Propriedade, propriedade intelectual e domínio público

AutorSérgio Branco
Páginas9-86
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CAPÍTULO 1
PROPRIEDADE, PROPRIEDADE INTELECTUAL
E DOMÍNIO PÚBLICO
.. O D  P
... C 
Em março de 2009, foi noticiado pela imprensa que os cantores e compositores
Roberto Carlos e Erasmo Carlos haviam rompido o contrato com a gravadora EMI,
readquirindo os direitos autorais sobre algumas de suas composições, anteriormente à
gravadora.
A demanda consistia em poder veicular, por meio de CD e DVD gravados pela
Sony/BMG, músicas como “Amor Perfeito”, “Como é Grande meu Amor por Você” e “É
Proibido Fumar”, cujos direitos pertenciam, por força contratual, à EMI.
Roberto Carlos e Erasmo Carlos alegavam que quando da assinatura do contrato
com a EMI, ainda nos anos 1960 e 1970, não existiam mídias como CD e DVD. Dessa
forma, a cessão não poderia se operar a respeito dessas modalidades. Com base em tal
argumento, entre outros, a juíza de primeiro grau, da comarca do Rio de Janeiro, julgou
o pedido procedente.
O que nos interessa na decisão não é propriamente a aplicação da LDA ao caso
concreto. Interessante é observar como a juíza se refere à titularidade das composições
objeto da disputa judicial.
Por diversas vezes, menciona-se a palavra “propriedade” ao longo da sentença. Pri-
meiro, para se dizer que “[a]s gravadoras normalmente obtêm a propriedade parcial ou
total dos direitos autorais da composição, conhecidos por cessão ou transferência dos
direitos autorais”. A seguir, menciona que “há uma transferência da propriedade da com-
posição à gravadora em troca do pagamento dos direitos autorais ao compositor em
1 COSTA, Priscyla. Roberto Carlos e Erasmo Carlos rompem contrato com EMI. Disponível em http://www.conjur.
com.br/2009-mar-07/roberto-carlos-erasmo-carlos-ganham-direitos-autorais-musicas. Acesso em 15 de fevereiro
de 2010.
2 O art. 49, V, da LDA prevê que a cessão de direitos autorais só poderá se operar para as modalidades de utilização
existentes à data do contrato. Este dispositivo não constava da lei 5.988/73, antiga lei autoral brasileira.
3 Grifamos. Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-mar-07/roberto-carlos-erasmo-carlos-ganham-direitos-
-autorais-musicas?pagina=2. Acesso em 15 de fevereiro de 2010.
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Sérgio Branco
parcelas e intervalos de tempo acordados no contrato”. Finalmente, ao comentar cláu-
sulas contratuais abusivas inseridas nos instrumentos contratuais por parte das gravado-
ras, arma:
As editoras incluem nos contratos cláusulas que são verdadeiras violações ao direito
autoral – e mesmo ao direito civil lato sensu – tendo como objetivo: (i) a propriedade
denitiva das obras; (ii) a retenção ilegal do repertório; e (iii) a concessão de adianta-
mento ou ‘advance’ como maneira de garantir uma ausência de risco do investimento.
O primeiro dos atos praticados pelas editoras é o fato de que, a partir da cessão ou
edição das obras, passam a exercer a propriedade denitiva das mesmas. Ocorre que a
editora musical, que em verdade contrata com o compositor a administração de seu
repertório, para fazer crescer a assimilação deste, pretende tornar-se proprietária eterna
das composições dos cedentes.
Como observado, a sentença menciona, quanto às obras objeto da disputa judicial,
(i) a propriedade dos respectivos direitos autorais, (ii) a transferência de sua propriedade,
(iii) a propriedade denitiva dos bens (no caso, a composição musical) e até mesmo (iv)
sua propriedade eterna. Em nenhum momento, entretanto, faz-se referência ao termo
“propriedade intelectual”, nem tampouco é referida qualquer de suas peculiaridades. O
direito autoral é tratado, aqui, como qualquer outra propriedade. Como a propriedade
terrena. Ou como a propriedade de bens tangíveis móveis. A sentença se limita a denir
os direitos autorais como objeto de “propriedade”.
Sendo assim, indagamos: é adequado tratarmos os bens protegidos por direito auto-
ral como objeto de propriedade? Fazer a distinção entre a propriedade física e a imaterial é,
de alguma forma, necessária (ou útil)? Existe um instituto jurídico a que devemos denomi-
nar propriedade capaz de abranger todos os bens passíveis de serem objeto de apropriação?
