Por uma poética do Direito: Introdução a uma teoria imaginária do Direito (e da totalidade)

AutorWillis Santiago Guerra Filho
CargoUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Páginas19-68

    Versão ampliada de texto enviado para publicação na Revista Nomos, do Curso de Mestrado em Direito da UFC.

Willis Santiago Guerra Filho. Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Faculdade Farias Brito (FFB-CE). Professor Efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Candido Mendes (UCAM-RJ). Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista (UNIP). Doutor em Ciência Jurídica pela Universidade de Bielefeld (Alemanha). Pós-Doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).

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Introdução

A expressão “Teoria Imaginária do Direito” apresenta uma postulação epistemológica e uma outra, ontológica. A primeira, referente à natureza da teoria do direito e, antes, à de toda teoria, aponta para o seu caráter imaginário. A segunda, referente à natureza do próprio direito, objeto de uma tal teoria, também aponta para o seu caráter imaginário.

No que tange à postulação epistemológica, ela se põe em confronto com uma tradição racionalista, que tem na filosofia cartesiana sua mais conhecida representante, a qual reverbera até a contemporaneidade, por exemplo na concepção sartreana sobre o imaginário, quando ele trata o produto da atividade imaginativa, a imagem,1 como um símbolo deficiente, ontologicamente esvaziado, a ser superado pelo conceito, correlato da atividade racional (ou talvez melhor dizer racionalizadora), o “pensamento retificado”, como bem o denomina Gilbert Durand.2

Juntamente com este último, na esteira de outros, anteriores, como Bachelard e Minkowski, vamos entender o pensamento lógico-racional, do encadeamento linear, como um caso particular e, enquanto particularização, também uma limitação, da forma originária e fundamental de pensamento, que é aquela por imagens, do imaginário. E entendemos que foi o próprio avanço da investigação teórica, onde ela é mais reconhecida como científica, ou seja, na matemática e na ciência natural, sobretudo a física, que trouxe uma tal compreensão, tornando a geometria euclidiana uma das possibilidades de elaboração de uma axiomática rigorosa sobre as propriedades do traçado de figuras em um plano que não podemos esquecer ser imaginado, logo, imaginário, assim como a lógica formal aristotélica, bivalente (que usa apenas os valores da falsidade e verdade), também é uma dentre muitas lógicas possíveis. O avanço da matemática, que é de se considerar como o avanço da própria imaginação humana criativa em um de seus setores, terminou impulsionando o avanço da investigação da matéria e do espaço físicos, permitindo que se forjasse aPage 21 cosmologia relativística e a microfísica quântica. Nesta última, por exemplo, já se sabe que a idéia de “átomo” é uma abstração, não havendo esta partícula última indivisível, um “ponto”, tal como concebido na geometria euclidiana, tornada padrão de racionalidade pelo cartesianismo da (primeira ou mais recuada) modernidade. Imaginemos então que esse ponto na verdade é um círculo, reduzido a proporções infinitesimais, e consideremos que uma reta é formada por uma série de pontos, assim como em cada ponto da reta se pode conceber o cruzamento com ela de uma outra reta, sendo o que estabelece o sistema de coordenadas cartesianas, mas cada ponto é, na verdade, o lugar de um corte, que em matemática se denomina “corte de Dedekind”.3 A imagem que agora se tem desse sistema de coordenadas é totalmente diferente, e ela expressa bem uma outra percepção da realidade que a partir daí se pode obter, diversa daquela linear, cartesiana, a qual se mostra como uma abstração redutora diante dela. Retomaremos adiante estas colocações.

Com relação à postulação ontológica, sobre o caráter imaginário do próprio direito, enquanto objeto de estudos teóricos, para entendê-la, basta que se atente para a circunstância de que o direito é também uma forma de conhecimento, sendo um modo como numa sociedade se dá a conhecer aos seus membros o comportamento que é esperado de cada um, pelos demais. Eis que, como era de se esperar, a postulação epistemológica e aquela ontológica convergem, mostrando-se como “os dois lados de uma mesma moeda”, “moeda” esta que o jurista e filósofo Miguel Reale, por influência (neo)kantiana, muito bem denominou “ontognosiologia”. O que aqui se quer então destacar é o caráter fundamentalmente “po(i)ético”, criativo, imaginativo de toda obra humana, aí incluídos tanto o direito como o conhecimento que se produz, a seu respeito, e também em geral, a totalidade do que se conhece, enquanto dependente de alguma forma de decodificação - ou signatura, para utilizar a expressão alquímica de Paracelso, amplamente empregada por Jacob Boehme, retomada de há pouco por Giorgio Agamben -, para ser por nós percebida significativamente, numa articulação simbólica.

