O processo de execução fiscal e a nova execução civil

AutorEduardo Domingos Bottallo
CargoLivre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Tributário
Páginas140-151

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1. Considerações iniciais

I - Este trabalho tem o propósito de examinar algumas questões pertinentes ao "processo de execução fiscal" - expressão que, para os fins aqui perseguidos, compreende: (i) o instrumental de que se vale o Estado (lato sensu) para realizar a cobrança da sua dívida ativa e (ii) os meios de que dispõem os contribuintes para se oporem a esta cobrança, caso a considerem destituída de juridicidade.

Nenhum esforço é necessário para enfatizar a relevância do tema.

Com efeito, nosso sistema jurídico, apesar de outorgar importantes privilégios à dívida fiscal, não reconhece ao Estado o poder de auto-executoriedade, que o habilitaria a buscar diretamente junto aos contribuintes a satisfação de seus créditos.

Neste contexto, a intervenção do Poder Judiciário mostra-se inafastável, levando ao que poderia ser denominado de processualização da pretensão do Estado ao tributo.

Detenhamo-nos na análise dessa assertiva.

II- O ordenamento jurídico brasileiro assegura ao contribuinte expressiva gama de direitos que restringem e condicionam o exercício das competências tributárias.

Os preceitos consubstanciados no art. 150 da CF ("limitações do poder de tributar") são bons exemplos dessas restrições. Reconhecem-se ao contribuinte, por meio deles, os direitos à legalidade, à isonomia, à não-surpresa, à não-confiscatoriedade -e assim por diante.

Trata-se, como fica claro, de regras pertinentes aos mecanismos de instituição do tributo.1

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Já em momento posterior, quando não mais se cuida da criação, e sim da cobrança do tributo, a tutela do contribuinte opera-se em outro plano, ou seja, através de garantias que devem ser asseguradas pelo Poder Judiciário, no desempenho de sua atividade jurisdicional. É justamente neste cenário que se opera a processuali-zação acima referida, cuja tônica repousa na isonomia.

A respeito, as observações do mestre Souto Maior Borges são, como sempre, impecáveis: "O processo tributário é, nesse sentido, o mais insigne, a mais eminente das significações, serviente da justiça fiscal. Não uma justiça platônica ideal, mas a justiça possível, incorporada a um contexto de direito positivo e cuja expressão constitucional unificadora e aglutinante das demais normas-princípios é a isonomia. Igualdade que, no plano do processo judicial tributário, se traduz na relação de isonomia entre Fisco e contribuinte. Incompatível com certos expedientes fa-zendários intimidatórios (apreensão de mercadorias em barreiras interestaduais, interdição de estabelecimentos, regimes especiais vexatórios de fiscalização, lista de devedores remissos e outros, que tais) para os quais o remédio há de ser encontrado no contencioso judicial tributário, com os seus meios e recursos próprios, a justa ponderação dos interesses em conflito".2

Tais são as preciosas diretrizes que devem estar presentes na apreciação de questões relacionadas com o processo de execução fiscal.

III - Entre os anos de 2005 e 2007 o sistema processual brasileiro foi alvo de sucessivas intervenções, visando a simplificar e imprimir agilidade à tramitação dos feitos.

Pretendeu-se, assim, implementar a garantia fundamental que a Emenda Constitucional 45/2004 inseriu no corpo de nossa Lei Maior: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (art. 5o, LXXVIII, da CF).

Cuidaremos, neste trabalho, de examinar se - e em que medida - estas inovações se projetaram no campo específico do processo de execução fiscal.

Deveras, a Lei 11.382/2006 alterou, de modo bastante expressivo, o Livro II do Código de Processo Civil, que trata do processo de execução. Algumas dessas modificações ecoaram na Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830, de 22.9.1980/LEF), trazendo à tona diversas questões e suscitando relevantes dúvidas - merecedoras, por isso, de especial consideração.

Importa, ainda, destacar, neste contexto, a Lei Complementar 118, de 9.1.2005, que, concebida com a proclamada finalidade de adaptar as normas do Código Tributário Nacional à nova Lei de Falências e de Recuperação Judicial (Lei 11.101, de 9.2.2005), foi muito além deste propósito, penetrando em importantes setores do processo judicial de cobrança da dívida ativa.

Feitas estas observações, passemos, então, ao exame do tema.

2. O processo de execução fiscal: aspectos gerais

I - Até o advento da Lei de Execução Fiscal o processo de execução fiscal

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não diferia daquele aparelhado por outros títulos executivos extrajudiciais (art. 585 do CPC). A partir de então, passou a ser objeto de disciplina própria e a ser regido apenas subsidiariamente pelo Código de Processo Civil.

