Capital portador de juros e programas de transferência de renda: monetarização das políticas sociais e contra reforma

AutorGiselle Souza da Silva
CargoUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas173-181

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1 Introdução

Uma análise atual das políticas sociais, em sua totalidade, só é possível pelo estudo dos múltiplos fenômenos que se apresentam na sociedade capitalista e suas determinações. O sistema capitalista adentra desde finais do século XX, num período em que prevalece a acumulação de dominância financeira. Em tempos de capitalismo monopolista com base nas finanças, faz-se de grande relevância o estudo da obra fundamental de Karl Marx, O Capital, para uma reflexão crítica acerca dos processos gestados no seio da ordem burguesa que levaram o capital a assumir novas configurações nas formas de produção e reprodução da vida social.

O estudo do capital portador de juros numa perspectiva crítica e marxista permite-nos compreender os fenômenos sociais que se apresentam a partir de determinado grau de desenvolvimento do capitalismo na sua totalidade. Esta fração do capital constitui-se a partir do avanço das relações capitalistas de produção até tornar-se, em nossos dias, dominante nas relações sociais. De capital usurário do antigo regime, o capital que porta juros torna-se base fundamental pra manutenção e expansão da produção capitalista.

No período recente ganham força, jamais vista anteriormente, as operações financeiras internacionais, possibilitadas pelos processos de liberalização e desregulamentação, pela abertura dos mercados nacionais e pela privatização. Todos esses fatores resultam na mundialização do capital, fase atual do período imperialista na qual se tem a centralização de grandes capitais financeiros que buscam frutificar na esfera financeira e subordinar as empresas e nações capitalistas à sua dinâmica rentista e parasitária. A atuação desenfreada deste capital globalizado, a partir da década de 1980, traz consigo a aparente esquizofrenia da esfera financeira em relação à produção material, que tem consequências sobre a economia dos diversos Estados nacionais, centrais e periféricos. O crescente endividamento estatal oriundo deste processo tem repercussão sobre o financiamento público das políticas sociais.

A análise das modificações na composição e na condução das políticas sociais brasileiras na atualidade reclama-nos um estudo histórico-crítico do desenvolvimento da fase madura do capitalismo, no qual, após o amplo período de expansão das conquistas da classe trabalhadora naquilo que se chamou de proteção social, tem-se uma diminuição da apropriação de parte da riqueza socialmente produzida pela classe trabalhadora. Em outras palavras, assistimos a um largo processo de desmonte das políticas sociais destinadas à reprodução social dos subalternizados ao capital, alargando-se a apropriação privada de parte do fundo público pelos rentistas, donos do capital que porta juros. E os mecanismos estratégicos, para tanto, são a transferência crescente de recursos sociais para a esfera financeira; de um lado – por meio das contra-reformas das políticas sociais e do repasse de recursos do fundo público para o pagamento da dívida – e, de outro lado, os programas de transferência de renda que, além de alimentar o capital portador de juros por sua lógica, enfatizam a focalização das políticas sociais em detrimento das conquistas de universalização duramente alcançadas pela classe trabalhadora.

2 O capital portador de juros em Marx e seu desenvolvimento na contemporaneidade

A origem do capital portador de juros deve ser compreendida pelo desenvolvimento do capital industrial. Este opera com a produção de mercadorias e para que a mais-valia nelas contidas se realize, tais mercadorias precisam ser postas em circulação. Com o aumento da produção de mercadorias em grandes escalas, a circulação deixa de ser atividade exercida pelo próprio capitalista industrial e passa a ser realizada por um capital específico, o capital de comércio de mercadorias, chamado de capital comercial.

No processo de circulação de mercadorias do capital industrial e também do capital de comércio de mercadorias, o dinheiro realiza movimentos puramente técnicos e, autonomizados como função de um capital específico, torna-se esse capital o capital de comércio de dinheiro. Ou seja, do capital global surge uma forma específica de capital, o capital monetário que tem a função de executar as operações de comércio de dinheiro para toda a classe de capitalistas industriais e comerciais. Segundo Marx (1983, p.237), os movimentos desse capital monetário são, portanto, por sua vez, apenas movimentos de uma parte autonomizada do capital industrial empenhado em seu processo de reprodução

O desenvolvimento do processo de produção e reprodução capitalista faz com que o dinheiro, em si, torne-se mercadoria. Trata-se, porém de uma mercadoria especial que não pode ser comprada e vendida como as outras e, por isso, adquire a forma de empréstimo. À mercadoria em forma de empréstimo, em valores monetários, Marx chama capital portador de juros. E esta fração do capital tem a aparência de ser autônoma e de valorizar-se na esfera financeira.

