O princípio da segurança jurídica em matéria tributária

AutorPaulo de Barros Carvalho
CargoProfessor Titular de Direito Tributário da PUC/SP e da USP
Páginas1-23

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1. Amplitude semântica do vocábulo "princípio"

No campo das significações, o uso do signo "princípio" oferece farta variedade conotativa, de tal sorte que alcança todas as circunscrições de objetos, atuando nas quatro regiões ônticas. É uma palavra que freqüenta com intensidade o discurso filosófico, expressando o "início", o "ponto de origem", o "ponto de partida", a "hipótese-limite" escolhida como proposta de trabalho. Exprime também as formas de síntese com que se movimentam as meditações filosóficas ("ser", "não-ser", "vir-a-ser" e "dever-ser"), além do que tem presença obrigatória ali onde qualquer teoria nutrir pretensões científicas, pois toda a ciência repousa em um ou mais axiomas (postulados). Cada "princípio", seja ele um simples termo ou um enunciado mais complexo, é sempre passível de expressão em forma proposicional, descritiva ou prescritiva. Agora, o símbolo lingüístico que mais se aproxima desse vocábulo, na ordem das significações, é "lei". Dizemos, por isso, que há uma lei, em Física, segundo a qual "o calor dilata os corpos", "os metais são bons condutores de eletricidade", "a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias"; na Metafísica, apanhando como exemplo a filosofia de Schopenhauer, que a "vontade se constitui naquele ímpeto cego e irresistível que consubstancia o querer-viver universal": entre os objetos ideais, que a "transitividade" é uma lei lógica: [(p--q).(q--r)] -- (p-- r), assim como a "reflexividade" também o é (xRy)--(yRx); em Economia, falamos em "lei da oferta e da procura", ao mesmo tempo em Page 2 que afirmamos que a "História fundamentalmente diacrônica", para ingressarmos nos domínios dos objetos culturais, onde ao lado de "leis" ou "princípios" descritivos, vamos encontrar as prescrições éticas, religiosas, morais etc., que ostentam o porte de autênticos "princípios". Como desdobramento dessa descritividade e prescritividade, lidamos com "princípios gerais" e "específicos", "explícitos" ou "implícitos", classificando-os como "empíricos", "lógicos", "ontológicos", "epistemológicos" e "axiológicos". Tudo isso é índice da riqueza significativa que a palavra exibe, compelindo-nos a um esforço de elucidação para demarcar o sentido próprio que desejamos imprimir ao vocábulo, dentro de seu plano de irradiação semântica. Impõe-se uma decisão para cada caso concreto, principalmente se a proposta discursiva pretender foros de seriedade científica.

2. O Direito no mundo dos objetos culturais

Enquanto camada de linguagem prescritiva de condutas, o direito positivo é uma construção do ser humano. Nesse sentido, dista de ser um dado simplesmente ideal, não lhe sendo aplicáveis, também, as técnicas de investigação do mundo natural. As unidades normativas selecionam fatos e regulam comportamentos , fatos e condutas recolhidos no campo social. Ora, o fato social, como processo de relação, é um fenômeno com sentido e, sem ele (sentido), que imprime direção aos fatos sociais, é impossível compreendê-los. Os fatos jurídicos, quer os previstos nos antecedentes das normas, quer os prescritos na fórmula relacional dos conseqüentes, apresentam-se na forma de fenômenos físicos (relações de causa e efeito) mais o sentido, isto é o fim jurídico que os permeia. Sem a significação jurídica que presidiu a escolha do evento e inspirou a regulação da conduta, não há falar-se em fatos jurídicos e relações jurídicas. Essa parte do mundo empírico reivindica tratamento especial, que atente para seu lado dinâmico de ações e reações, no esquema de causa e efeito, mas que também o considere, fundamentalmente, naquilo que ele tem de significação, de sentido.

Quem se proponha conhecer o direito positivo não pode aproximar-se dele na condição de sujeito puro, despojado de atitudes axiológicas, como se estivesse perante um fenômeno da natureza ou uma equação algébrica. A neutralidade axiológica impediria, desde o início, a compreensão do sentido das normas, tolhendo a investigação. Além do mais, o conhecimento jurídico já encontra no seu objeto uma auto-explicação, pois o direito fala de si Page 3 mesmo e este falar-de-si é componente material do objeto. Daí a função reconstrutiva do saber jurídico, expressa nas proposições descritivas da Ciência do Direito.

