todos os bens) e a omnium quaestum (de todos os ganhos, obtidos pelo trabalho dos sócios). Ao lado destas existiam as sociedades particulares, assim a societas ali-cuius negotiationis (destinada na maior parte a transações internacionais e envolvendo uma série de operações de um negócio específico); a societas unius rei (constituída mediante aporte de bens singulares para a obtenção de um benefício comum) ou ainda a sociedade de argentarii (dos banqueiros).

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    Menciona-se ainda no século II a commendas, formada pela associação entre um sócio capitalista (oculto), com atribuição de participações sociais negociáveis para este. A morte de um dos sócios acarretaria a dissolução da sociedade. Pode-se vislumbrar na modalidade semelhanças com a nautikon dancion grega, em que um capitalista financiava a expedição submetida a risco. Perante o sucesso o...

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