O capital que portajuros sempre existiu, na forma de capital usurário, mas é na sociedade capitalista que esta forma de capital torna-se mercadoria específica com valor de uso e valor. O valor de uso do capital que porta juros é o de ser utilizado como capital, impulsionando a produção de valor através do chamado capitalista funcionante, aquele que investe diretamente no processo produtivo, que compra meios de produção e matérias-primas e ao final do processo de produção obtém uma nova mercadoria, acrescida de valor – por meio da mãoPage 175 do trabalhador, pois só o trabalho vivo cria mais valor. A remuneração pelo valor de uso deste capital emprestado tem o nome de juro. Assim,

a parte do lucro que lhe paga chamase juro, o que portanto nada mais é que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro, a qual o capital em funcionamento, em vez de pôr no próprio bolso, tem de pagar ao proprietário do capital. (MARX, 1983, p.256).

Assim, todo o movimento entre o empréstimo e a devolução deste valor acrescido de dinheiro é camuflado. Porém esta mercadoria dinheiro só pode retornar às mãos do seu proprietário acrescida de valor – do contrário não teria ele motivos para abrir mão dele – e só se incrementa no processo de produção de mais-valia.

Reina hegemônica a pura mistificação do processo de reprodução do capital que porta juros, com a onírica impressão de que este é capaz de reproduzir-se autonomamente. Porém, a afirmação acima, de Marx, nos permite esclarecer o que parece obscuro: a relação do processo de extração de maisvalia com o capital que portajuros. O capital portador de juros constitui-se na forma mais alienada e fetichista do capital por fazer desaparecer as mediações dos processos de produção e circulação, fundamentalmente para os que não têm clareza de que a base material desta forma de capital está na produção de mercadorias, ou seja, no trabalho vivo.

Diante de tal fetiche, apaga-se a relação antagônica do capital com o trabalho, como se capital fosse coisa em si e dinheiro agora tivesse amor do corpo1, e torna-se propriedade do dinheiro fazer mais dinheiro como a de uma pereira dar peras (MARX, 1983). Ojuro aparece como criação própria, separada do processo de produção e se completa então a representação do fetiche do capital.

No capital portador de juros está, no entanto, consumada a concepção do fetiche-capital, a concepção que atribui ao produto acumulado do trabalho, e ainda fixado na forma de dinheiro, o poder de produzir, em virtude de uma qualidade inata e secreta, como um puro autômato em progressão geométrica, mais-valia, de modo que esse produto acumulado [...], já há muito tempo descontou toda riqueza do mundo, para todo sempre, como algo que lhe pertence e lhe cabe de direito (MARX, 1983, p. 299).

O desenvolvimento do capital que porta juros gerou um crescente movimento especulativo ao permitir a separação entre o ato de compra e venda. Ao remeter para o futuro, o pagamento dos valores adiantados, especula-se sobre a obtenção futura daquele valor. Quando o capital portador de juros passa a operar com a especulação, com a acumulação futura, descolada de sua base real, material, como no caso dos títulos públicos, tem-se o capital fictício, que se origina daquela forma de capital. O capital fictício constitui-se na forma ilusória que adquirem os rendimentos que parecem provir do capital portador de juros.

Mesmo que inicialmente pudesse se tratar de capital-dinheiro “real”, de verdadeiro capital a juros, ao comprar títulos da dívida pública, converte-se em capital fictício, sempre e quando se converta, no setor público, em gastos correntes. Esses títulos representam, pura e simplesmente, um direito de apropriação sobre parte da receita pública proveniente, em grande parte, dos impostos a serem cobrados, papéis que dão direito aos que os possuem, de receberem parte das receitas do Estado, recolhida na forma de impostos. São fictícios, ilusórios, pois os valores emprestados ao Estado já foram despendidos, não como capital, e o que se prevê é a arrecadação futura dos valores tomados de empréstimo. A emissão de títulos e ações visa ampliar a acumulação e valorização do capital, e, se ojuro que remunera o capital que porta juros só pode provir do lucro, a especulação constituise em uma forma de aumentar a exploração da força de trabalho, fonte de criação de toda a riqueza.

Os processos gestados no seio da ordem burguesa na qual impera a lógica especulativa do capital portador de juros camuflam a relação da valorização deste capital com a exploração da força de trabalho. Isto ocorre em nossos dias, com os fundos de pensão, que têm sua base na capitalização, no movimento especulativo do capital financeiro, cuja base...

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