Demoremo-nos, porém, num ponto: se é impossível conhecer as normas do direito positivo sem estimar-lhes o valor, integrante que inere a todo o bem cultural, outra coisa bem distinta é compor o discurso jurídico-descritivo da Ciência aplicando-lhe, pela segunda vez, uma inclinação ideológica, vale dizer, estabelecendo juízos de valor que incidam nas proposições teoréticas do conhecimento científico, opinando sobre a justiça, a racionalidade ou sobre critérios de segurança ou de funcionalidade que certa ordem jurídica oferece ou não oferece, enquanto sistema de direito positivo. O jurista dogmático não deve julgar as normas do ordenamento, unicamente compreendê-las para bem descrevê-las. Assevera por isso Lourival Vilanova que o sujeito do conhecimento, quando trava contacto com o mundo dos conteúdos sociais e históricos, vem a travar contacto consigo mesmo e ao invés da relação pura sujeito-objeto, mescla-se essa relação com uma inevitável parcela de atitude práticovalorativa1.

Acontece que o "dever-ser", na modalidade do jurídico, pressupõe o "poder-ser", isto é, a possibilidade objetiva do comportamento regulado vir a realizar-se na plataforma das interações humanas. E esse "poder-ser" da conduta nada mais é que a liberdade de cumprir a ação prevista ou de omiti-la. Eis aqui o valor, expressão de um dos mais caros e proclamados bens da história do homem, fincado, irremediavelmente, na própria raiz do direito e sem o qual a formulação normativa carecerá de sentido deôntico. Inexista a liberdade de exercer a conduta ou de atuar sua omissão e a disciplina da regra jurídica trará consigo um "semsentido" prescritivo, não de ordem sintática, mas de caráter semântico. Tal valor é um "prius" da análise jurídico-normativa.

3. Os "princípios", na textura das várias linguagens jurídicas

Empregamos "linguagem jurídica" para referir os sistemas de comunicação que se prestam a realizar ou a mencionar o fenômeno jurídico. Por essa locução designaremos o chamado "direito positivo", a Dogmática Jurídica ou Ciência do Direito em sentido estrito, bem como todos aqueles setores do conhecimento que toam o sistema do direito positivo Page 4 como objeto de suas indagações, ainda que não o façam em termos exclusivos. Nessa linha de pensamento, é linguagem jurídica a da Filosofia do Direito e, dentro dela, a da Lógica Jurídica, a da Epistemologia do Direito, a da Axiologia do Direito e a da Ontologia Jurídica. Mas serão também "linguagem jurídica" a Sociologia do Direito, a Antropologia Cultural do Direito, a História do Direito e tantas mais que levem em conta de objeto o sistema das normas positivadas.

De um lado, como linguagem-objeto, temos determinada ordem jurídico-normativa, operando num ponto do tempo histórico e sobre dado espaço territorial; de outro, como metalinguagem descritiva, a Ciência do Direito em sentido estrito ou Dogmática Jurídica, voltada somente a compreender e relatar sua linguagem-objeto. A Filosofia do Direito comparece aqui na condição de metalinguagem se suas reflexões incidirem sobre a linguagem do direito positivo. As meditações filosóficas, entretanto, trabalham muitas vezes sobre construções científicas, momento em que assumem a hierarquia de uma metalinguagem. Outro tanto vale para os demais segmentos contidos no âmbito das "ciências jurídicas em sentido amplo".

Firmados nessas ponderações, é lícito assertar a existência de "princípios jurídicos" em todos os setores da investigação do Direito. E é com tal dimensão significativa que enunciamos os princípios ou leis ditas ontológicas: "tudo que não estiver juridicamente proibido, estará juridicamente permitido" e "tudo que não estiver juridicamente permitido, estará juridicamente proibido"; os princípios jurídicos empiricamente verificáveis, como, por exemplo: "de acordo com a Constituição vigente, o Brasil é uma república federativa" (princípios federativo e republicano). Há o princípio lógico jurídico segundo o qual "toda conduta obrigatória está necessariamente permitida" (e linguagem formalizada, diremos: (Op--Pp), em que "O" é o modal "obrigatório", "P", o "permitido" e "p" uma conduta qualquer). Esse "princípio" ou "lei" da Lógica Deôntico-Jurídica, aliás, é o fundamento da conhecida "ação de consignação em pagamento". Ao lado dele, por oportuno, podemos indicar a lei lógica da "idempotência do conjuntor", aplicada ao Direito: "Se duas ou mais normas servirem-se do mesmo antecedente e prescreverem a mesma regulação da conduta, então todas elas eqüivalem a uma só". Expliquemos o princípio, formalizando-o e, depois, mediante um exemplo prático e objetivo. A "lei" da idempotência do conjuntor (utilizada para o universo jurídico) assim se exprime, em linguagem formal: (Vp.Vp.Vp.Vp.Vp)=Vp, onde "V" é a notação simbólica da "proibição"; "p", uma conduta qualquer; "."...

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