A ideia de propriedade é, em primeiro lugar, intuitiva. Desde a pré-história, o
homem é capaz de formular o conceito de que algo é seu, de que lhe pertence. E apesar
de seu conceito variar “conforme o sistema político [em] que esteja inserido e, também,
sem dúvida de acordo com a ordem jurídica vigente em cada momento histórico de cada
povo”, a verdade é que a compreensão do que vem a ser propriedade é algo humano.
Até mesmo as crianças, ainda que de maneira imprecisa, possuem essa percepção.
4 Grifamos. Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-mar-07/roberto-carlos-erasmo-carlos-ganham-direitos-
-autorais-musicas?pagina=3. Acesso em 15 de fevereiro de 2010.
5 Grifamos. Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-mar-07/roberto-carlos-erasmo-carlos-ganham-direitos-
-autorais-musicas?pagina=4. Acesso em 15 de fevereiro de 2010.
6 Alguns autores armam que a ideia de propriedade surge apenas quando o homem deixa de viver em um mundo de
abundância (enquanto nômade) para viver em um mundo de escassez (decorrente de sua axação em determinado
lugar). Ver, entre outros, PROUDHON, J. P.. Que é a Propriedade? Estudos sobre o Princípio do Direito e do
Estado. São Paulo: Edições Cultura Brasileira; p.64.
7 TORRES, Marcos Alcino. O impacto das novas ideias na dogmática do Direito de Propriedade. A multiplicidade
dominial. Transformações do Direito de Propriedade Privada. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 102.
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O domínio público no direito autoral brasileiro
– Uma Obra em Domínio Público –
Mas o que é propriedade?
O dicionário Houaiss assim a dene, entre outras denições aplicáveis: (i) coisa
possuída com exclusividade, (ii) pertença ou direito legal de possuir (algo), (iii) imóvel
pertencente a alguém; prédio, casa, (iv) direito de usar, gozar e dispor de um bem, e de
reavê-lo do poder de quem ilegalmente o possua.
Naturalmente, não se espera de um dicionário que traga denição jurídica precisa.
Vê-se que os conceitos de posse (i e ii) e de propriedade imóvel (iii) encontram-se im-
bricados. Mas é o item (iv) que mais se destaca pela terminologia adotada.
O Código Civil brasileiro (doravante, “CCB”) não dene o que vem a ser pro-
priedade. Apenas determina, em seu art. 1.228 que “[o] proprietário tem a faculdade de
usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injusta-
mente a possua ou detenha”.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald criticam a decisão do legislador em
omitir o conceito de propriedade:
No Código Civil em vigor, o art. 1.228 reproduz a ideia mestra da propriedade.
Endossamos a crítica formulada por Luiz Roldão de Freitas no sentido de o Código
Civil de 2002 – a exemplo do BGB – ter mais uma vez omitido o conceito de pro-
priedade, pois, ao enumerar as faculdades essenciais que integram o domínio – uso,
fruição e disposição da coisa –, a lei guiou-se menos por um viés cientíco do que
por um singelo critério descritivo da propriedade, através de seus poderes. Isso con-
duz a soluções pouco exatas, pois aprisiona o direito de propriedade a um só tipo de
propriedade.
A crítica nal dos autores – aprisionar o direito de propriedade a um único tipo – é
de fato pertinente. Não é possível tratarmos o instituto da propriedade a partir de uma
perspectiva absoluta. Ao contrário: a propriedade é múltipla. Por conta disso, a deni-
ção de propriedade é, sem dúvida, tormentosa. Orlando Gomes arma que “[o] direito
real de propriedade é o mais amplo dos direitos reais, – ‘plena in re potesta. A seguir,
preceitua:
8 Apesar de ser intuitivamente simples a compreensão da propriedade, sua explicação jurídica é bastante complexa.
Podemos aqui parafrasear Cecília Meirelles, que disse a respeito da liberdade: “Liberdade, essa palavra que o sonho
humano alimenta / que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.
9 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – 2ª Reimpressão. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2007.
11 FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.
167. Para uma análise estrutural e funcional do art. 1.228 do CCB, ver BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES,
Maria Celina Bodin de e TEPEDINO, Gustavo (orgs.). Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da
República, Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
12 Grifos no original. GOMES, Orlando. Direitos Reais – 10ª ed. Rio de Janeiro: ed. Forense, 1994; p. 85.
13 Grifos no original. GOMES, Orlando. Direitos Reais – 10ª ed. Cit.; p. 85.

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