A proto-história dos direitos humanos fundamentais

AutorAlberto de Magalhães Franco Filho
Páginas189-208

Page 189

1 Introdução

Preliminarmente, insta salientar que nesse trabalho utilizar-se-á a expressão "direitos humanos fundamentais" como gênero dos direitos afetos aos seres humanos, dos quais são espécies os direitos humanos e fundamentais123.

O estudo da origem e da evolução dos direitos humanos fundamentais ao longo dos tempos é um tema fascinante que justificaria tranquilamente a confecção de uma obra inteira ou de inúmeras monografias e teses4.

Contudo, nesse trabalho o objetivo é mais modesto, ao passo que, apresentar-seão, tão somente, a sucessão dos momentos marcantes que determinaram o surgimento de tais direitos.

Por essa razão, nesse empreendimento o estudo da História, assume um relevante sentido, já que

os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstancias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.5

Assim, a sedimentação dos direitos humanos fundamentais como normas obrigatórias é resultado de uma "maturação histórica"6.

Contudo, convém registrar, que existem inúmeras posições doutrinárias divergentes sobre a origem histórica dos direitos humanos fundamentais. Porém, é de se Page 190 observar que, invariavelmente, seja qual for a fundamentação teórica adotada sobre tais direitos (jusnaturalista, positivista, moral etc.), é certo que ao menos do ponto de vista formal, eles foram originalmente positivados, ou seja, sua afirmação históricodocumental ocorreu efetivamente nas declarações de direitos das revoluções americana e francesa, sendo esta constatação um "dado" histórico irrefutável.

Seguindo essa linha de raciocínio, Canotilho afiança que é possível fazer um "corte histórico" no processo de desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais em dois períodos distintos. Um primeiro que antecede ao Virginia Bill of Rigths de 1776 e a Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789, marcado por uma "relativa cegueira" em relação aos direitos humanos fundamentais; e um posterior a essas declarações de direitos, que conduziu à constitucionalização e irradiação desses direitos pelas Constituições dos Estados7 e, por fim, seu reconhecimento internacional.

O objeto de estudo desse trabalho será essa primeira fase histórica, denominada "proto-história", que compreende o surgimento da ideia de direitos humanos fundamentais até sua inequívoca positivação nas declarações de direitos das revoluções americana e francesa.8

2 Considerações sobre a idade antiga

Antes, porém, do início do estudo da proto-história, e dos acontecimentos relevantes para formação dos direitos humanos fundamentais, é oportuno alertar que, nas próximas páginas não será contada "[...] a parte mais bela e importante de toda a História [...]",9 como afirma Comparato ao se referir, preambularmente, ao sentido e evolução dos direitos humanos fundamentais. Na verdade, as conquistas históricas de direitos, no decorrer da história, sucederam- se

[...] após narrativas seqüenciais de dor física e moral em grandes proporções. É prudente destacar, no entanto, que dores houve em tanta grandeza, na antiguidade e na Média Era, que despertaram não apenas o remorso mas também serviram como alimento da ética e da ética da dignidade do homem, como um 'aprendizado com e contra o mal' a incutir-se tempo afora como uma 'memória da tragédia' a contribuir para a evolução da condição do ser precário e ambivalente do homem. O fanatismo, a ignomínia da guerra e a Page 191 injustiça parece que habitam nossos arquétipos como teste de uma passagem tão longa quanto o tempo que vem do primogênito Adão aos dias em que vivemos.10

Adentrando propriamente no estudo histórico, Moraes proclama que a origem dos direitos humanos fundamentais pode ser encontrada no antigo Egito e Mesopotâmia, durante o terceiro milênio a. C., onde já existiam alguns mecanismos de proteção individual em face do Estado, sendo que a primeira codificação a consagrar direitos comuns a todos os homens seria o Código de Hamurabi (1690 a. C.). O autor vislumbra também a influência filosófico-religiosa dos direitos do ser humano com a propagação das ideias de Buda (500 a. C.). Por fim concluí que os direitos humanos fundamentais surgem de forma mais coordenada a partir de estudos sobre a necessidade de igualdade e liberdade do homem, como as previsões de participação política dos cidadãos existentes na Grécia antiga (democracia direta de Péricles) e ainda de forma mais veemente no Direito Romano Clássico, em que, originalmente, estabeleceu-se um complexo mecanismo de interditos com vistas a tutelar direitos individuais em face dos arbítrios estatais. 11

Nesse sentido, também é a lição de Ferreira Filho que aponta como remoto ancestral da doutrina dos direitos humanos fundamentais à antiguidade, em que existia um direito superior não estabelecido pelos homens, mas dado a estes pelos deuses, com referência à Antígona de Sófocles e ao diálogo De Legibus, de Cícero.12

Contudo, há quem discorde da posição juristas supramencionados, já que seria inconcebível assentir na antiguidade clássica a ideia de direitos humanos fundamentais diante do estatuto da escravidão13. Ademais, faltaria às civilizações grega e romana a ideia de Estado e de direito público no sentido moderno14.

