O Positivismo Culturalista da Escola do Recife

AutorJoão Maurício Adeodato
CargoPós-Doutor. Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife - UFPE. E-mail: adeodato@ufpe.br
Páginas304-324

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1. O debate das idéias no Brasil da época

O pensamento brasileiro tem sido negligenciado pelos juristas. A filosofia, entre vários outros papéis, também tem por função consolidar a identidade de uma cultura. E pode-se dizer que, hoje, o Brasil já tem um passado jusfilosófico.1 Este trabalho tem por objetivo introduzir o leitor, interessado na história das idéias jurídicas no Brasil, ao movimento intelectual iniciado no século XIX na Faculdade de Direito do Recife - por isso chamado "Escola do Recife".

Deve-se a Sylvio Romero o termo, usado para designar o movimento intelectual que começou por volta de 1860 e foi até o começo do século XX. Reinavam na Faculdade o espiritualismo aristotélicotomista, uma filosofia idealista e eclética, assim como as idéias monárquicas e a tradição do feudalismo nordestino, dos senhores de terras explorando os trabalhadores; vigorava também um certo romantismo no plano intelectual e a mentalidade geral era conservadora. Começa então, no dizer de Sylvio Romero, "um surto de idéias novas a assolar o país", buscando os jovens professores recifenses apoio no positivismo de Augusto Comte e nas variações de Littré, Taine, Noiré e outros.

Com a afirmação do positivismo nos meios intelectuais brasileiros, vitorioso principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde era mais forte e difundida sua influência, a Escola do Recife procura diferenciar-se e abandonar o positivismo ortodoxo, seguindo, a princípio, na ala dissidente inspirada em Littré. Claro que ortodoxos e heterodoxos defendendo em comum o abandono das velhas idéias.

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As tendências, por assim dizer atávicas, de Tobias Barreto em direção à filosofia metafísica, sua personalidade avessa ao materialismo e a grande influência por ele exercida, sobretudo no pensamento dos jovens estudantes do Nordeste, fizeram com que o positivismo mais ortodoxo não angariasse lá tantos adeptos quanto no Sul do país. Já em 1876, Tobias procura se afastar definitivamente dessa linha filosófica, ainda que mantendo alguns de seus postulados básicos, e essa circunstância o faz líder da nova corrente em formação: ele rejeita a posição dos ortodoxos em seu conjunto, aderindo ao monismo evolucionista de Haeckel e transferindo-o para o direito. Em 1884, porém, fiel a seu estilo, já mostra divergências com Haeckel, recusando a concepção mecanicista e não a colocando no mesmo plano do monismo que persistia em manter.2

Em termos de filosofia, talvez por não ter a mesma inclinação metafísica de Tobias, Sylvio Romero permanece mais fiel ao pensamento de Herbert Spencer e ao fim da vida inclina-se para as teorias de Le Play, "em termos de método sociológico". Sylvio era mais ligado ao evolucionismo de Spencer como corrente filosófica, se bem que sua maior preocupação não fosse a filosofia e sim a busca de tipos básicos que possibilitassem a explicação dos fenômenos sociais brasileiros, servindo a filosofia apenas de ponto de partida na procura da resposta a esta questão sociológica e epistemológica fundamental. Neste ponto foi grande e inovador.

No Brasil da época, de modo geral, só eram estudados os autores e as culturas portuguesa e francesa. Havia, porém, da parte de Tobias, uma nítida preocupação em atualizar-se frente às novas publicações da Europa como um todo, para o que evidentemente prestou-se sua fluência na leitura da língua alemã, competência rara nos professores do Recife. Ainda que influenciado pela idéias européias, porém, Tobias e seus amigos não as encaravam como prontas e acabadas, sempre procurando emprestar-lhes crivo crítico. Daí o debate sobre a fidelidade e acuidade das análises e discussões.3 Esse aspecto de não-subserviência talvez tenha sido o principal fator da originalidade que resultou do movimento recifense, em que pese seu caráter periférico em relação aos debates no centro mais desenvolvido. Se a originalidade vem ou não da ignorância do "verdadeiro sentido" dos autores europeus, este parece ser problema de menor relevância. De toda forma, o grupo de Tobias não se preocupava muito em elaborar fichas de leitura fiéis de obras e autores europeus, cuidando mais de elaborar um pensamento próprio.4

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O sensualismo inicial, filtrado pelo criticismo de Kant, desembocou no positivismo empiricista, para o qual não tem qualquer valor objetivo o conhecimento que ultrapassa os dados empíricos trazidos pela observação sensível mais imediata. Se na Idade Média a filosofia era uma serva da teologia, tendo assim um caráter instrumental, para Augusto Comte (1798-1857) a filosofia passa a embasar uma visão orgânica da natureza e da sociedade, alicerçada nos dados das ciências exatas. Destarte, a filosofia seria uma ancila das ciências, ou melhor, uma enciclopédia destas, sistematizando e fornecendo os pilares das construções científicas. Contrariando a orientação geral da Escola do Recife, propugnada por Tobias Barreto, contudo, Artur Orlando não aceita a filosofia como base e síntese das ciências, já chegando a colocá-la como epistemologia.5

