Prisão civil por alimentos e a questão da atualidade da dívida à luz da técnica de ponderação de interesses (uma leitura constitucional da súmula 309 do STJ): o tempo é o senhor da razão

AutorCristiano Chaves de Farias
CargoPromotor de Justiça da Bahia; Mestre em Ciências da Família pela Universidade Católica do Salvador (UCSal); Professor de Direito Civil do curso de Direito das Faculdades Jorge Amado e do Curso JusPODIVM – Centro preparatório para a carreira jurídica
Páginas34-59

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“Não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido, transcorrendo, transformando, tempo e espaço, navegando todos os sentidos... Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei, transformai as velhas formas do viver, ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei, mãe senhora do Perpétuo, socorrei” (Gilberto Gil, Tempo Rei) 1

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1. Os alimentos na perspectiva civil-constitucional: instrumento de afirmação da dignidade da pessoa humana

Fruto da arquitetura social antevista pela norma constitucional, foi reconhecida uma compreensão mais contemporânea, atual, da entidade familiar, considerados, inclusive, os avanços técnico-científicos e a natural evolução filosófica do homem.

Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A família - agora democrática, igualitária e desmatrimonializada – passa a estar cimentada na solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, além da redução das desigualdades, regida pelo afeto, como grande mola propulsora.

É traçado um novo eixo fundamental da família, não apenas consentâneo com a pós-modernidade, mas, igualmente, afinado com os ideais de coerência filosófica da vida humana e com as diretrizes e opções da Carta Constitucional brasileira.

Outrossim, deixando a família de ser compreendida como núcleo econômico e reprodutivo (entidade de produção), avançando para uma compreensão sócioafetiva (como expressão de uma unidade de afeto e entre-ajuda), surgem, naturalmente, novas representações sociais, novos arranjos familiares. Abandona-se o casamento como ponto referencial necessário, para buscar a proteção e o desenvolvimento da personalidade do homem. É a busca da dignidade humana, sobrepujando valores meramente patrimoniais 2 .

Desenha-se, assim, o dever alimentar na ordem jurídica brasileira como verdadeira materialização do próprio direito à vida digna 3 , proclamado pelo art. 1 º , III, do Pacto Social de 1988.

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Eleito como princípio vetor da República (verdadeira pedra de toque de todo o sistema jurídico pátrio), a dignidade da pessoa humana 4 coaduna-se com a nova feição da família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros, em especial à criança e ao adolescente, como reza o art. 227 do Texto Magno, a quem incumbe à família, à sociedade e ao estado conferir proteção integral e prioridade absoluta.

Aliás, reside na própria afirmação da dignidade da pessoa humana o fundamento axiológico da obrigação alimentícia, admitindo, até mesmo, a excepcional prisão civil do devedor (autorizada pelo art. 5 º , VXVII, da Lex Mater), como forma de coerção para o adimplemento 5 .

Averbe-se, então: toda e qualquer decisão acerca de alimentos deve ser presidida pelo (fundamental) princípio da dignidade do homem, respeitando as personalidades do alimentante ou alimentando, pena de incompatibilidade com o Texto Magno.

Ilustrativamente, vale trazer à lume importante precedente jurisprudencial, admitindo o princípio da dignidade humana como a mola propulsora da fixação dos alimentos:

“O pai não pode ser insensível à voz de seu sangue em prestar alimentos ao filho menor que, em plena adolescência, não só necessita sobreviver, mas viver com dignidade, não sendo prejudicado em sua educação, nem em seu lazer, pois tudo faz parte da vida de um jovem, que antes da separação desfrutava do conforto que a família lhe proporcionava, em razão do bom nível social de seus pais. Não se justifica a diminuição dos alimentos prestados, se o ex-marido socorre a mulher com importância muito superior a obrigação alimentar que lhe foi imposta em benefício do filho, ainda mais se aposentada como professora. A mãe já faz a sua parte tendo a guarda do filho menor e cumpre um ônus que não tem preço. O pai não está em insolvência, somente enfrenta as dificuldades decorrentes da crise que assola o país, que se reflete na pessoa de seu filho, que, igualmente, sofre com a política econômica do governo federal.” (TJ/RS, Ac. 8 a Câm.Cív., ApCív. 597.151.489, rel. Des. Antônio Carlos Stangler Pereira, j.12.8.99)

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Desse modo, avulta afirmar, como conclusão lógica e inarredável, que a obrigação alimentar cumpre um papel funcionalizado, devendo, efetivamente, servir como ambiente propício para a promoção da dignidade e a realização da personalidade dos beneficiários. Do contrário, ainda viveremos como os nossos pais (lembrando da canção), esquecendo que o principal sentido da evolução é não permitir que se mantenham erros e equívocos de um tempo passado.