A Lei de Execução Fiscal, segundo entendemos, pouco concorreu para o aprimoramento do processo judicial de cobrança de dívida ativa. Muito pelo contrário, ficou marcada pela disposição de suprimir direitos dos contribuintes e atropelar procedimentos a respeito dos quais já se havia assentado pacífico entendimento, além de penetrar em áreas que refogem aos reconhecidos limites do processo, ou seja, aquelas reservadas ao direito material tributário em sentido estrito.

Tornou-se, assim, necessário um laborioso empenho da doutrina e da jurisprudência para que estas distorções - pelo menos as mais gritantes - fossem, ao longo do tempo, sendo corrigidas.

Não é o caso, porém, de aprofundarmos, aqui, a análise desses aspectos - do que em outra oportunidade já nos ocupamos.3

II- Segundo o art. 585, VI, do CPC, a certidão da dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios correspondente aos créditos inscritos na forma da lei constitui título executivo extrajudicial.

É importante assinalar que, ao contrário do que ocorre com os outros títulos enumerados nesse dispositivo, a certidão da dívida ativa é documento produzido inteiramente pelo credor (a Fazenda Pública), que, neste mister, deve apenas obediência às prescrições legais pertinentes, sem necessidade de anuência do devedor.

A certidão da dívida ativa caracteriza-se, assim, pela sua unilateralidade.

Em outras palavras, a formação dos demais títulos referidos no art. 585 do CPC depende, como regra geral, da expressa participação (ou anuência) do devedor (é o caso do aceite da duplicata ou da letra de câmbio, da emissão da nota promissória, da aposição do aval etc.), ao passo que a certidão da dívida ativa goza de plena presunção de liquidez, certeza e exigibilidade quando inscrita pela Fazenda Pública, independentemente de qualquer ato de concordância ou de adesão por parte do contribuinte.

Assim, a partir de sua inscrição, este título, revestido dos apontados atributos, passa a ter o efeito de prova pré-constituída, muito embora tal presunção seja relativa, podendo ser ilidida por prova inequívoca a cargo do sujeito passivo ou do terceiro a que aproveite (CTN, art. 204; LEFiscal, art. 3o).

III - A redação dada ao caput do art. 187 do CTN pela Lei Complementar 118/2005 manteve a regra segundo a qual a cobrança judicial do crédito tributário não se sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, "recuperação judicial" (expressão acrescida), concordata, inventário ou arrolamento.

Ficou confirmada, portanto, a autonomia da execução fiscal, sem prejuízo da manutenção da obrigatoriedade de entrega do produto arrecadado ao juízo universal da falência.4

De outra parte, a Lei Complementar 118/2005 manteve o parágrafo único desse art. 187, que prevê a instauração de concurso de preferência entre os créditos fiscais de titularidade das diferentes pessoas de direito público, colocando, em escala de prioridade, os créditos tributários federais acima dos estaduais e distritais, e estes acima dos municipais.

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Este dispositivo sempre nos pareceu inconstitucional. Sua incompatibilidade com o princípio da igualdade das pessoas jurídicas de direito público é manifesta.5

A nosso ver, portanto, perdeu-se, com a edição da lei complementar em análise, excelente oportunidade de corrigir esta anomalia, o que se alcançaria caso fosse revogado o infeliz parágrafo.

Passemos, agora, ao exame da Lei de Execução Fiscal em confronto com a Lei 11.382/2006.

3. A Lei de Execução Fiscal e a Lei 11 382/2006

I - Conforme já foi antecipado, a Lei 11.382/2006 alterou, de modo bastante expressivo, a sistemática do processo de execução disciplinada pelo Código de Processo Civil.

Estas alterações, afora os já apontados propósitos de simplificação e celeridade, traduziram-se também na outorga de maiores vantagens e benefícios ao credor, tudo em detrimento do princípio segundo o qual, sempre que possível, a execução deve ser feita pelo modo menos oneroso para o devedor.6

A partir de então, colocou-se a questão de saber se esta nova disciplina seria extensiva ao processo de execução fiscal.

Em que pese a algumas manifestações em contrário, estamos convencidos de que a resposta a tal indagação há de ser negativa.

Milita a favor de nosso ponto de vista a norma do art. 2°, § 2°, da LICC, segundo a qual a lei geral posterior não revoga a lei especial anterior. Afirmações voluntaris-tas que proclamam a superação deste preceito são, a nosso ver, inaceitáveis.

Não bastasse isso - e como foi consignado no item 2, retro -, a dívida ativa do Poder Público já conta com expressiva gama de privilégios processuais a favorecer sua cobrança. Aliás, a concessão desses privilégios foi o fator determinante que levou à "decodificação" da execução fiscal nos idos dos anos 80 do século passado.

Não se justifica, portanto, que, às vantagens...

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