Carvalho chega a afirmar que

o mundo antigo não conheceu o primado da liberdade individual e por via de conseqüência nele não se fizeram presentes as condições históricas necessárias ao desenvolvimento dos direitos humanos. As relações sociais Page 192 daquela época estavam centradas nas forças da religião e da família, e não havia uma esfera de tolerância relativamente às liberdades individuais. Para a conservação dos interesses da polis tudo era permitido, e tanto em Roma como na Grécia antigas o estado não encontrava limites na sua órbita de sua atuação.15

Na verdade, parece-nos que a Idade Antiga16 não pode ser considerada como verdadeiro berço histórico dos direitos humanos fundamentais, nem tampouco afirmar que essa época quedou-se numa completa "cegueira" em relação à ideia destes direitos.

Com efeito, é possível vislumbrar um parco e prisco antecedente na Grécia antiga, entre os filósofos sofistas que reconheciam a natureza biológica comum dos homens, aproximando-se então da tese da igualdade natural e da ideia de humanidade.17

Já entre os pensadores estoicos18, a referência, embora insignificante, é um pouco mais latente que a sofista, ao passo que, para eles a igualdade assume um lugar proeminente, pois ela radica do fato de todos se encontrarem sob um nomos unitário, que os converte em cidadão do grande Estado universal.19 Segundo os estoicos, "o mundo é uma única cidade - cosmo-polis - da qual todos participam como amigos e iguais.".20

Também é possível encontrar alguma referência inexpressiva, em Roma a partir das formulações de Cícero (latino que também cultivou o estoicismo, como Sêneca) que desenvolveu uma certa compreensão de dignidade desvinculada do cargo ou posição social ocupado pelo seu detentor, existindo, portanto, um sentido moral relativo às virtudes do indivíduo e um sociopolítico atinente à posição ocupada por ele.21

Percebe-se, então, ao menos prima face, que existe alguma alusão à noção de direitos humanos fundamentais na antiguidade.

Não obstante, é forçoso consignar que, ao contrário do que afirma Moraes ao mencionar o antecedente histórico mesopotâmico e egípcio, os direitos humanos Page 193 fundamentais são incontestavelmente oriundos da civilização ocidental. Esta é a lição de Lewandowski, in verbis:

Não se pode olvidar que os direitos humanos, tal como nós compreendemos atualmente, tem uma origem comum: são produto da civilização ocidental, cuja nota distintiva é o humanismo, que consiste, segundo Reale, em tomarse o homem como valor-fonte de todos os valores. Isso não ocorre em outras culturas, onde distintos são os paradigmas dominantes. No oriente, como se sabe, a ênfase da cultura dá-se no universal, no coletivo, no social, seja na religião, seja na política. Basta pensar-se, por exemplo, no nirvana budista, que corresponde, em suma, a um estado espiritual alcançado por meio da supressão do desejo e da consciência individual, isto é, a completa integração da pessoa na natureza circundante. Também o confucionismo, que dominou por mais de dois mil anos o sistema filosófico da China, a partir do século V a.C., e influencia até hoje o modo de pensar chinês e de boa parte do mundo oriental, baseia as relações pessoais no interesse mais amplo da comunidade.22

Extrai-se, portanto, que o estudo da história dos direitos humanos fundamentais deve ser realizado a partir do reconhecimento da dignidade humana, ou seja, o homem como "valor-fonte".

Mas em que consiste a dignidade humana?

Para respondermos a esse questionamento, faremos uso da lição de Comparato, para quem a resposta tem sido dada sucessivamente pela religião, filosofia e ciência.23

A justificação religiosa da preponderância da pessoa humana no mundo é imputada ao surgimento da fé monoteísta, considerada a grande contribuição do povo da Bíblia à humanidade, talvez uma das mais importantes. No politeísmo, de certo modo, os deuses faziam parte do mundo, como super-homens, com paixões e defeitos típicos dos seres humanos. A fé em um Deus único e transcendente traz para o ser humano a posição eminente na criação do mundo.

A explicação filosófica advém da afirmação da natureza essencialmente racional do ser humano, inicialmente entre os poetas e filósofos gregos e mais tarde na era moderna com René Descartes. Para a filosofia, a primazia humana, provém do fato do homem ser o único animal capaz de tomar a si mesmo como objeto de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT