Políticas públicas, controle social e orçamento participativo

AutorEmerson Affonso da Costa Moura
CargoBacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Direito da Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense. Advogado no Rio de Janeiro.
Páginas154-181

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1. Considerações iniciais

Uma das mudanças de paradigma que marcam o constitucionalismo contemporâneo é o reconhecimento da força normativa da Constituição.1 A concepção da lei fundamental como documento político que veicula um convite à atuação dos poderes públicos é substituída pela atribuição do status de norma jurídica que impõe limites e deveres de atuação para o Estado.2

Na nossa experiência constitucional antes restrita a Constituições garantistas que tutelavam as liberdades formais como repositórios de promessas vagas3 o fenômeno ocorre com a promulgação de uma Constituição dirigente voltada à promoção social4 e pela crescente preocupação doutrinária com a aplicabilidade direta e imediata de seus preceitos.5

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Por efeito, interrompe-se o ciclo inicial de baixa normatividade das disposições constitucionais que veiculavam os direitos fundamentais, em especial, das normas que declaravam os direitos sociais, antes remetidas à esfera programática de meras linhas diretoras aos poderes públicos e, tidas como dotadas de eficácia meramente limitada.6

Os direitos sociais enquanto veiculado por normas constitucionais gozam de exequibilidade plena, permitindo sejam os bens e interesses que tutelam exigíveis perante o Estado.7 Em razão disto, observa--se uma tendência progressiva de reconhecimento de sua dimensão subjetiva de forma a garantir a sua concretização no mundo dos fatos e tutela perante o Poder Judiciário.8

Não obstante, o sistema de separação de poderes, com o epicentro em uma Cons-tituição formal atribui em razão da especialização funcional e independência orgânica ao Poder Legislativo e Executivo funções cujo exercício, que ocorre de forma preponderante e sem interferência, correspondem em último grau à realização das normas constitucionais.

Cabem, portanto, aos poderes públicos na concretização dos preceitos fundamentais, observadas as possibilidades das regras e princípios constitucionais e limitados aos seus respectivos campos de conformação ou discricionariedade, decidirem sobre as questões políticas definindo quais são capazes de atender as necessidades do grupo social.9

Embora o Poder Judiciário exerça na sua função contramajoritária o controle dos atos políticos de forma a garantir à proteção dos bens e interesses veiculados pela Constituição em face do interesse da maioria, no sistema representativo o campo adequado para o debate sobre a conveniência da decisão política é o controle exercido na seara social.10

Através do controle exercido direta-mente pela sociedade sobre os poderes públicos permite-se a correção de transparência, legitimidade e eficiência na persecução do interesse público contribuindo na superação das desigualdades sociais através da redistribuição de rendas e na adjudicação de bens e serviços necessá-

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rios a proteção e promoção dos direitos sociais.11

Neste sentido, exerce peculiar importância os instrumentosfinanceiros de controle social, que incidem sobre a atividade estatal de obtenção e gestão dos recursos públicos indispensáveis à implementação dos programas, planos e diretrizes de ação governamental capaz de garantir a fruição dos bens e interesses socialmente almejados por seus titulares.

Sob este prisma, busca o presente trabalho auxiliar na construção de mecanismos jurídicos capazes de atribuir maior efetividade ao controle social exercido mediante participação popular sobre o planejamento e execução do orçamento público, contribuindo na promoção dos bens e interesse sociais e na construção de uma cidadania fiscal.

De início, abordam-se as políticas públicas sob os seus variados momentos de modo a definir com a exteriorização do planejamento, execução e avaliação da ação governamental nas esferas administrativas e financeiras, a delimitação do espaço decisório exercido pelos poderes públicos e a sua respectiva sujeição às variadas formas de controle.

A seguir a análise concentra-se na definição do controle social sobre a gestão estatal, com foco na investigação dos instrumentos informais e formais de participação da sociedade, bem como, sua importância e limites, de forma a determinar o campo de incidência dos mecanismos políticos, administrativos e financeiros sobre as políticas públicas.

Por fim, o exame compreende a definição das formas, momentos e efeitos do controle social exercido sobre o orçamento público e apresentadas as premissas necessárias ao debate, volta-se acerca da existência de sujeição dos poderes públicos no planejamento e execução às deliberações promovidas no âmbito do orçamento participativo.

2. Políticas públicas e controle

A concretização dos direitos sociais reclama em um maior grau a realização de sua dimensão positiva, mediante adjudicações de prestações pelo Estado de natureza participativa, normativa, e em especial, material, com a criação e colocação à disposição de seus titulares os bens materiais e imateriais necessários a fruição dos bens e interesses sociais tutelados.12

Isto ocorre através da articulação pelos poderes públicos de programas, planos e diretrizes de ação governamental que coordenam a alocação da estrutura, bens e agentes disponíveis, harmonizando as ati-vidades estatais e privadas, os variados atores e múltiplos interesses envolvidos na realização destes objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.13

As políticas públicas, portanto, compreende além da colocação a disposição dos recursos de forma a garantir a prestação imediata de serviços públicos pelo Estado, a atuação normativa, reguladora e de fomento que combinadas de forma efi-

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ciente conduzem os esforços da esfera pública e privada, na consecução dos fins almejados pela Constituição e a sociedade.14

De certo modo, há uma complexidade na apreensão do tema, pois a exteriorização dos programas governamentais não se apresenta com um padrão uniforme facilmente apreensível pelo sistema jurídico. Se por um lado, há uma visível proximidade com os planos ou processo, as políticas públicas antes englobam do que resumem os atos que as conformam.15

Aprioristicamente restringem-se a função política do Governo como atos decisórios que implicam na fixação de metas, diretrizes ou planos governamentais.16 Todavia, conforme insertas no quadro dinâmico de ação estatal, informadas por elementos de expertise e dependentes da estrutura burocrática, também alçam a esfera da função administrativa.17

Não obstante, a dificuldade na definição de sua natureza, as políticas públicas podem ser exteriorizadas em um ciclo que compreende a delimitação das metas e prioridades com o planejamento dos programas de atuação estatal, a alocação dos recursos públicos na execução destes planos e a avaliação dos impactos da ação governamental no oferecimento dos bens e serviços sociais.18

De início, o planejamento compreende o processo dialético construído a partir das demandas sociais inputs e apoios políticos e burocráticos withimputs, que resulta na escolha racional e coletiva das metas e prioridades públicas, imprimindo na gestão estatal a direção geral da política adota-da pelo governo e a satisfação das necessidades sociais.19

Neste tocante, envolve a prévia identificação dos interesses em conflito oriundo dos distintos segmentos sociais, a avaliação dos fatores subjacentes - econômicos, técnicos, políticos e afins - pelo seu gabinete e a formulação das possíveis soluções que permitam a tomada de decisão pelo agente eleito das ações necessárias para o atendimento das demandas.

Consolida-se no campo político-admi-nistrativo através dos planos e programas

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de caráter geral ou setorial criados pelo governo, com a definição das diretrizes, metas e objetivos almejados e delineamento dos projetos, ações e atividades a ser implementados a médio ou curto prazo para alcançá-los mediante o oferecimento dos bens e serviços públicos.

No âmbito financeiro-orçamentário importa na orientação da alocação prévia e abstrata dos recursos estatais destinados aos planos e programas de governo no orçamento público através das leis orçamentárias, com a delimitação das unidades orçamentárias responsáveis e a sua compati-bilização com as metas fiscais e as receitas públicas disponíveis.20

Embora o espaço decisório na formulação das ações governamentais, esteja precipuamente circunscrito a seara do jogo político - em razão do princípio democrático e da especialização funcional explicitadas na reserva de administração veiculada pela Constituição - isto não significa que a sua materialização nos instrumentos orçamentários ocorra de forma livre.

Isto porque, existem fins esperados e exigíveis das políticas públicas, exteriorizado nos bens e interesses tutelados pela Constituição, inclusive, com o estabelecimento de prioridades e a definição de matérias e dispêndio de recursos públicos, que vinculam os poderes públicos no planejamento construindo no espaço da decisão política limites objetivos invioláveis.21

Ademais, sua legitimidade decorre da observância do consenso obtido na deliberação pública acerca da diretiva político--administrativa almejada pela sociedade para a gestão pública, de forma que os programas governamentais propostos pelo agente político durante a plataforma eleitoral e ratificados pelos cidadãos no processo eletivo não podem ser ignorados no exercício do poder.22

Por efeito, é possível identificar na formulação das políticas públicas um núcleo intangível para deliberação política, que corresponde aos objetivos efins coincidentes com a diretiva política traçada pela Constituição e escolhida pelo processo majoritário e um campo adstrito a ativi-dade política, que abrange como serão alcançadas essas diretrizes na tomada de decisão pelo governo.23

A execução das políticas públicas compreende o conjunto de ações que permitam a concretização dos bens e...

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