2. Alimentos como expressão do princípio constitucional da solidariedade

Antes mesmo de caracterizar-se como princípio jurídico, a solidariedade social é, sem dúvida, uma virtude e uma necessidade ético-teologal 6 .

De qualquer modo, contempla a Lex Fundamentallis, dentre os seus objetivos fundamentais a afirmação da solidariedade social e da erradicação da pobreza e da marginalização social (art. 3 º ). Nessa arquitetura, MARIA CELINA BODIN DE MORAES é feliz ao sustentar que “o abandono da perspectiva individualista, nos termos em que era garantida pelo Código Civil, e sua substituição pelo princípio da solidariedade social, previsto constitucionalmente, acarretou uma profunda transformação no âmago da própria lógica do direito civil” 7 .

Exatamente nessa linha de entendimento, também assegura a Carta Fundamental (art. 3 º ) ser objetivo fundamental da República “promover o bem de todos”, explicitando uma nítida preocupação com a dignidade da pessoa humana.

Ora, a afirmação de uma sociedade livre, justa e solidária (solidariedade social) afirma, sem dúvida, a supremacia da proteção da pessoa humana em detrimento da desmedida proteção patrimonial que sempre norteou o Direito Civil (antes da Magna Charta).

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Por isso, a fixação dos alimentos deve obediência a uma perspectiva solidária (CF, art. 3 º ), norteada pela cooperação, pela isonomia e pela justiça social, como modos de consubstanciar a imprescindível dignidade humana (CF, art. 1 º , III) 8 . Nessa linha de idéias, é fácil depreender que, comprometida em larga medida a concretização dos direitos econômicos e sociais afirmados pelo Pacto Social de 1988 de pessoas atingidas pelo desemprego ou pela diminuição da capacidade laborativa (e.g., em adolescentes, em jovens ainda estudantes, em idosos, em deficientes, etc), a obrigação alimentícia cumpre a relevante função de garantir a própria manutenção de pessoas ligadas por vínculo de parentesco 9 .

Ou seja, a obrigação alimentar é, sem dúvida, expressão da solidariedade social e familiar 10 (enraizada em sentimentos humanitários) constitucionalmente impostas como diretriz da nossa ordem jurídica.

3. A técnica de ponderação de interesses (proporcionalidade) como mecanismo de afirmação dos valores constitucionais

Reconhecido o deslocamento do eixo fundamental do Direito Civil – e das relações privadas como um todo – para a sede constitucional, onde passou a encontrar o conteúdo fundante de seus institutos elementares (como a propriedade, o contrato e a própria família) sobreleva reconhecer a importância da técnica de ponderação dos interesses, como relevante mecanismo de efetivação e implementação dos valores constitucionais.

É que, não raro, percebe-se a colidência, o conflito, entre diferentes valores de igual hierarquia. Máxime em se tratando de normas de conteúdo aberto (como as que, agora, inspiram o Direito Civil) que, muita vez, colidem frontalmente com outras normas de mesmo patamar hierárquico. Aliás, até mesmo entre diferentes normas constitucionais sói ocorrer tais conflitos.

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Essa possibilidade de contradição entre diferentes normas ou princípios integrantes de um mesmo sistema é um fenômeno absolutamente natural e inevitável, pois na formação dele são acolhidas diferentes idéias fundantes, que, conseqüentemente, podem conflitar entre si.

Explica DANIEL SARMENTO que “longe de se limitar à normatização esquemática das relações entre cidadão e Estado, a Constituição de 1988 espraiou-se por uma miríade de assuntos, que vão da família à energia nuclear. Assim, é difícil que qualquer controvérsia relevante no direito brasileiro não envolva, direta ou indiretamente, o manejo de algum princípio ou valor constitucional. A ponderação de interesses assume, neste contexto, relevo fundamental, não apenas nos quadrantes do Direito Constitucional, como também em todas as demais disciplinas jurídicas”. 11

Pois bem, a resolução dos conflitos normativos não mais pode estar sustentada pelos critérios clássicos estabelecidos no desenho clássico da ciência jurídica, através das ineficientes (e insuficientes) regras “norma posterior revoga a anterior” e “norma especial revoga a geral”, dentre outras 12 . Especialmente na nova estrutura jurídica descortinada pela Constituição da República, que afirma a cidadania como valor superior e intangível.

Assim, surge a técnica de ponderação de interesses (ou proporcionalidade) como critério seguro para as colisões normativas, sempre centrada na busca da afirmação do valor máximo constitucional –...

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