Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares

AutorAna M. A. Carvalho - Maria Isabel Pedrosa
Páginas221-252

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Situando a questão

A o longo* dos últimos vinte e cinco anos, aproximadamente, vimos trabalhando sobre interação criança-criança com um enfoque psicoetológico (segundo conceituação de ADES, 1986). Esse percurso se caracterizou inicialmente por esforços metodológicos no sentido de descrever interações sociais em situações “naturais” 3 – isto é, grupos de crianças brincando em ambientes cotidianos em nossa cultura, tais como creches e pré-escolas (cf., por exemplo, CARVALHO e MORAIS, 1987); evoluiu posteriormente para a discussão do próprio conceito de interação social e tentativas de desenvolver uma forma de análise capaz de apreender sua dinâmica (CARVALHO, 1988; BRANCO et al ., 1989; CARVALHO et al. , 2002) e para o desenvolvimento de conceitos sobre a natureza dos fenômenos interacionais na troca social humana (CARVALHO, 1992, 1994; IMPÉRIO-HAMBURGER et al., 1996; PEDROSA et al., 1997; CARVALHO et al., 1998). As características centrais desse percurso, a nosso ver, são, por um lado, o foco nas dimensões sociais do fenômeno da infância, tomadas como uma instância dos fenômenos sociais humanos pertinentes ao âmbito da Psicologia – e, paralelamente, pressupostas como constitutivas do desenvolvimento individual. Este pressuposto caracteriza tanto a perspectiva psicoetológica quanto as teorizações contemporâneas sobre desenvolvimento usualmente identificadas como interacionistas, construtivistas, sócio-históricas ou sóciointeracionistas, tais como as de Piaget, Vygotsky e Wallon, que apontaram a interação como fator constitutivo das aquisições “mentais”, procurando superar vieses inatistas e ambientalistas. Por outro lado, o viés etológico de nossa perspectiva encaminha nossas perguntas e nossa análise para os significados funcionais dessas dimensões em termos de adaptações características da espécie, mais do que para suas conseqüências em termos de desenvolvimento individual. A confluência dessas vertentes conduziu ao interesse pelos fenômenos da comunicação nos primeiros anos de vida, o que, por sua vez, encaminhou para o presente interesse por precursores da linguagem, objeto da reflexão preliminar exposta neste texto e dos projetos de pesquisa atualmente em andamento.

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O surgimento da questão a partir de um olhar evolutivo Carvalho e Pedrosa (2004a) resumem um olhar comparativo e evolucionário sobre a comunicação, procurando analisá-la em termos de funções adaptativas, processo evolutivo e processo ontogenético Esse texto constituiu o ponto de partida da presente proposta de trabalho, motivo pelo qual é revisto mais detalhadamente a seguir

A definição psicobiológica de comunicação não é consensual, identificando-se freqüentemente com uma definição mais ou menos abrangente de interação. De fato, em sentido amplo a comunicação pode ser entendida como uma característica universal dos sistemas vivos, incluindo a comunicação entre abelhas e flores de forma a produzir a polinização, a comunicação entre machos e fêmeas de forma a produzir a reprodução, ou entre animais que caçam de maneira cooperativa de forma a produzir o sucesso da caçada (HAUSER, 1996). No entanto, também é consensual o reconhecimento de que a comunicação humana é um fenômeno único na natureza. Rejeitando-se a hipótese simplista de que possa ter evoluído bruscamente, através de emergências ou de mutações sem nenhuma história anterior, parece interessante especular sobre suas origens a partir de uma análise comparativa.

Carvalho e Pedrosa (2004a) empreendem essa especulação a partir da consideração dos contextos funcionais da comunicação na natureza. Em um primeiro nível, consideram as implicações do acasalamento em termos da funcionalidade dos fenômenos comunicativos, apontando o caráter de negociação envolvido nesse contexto funcional. Segundo as análises clássicas da Etologia, o acasalamento envolve um processo de negociação, através do qual indivíduos com motivações semelhantes e ao mesmo tempo conflitantes (atração e medo, gerando um conflito aproximação-esquiva) administram esse conflito por meio de rituais de comunicação (em geral ritualizados ao longo da filogênese) que conduzirão (ou não, em caso de fracasso) a um objetivo partilhado: a cópula e suas variadas conseqüências em termos de continuidade de interações. A sugestão é de que, mesmo em outras espécies animais e possivelmente em estágios filogenéticos ou ontogenéticos em que os recursos comunicativos são pouco flexíveis, a comunicação consiste em um processo de negociação.