1 Natureza ficcional do Direito

Partindo da consideração do Direito como uma criação humana, coletiva, é que dePage 22 último jusfilósofos dentre os mais acatados, a exemplo de Ronald Dworkin, professor de filosofia do direito em Oxford e em Nova Iorque, vêm propondo uma compreensão do universo jurídico em aproximação com aquele da ficção e, mais especificamente, da literatura. Outro teórico do direito contemporâneo, de expressão, que se pode referir, em sintonia com uma tal concepção, é o também nova-iorquino Richard Posner, que assim como a professora de filosofia do direito em Harvard, Martha Nusbaum, encontra-se na origem do que veio a se chamar o movimento do direito e literatura (Law & Literature Movimment). Contudo, não se faz necessário recorrer ao pensamento anglo-saxão a fim de encontrar apoio para quanto aqui se pretende sustentar a respeito da natureza ficcional do Direito, pois em nossa própria tradição, originária da matriz continental européia, houve quem fizesse indicação nesse sentido, e com precedência, sendo autor de obra que se tornou paradigmática, a saber, Hans Kelsen. É certo que o pensamento kelseniano oficial não costuma destacar esse aspecto da elaboração teórica de seu autor referencial, posterior à segunda edição da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), em 1960, concebida para se tornar canônica. Insiste-se, portanto, em referir à norma que seria o próprio fundamento de validade e, logo, de existência positiva do Direito, por isso mesmo dita norma fundamental ou básica (Grundnorm), como sendo uma norma hipotética, quando o próprio Kelsen, comprometido ao máximo como sempre esteve com a coerência do pensamento, percebeu que não poderia entender como sendo uma hipótese uma norma jurídica, pois hipóteses são assertivas feitas na forma de um juízo lógico, que podem ser verdadeiras ou falsas, a depender da correspondência de quanto ali se assevera com o que se comprova empiricamente, experimentalmente. Ora, isso significaria ultrapassar o limite entre o mundo do ser (Sein), onde se situam os fatos reais (Tatsache), e aquele do dever ser (Sollen), onde se encontram os fatos possíveis (Sachverhalt) que forem (juridicamente) selecionados para fornecer a base de uma imputação do Direito, a chamada fattispecie, da doutrina italiana, que corresponde ao “suporte fático” (Tatbestand), da doutrina germânica. E tal limite, como é sabido, foi rigidamente estabelecido como um pressuposto de toda a teoria do direito kelseneana, a fim de evitar a chamada “falácia naturalista”, denunciada já por David Hume e, na esteira dele, por Immanuel Kant, principal referência filosófica para Kelsen. Essa falácia ou falso raciocínio ocorre quando se pretende fazer uma dedução do que deve ser a partir do que é, minando assim a autonomia da moral, do Direito, da estéticaPage 23 e de tudo quanto estabelece o ser humano como critério de avaliação de sua conduta, por em assim procedendo fazer depender de uma determinação prévia do que seja o bom, o justo ou o belo a possibilidade de se estabelecer parâmetros de julgamento do que quer que se venha a fazer com a intenção de atingir tais ideais.

A qualificação de uma norma jurídica, portanto, não pode ser a de que é verdadeira ou falsa, ou seja, a de que corresponda ou não a fatos reais, do mundo do ser, daí dependendo sua existência, mas sim a de que é válida ou inválida, em se verificando sua correspondência com os fatos de ocorrência possível, do mundo do dever ser, instituído juridicamente. Na origem lógica – e não, propriamente, histórica – do universo jurídico que temos posto, positivado, diante de nós, Kelsen “pre(s)su-pôs” uma norma primeira, esvaziada de conteúdo, uma forma pura, puramente jurídica, como uma mera indicação da existência de um mundo de normas a ser entendido como Direito, juridicamente vinculante, mas sem uma vontade que (im)pusesse uma tal norma, a tornasse posta, positiva, e ela é que seria o fundamento de validade, a justificativa (lógica) de existência, de todas as normas efetivamente postas, positivas. Essa norma, na 2ª. ed. da Teoria Pura do Direito é considerada, kantianamente, uma condição transcendental de possibilidade do conhecimento jurídico, ou seja, algo como as categorias de tempo e espaço, enquanto necessárias para o conhecimento do mundo físico, mas depois Kelsen se deu conta de que, justamente por ser uma categoria, ou seja, literalmente, um “modo de...

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