2. As bases filosóficas e jurídicas da Escola
2.1. Rudolf von Jhering

Apesar de Jeremy Bentham já haver anteriormente falado no "organicismo do direito", foi Jhering quem levou adiante a idéia, construindo uma anatomia e uma fisiologia jurídicas que iam além da metáfora. Com uma visão biologista que se tornou bem difundida na época, e nem tão estranha aos olhos do século XXI, a anatomia seria responsável pela estrutura componente do direito, com as normas constituindo institutos e estes formando o organismo jurídico, completando a estrutura ontológica do direito; a fisiologia jurídica revelaria o funcionamento efetivo do direito, as bases de sua gnoseologia, pois aquilo que funciona como direito no mundo dos fatos é efetivamente direito, antes mesmo de ele ser normatizado ou institucionalizado pelo Estado: o direito só o é quando se realiza. Ressalte-se a ênfase no fato, no fenômeno, avessa ao idealismo jusnaturalista. A essa dualidade entre anatomia e fisiologia, na mesma direção, Tobias acrescenta a morfologia, a qual estudaria a forma através da qual se apresentam tanto a estrutura como o funcionamento do direito. Sua insistência sobre a forma, nesse ponto, sugere uma perspicácia inegável sobre a procedimentalização do direito, que o século XX acolheria com toda força.

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Mas para Jhering, jurista do século XIX, o direito surge da motivação individual, se bem que socialmente instituída: ao lado da força externa há o elemento íntimo do "interesse". O direito seriam os interesses que a força social protege. Na Luta pelo Direito, o autor dá conotação jurídica às teorias de Darwin, ápice da influência da biologia sobre a teoria do direito; como Darwin argumenta que mais "evoluído" é aquele que triunfa na luta pela sobrevivência, Jhering diz que o direito é uma idéia de força, não uma idéia lógica ou meramente valorativa. Mas, contrariando a Escola Histórica de Savigny, essa força é racionalmente dirigida e não fruto de emanações surdas e irracionais a partir da comunidade, de seu Volksgeist. Na Finalidade do Direito, Jhering delimita as esferas do natural e do social: o homem age "para" algo, teleologicamente, o natural vem "por causa" de algo. É a finalidade que cria o direito, embora a razão intervenha para moldá-lo. Sua influência sobre a Escola do Recife e em todo o Brasil é, sem dúvida, muito importante.6

2.2. Herman Post

Enquanto o método de Jhering é basicamente dedutivo, procurando construir a ciência do direito a partir de conceitos gerais cosmogônicos, aplicáveis a todo o universo, Herman Post constrói um método que se pode chamar de experimental, de cunho histórico, comparando as diversas legislações existentes e as passadas, para a partir daí conceber o fenômeno jurídico. Para se ter uma idéia da surpreendente atualização dos professores da Escola do Recife, antes mesmo de Durkheim apresentar Post aos leitores da Révue Philosophique, em 1887, Tobias já o citara em seu artigo "Uma nova intuição do Direito".

Mas Post também tem sua cosmogonia e aí um de seus atrativos para o positivismo de Tobias e da Escola do Recife. Para ele, há no universo o movimento e o sentimento, ambos com uma origem comum, cuja investigação, metafísica, não estaria a cargo dos juristas. Duas tendências opostas regulariam o mundo: a atração e a repulsão, geradas porque os corpos buscam conservar-se e desenvolver-se, ao mesmo tempo em que procuram limitar o desenvolvimento dos demais corpos a seu redor. Ao lado do mundo mecânico há o anímico (ou psíquico), no qual ocorre a mesma coisa; o direito e o dever na relação jurídica são exemplos da oposição dasPage 308 tendências. O homem, átomo desse mundo anímico, está também sujeito ao mundo mecânico, em uma concepção estratificada do mundo real que será muito depois desenvolvida por Nicolai Hartmann.7

A partir dessas duas tendências de auto-conservação e limitação mútua é gerado o direito, a princípio difuso entre outras ordens normativas, emancipando-se com a organização do poder estatal. Se bem que Post empregue o termo "Estado", Clóvis Beviláqua entende que ele quer significar um conceito mais restrito de "poder público efetivo", em sua organização moderna, pretensamente monopolizadora das normas jurídicas, haja vista a preexistência do direito em relação ao Estado.8

O cientista do direito tem, pois, que atentar para o duplo aspecto da vida jurídica: as idéias e sentimentos da consciência individual e os costumes, leis e outras manifestações da "consciência geral", no jargão da época. Em uma...

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