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Essa sugestão é ilustrada, no texto, com exemplos de interações de crianças pequenas, cuja base motivacional parece ser uma forma de disputa territorial, negociada através de recursos comunicativos (cf. também CARVALHO e PEDROSA, 2004b; PEDROSA e CARVALHO, 2004).

Em um segundo momento, as autoras consideram os contextos funcionais de sobrevivência – no sentido de proteção contra predadores e outros sinais defensivos – e de interação social – no sentido de troca de informações sobre recursos ambientais e de estabelecimento e administração de relações sociais nos grupos (HAUSER, 1996). O aspecto salientado nesta análise é a passagem da comunicação expressiva para a comunicação referencial, isto é, relativa a aspectos do ambiente físico e social e não apenas a estados emocionais ou disposições comportamentais dos indivíduos em interação. São exemplos disso a comunicação de abelhas a respeito da existência e da localização de alimento através da dança (VON FRISCH, 1967), ou os chamados de alarme de macacos vervet , cujos vários sinais vocais indicam diferentes tipos de predadores e resultam em diferentes estratégias de defesa (STRUHSAKER, 1967). Trata-se de um tipo de comunicação na qual, pode-se dizer, certos sinais representam certos aspectos do mundo externo.

No terceiro momento, é analisada a transição entre expressão emocional e comunicação expressiva, através do processo filogenético de ritualização e de seus análogos ontogenéticos ( ritualização onto- genética, abreviação – LORENZ, 1966; MONTAGNER, 1978; LYRA e SOUZA, 2003). A essência do argumento é de que a comunicação ritualizada se deriva da manifestação de estados motivacionais, convertendo-se em sinais através de processos filogenéticos ou ontogenéticos que simplificam ou abreviam essas manifestações. Montagner, descrevendo interações de crianças pequenas, oferece vários exemplos de ritualização ontogenética, que caracteriza como um processo de “[...] diferenciação de ações, toques, cheiros ou vocalizações até adquirirem valor de sinais” (1978, p. 252).

O termo “ritualização” é tomado de empréstimo ao processo filogenético através do qual certos animais vêm a apresentar comportamentos de topografia estereotipada, simplificada e repetitiva, cujas funções/motivações originais de locomoção, alimentação, defesa, etc. se separam, ao longo da filogênese, do ato em si, adquirindo este,Page 224substitutivamente, valor de sinal – um precursor ou pelo menos um análogo do símbolo na comunicação não-humana (HUXLEY, 1966). Um outro exemplo relativo à ontogênese é a análise da constituição do gesto de apontar, diferenciado a partir do gesto de tentar alcançar algo, uma diferenciação mediada pelo outro que interpreta o gesto e responde a ele, em um processo de regulação recíproca (VYGOTSKY, 1984). O gesto ritualizado representa uma espécie de síntese: um comportamento ou uma seqüência de comportamentos é selecionada, fixada, especializada no processo interativo; estes comportamentos se simplificam e se desprendem de seus contextos de origem, adquirindo outro valor funcional, o valor de sinal.

Nesse desdobramento da emoção ou da motivação vivida em um gesto passível de tornar-se comunicativo, Wallon (1942/1979 4 ) identifica um desdobramento da realidade em representação e um prelúdio da função simbólica:

Um gesto ritual não significa nada senão em relação a um protótipo, não tem outro motivo que não seja obter por este intermediário um resultado, cujas condições e possibilidades não pertencem, totalmente pelo menos, ao campo das circunstâncias presentes. É menos um ato que figuração de um ato. As conseqüências que se procuram não estão nele, mas nas forças que tende a evocar, isto é, no que representa. O rito introduz a representação e a representação, através dele, converte-se no intermediário ou condensador duma eficiência que já não está no simples manejo bruto das coisas nem na simples acção muscular ao contato dos objetos (p. 129).

A analogia entre ritualização filogenética e ontogenética, evidentemente, não se estende aos seus mecanismos, no primeiro caso mediados por variabilidade genética e seleção natural, e no outro por interação social e processos culturais. O interesse dessa analogia reside principalmente no que sugere sobre a natureza dos sistemas comunicativos,Page 225quer se constituam na filogênese quer na ontogênese: sua dinâmica de constituição e transformação, de desprender-se dos referentes originais, de simplificar-se ou abreviar-se aumentando a estereotipia e maximizando e/ou especializando (por exemplo, restringindo a grupos e subgrupos) sua eficácia comunicativa. A etimologia...

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