Como os juízes decidem? Proximidades e divergências entre as teorias da decisão de Jürgen Habermas e Niklas Luhmann

Autor1.Rafael Lazzarotto Simioni - 2.Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia
Cargo1.Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Direito - 2.Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Direito - Professor da graduação em Direito na FDSM e na Faculdade Batista de Minas Gerais.
Páginas62-88

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Introdução

Saber "como" os juízes decidem é uma questão fundamental em um Estado Democrático de Direito que propugna pela proteção dos Direitos Fundamentais. Sabemos que, diferentemente do Estado Liberal e do Estado de Bem-Estar, no Estado Democrático de Direito (Democratic Rule ofLaw)3 há uma grande preocupação não apenas com a declaração de direitos, mas também com garantir formas de protegê-los.

Entre as "garantias constitucionais", os meios judiciais assumem singular importância. Daí por que sabermos a "forma" em que a decisão se dá (ou como deveria) é fundamental na promoção dos Direitos Fundamentais. A Constituição enumera uma série de garantias processuais às partes em litígio (devido processo legal, contraditório e ampla defesa, soberania do júri, presunção de inocência, etc.). Traça, por vezes de forma detalhada, da estrutura do Judiciário, de cada um dos Tribunais e de suas competências; dispõe também sobre a autonomia financeira e administrativa do Judiciário e das garantias dos magistrados. Fortalece a posição de autonomia do Ministério Público, desvinculado institucionalmente do Judiciário.

Some-se a isso a história de países, como o Brasil, nos quais o histórico de violações a direitos, que, na maior parte dos casos, não encontrou a devida ressonância no Judiciário.

Por último, mas não menos importante, o fato de a Constituição de 1988 proclamar, como requisito de validade de qualquer decisãoPage 63judicial, a necessidade de fundamentação (art. 93, IX). Ora, como já teve oportunidade de decidir o STF, "fundamentar" uma decisão é uma tarefa que não se restringe à mera menção à lei (ou súmula) ou mera subsunção da lei ao caso.4

Entretanto, se por um lado, deve-se superar concepções positivistas, que reduzem a aplicação do direito à mera subsunção, não se deve, por outro lado, transpor o "código" próprio do Direito e transformar a resolução de casos jurídicos em sopesagem de valores, como se direitos fossem "bens" que pudessem ser "maximizados" ou "minimizados", tal qual propõe Alexy e vem se utilizando o STF, através do princípio da proporcionalidade (cf. infra).

Para responder às exigências do Estado Democrático de Direito, propomos no presente mostrar as respostas que, a partir de Habermas e de Luhmann podem ser dadas. A partir de Habermas, compreendemos que o Direito hoje deve ser concebido como um sistema aberto de princípios, sendo insustentáveis quaisquer propostas positivistas ou literalistas de aplicação do Direito. Com Habermas e Luhmann, chamaremos a atenção para o caráter deontológico do Direito, que, como subsistema social, move-se por um código próprio (direito/não direito) - e não por códigos graduais de valor, como propõe a teoria alexyana. A partir de Luhmann, vemos que direito e políticas são subsistemas sociais autopoiéticos, cada um se reproduzindo a partir de seus códigos próprios e que a Constituição se revela como acoplamento estrutural (Luhmann) - ou, em Habermas,Page 64como "dobradiça" - que permite que haja comunicação entre aqueles sistemas, de tal forma que ambos possam prestar serviços mútuos um ao outro, sem, contudo, perderem seus códigos próprios.

Dessa forma, exporemos sucintamente as perspectivas de cada um dos autores sobre o papel do Judiciário e a forma como ele age. Ao final, tentaremos estabelecer pontos de divergência, mas principalmente pontos de contato entre essas que são atualmente duas das mais influentes correntes do pensamento atual.

1 A perspectiva de Habermas

Tomando-se os postulados de Habermas, entendemos que qualquer decisão judicial deve ser o produto de uma reconstrução do caso concreto, tomado como evento único e irrepetível e do Ordenamento Jurídico como "mar revolto de normas", em sua "integridade"; é dizer, deve o magistrado mostrar como foi formado seu convencimento, tendo em mira a conformidade ou não das pretensões a direito levantadas pelas partes diante das especificidades do caso subjudice - de tal forma que a decisão seja o produto daquilo que foi produzido em contraditório pelas partes, com a cooperação do magistrado.

Para chegarmos a essa conclusão, teremos de mostrar alguns dos fundamentos da teoria habermasiana acerca da filosofia da linguagem, da teoria do discurso, da tensão entre facticidade e validade e, por último, sua compreensão hermenêutica de aplicação do Direito.

Sobre o conceito de racionalidade, Habermas faz uma diferença entre a "razão prática", própria da filosofia da consciência e a "razão comunicativa", própria da filosofia da linguagem. Para ele, após Auschwitz, não há mais como se continuar acreditando no poder emancipador da razão (prática), tal como defendido pelo cartesianismo e o kantismo.5 Por outro lado, Habermas não entende que a crítica pura ePage 65desconstrutiva (como Nietzsche e Derrida) à razão seja possível, "já que toda crítica da razão também é produto da razão" (HABERMAS, 1998, p. 59). Por razões semelhantes, não acredita em uma pós-modernidade, já que também acredita que há promessas ainda não cumpridas pela mesma. Sua alternativa é a ideia de "razão comunicativa", em uma perspectiva procedimental, haja vista que, se de um lado há a crítica aos excessos da razão solipsista, por outro não há nada "mais alto" para além de nós mesmos, mas agora não considerados isoladamente, mas entendendo que compartilhamos formas de vida que são estruturadas (intersubjetiva e) linguisticamente (HABERMAS, 1998, p. 59).

O que é problemático, para alguns no Direito, isto é, enxergar que a crença cega no absolutismo da razão não faz mais sentido após os excessos vivenciados nos dois últimos séculos, em que, ao invés de gerar "libertação e igualização" gerou exploração e genocídio instrumentalizados. Assim, quando se aprovam mecanismos como "Súmulas Vinculantes" e "efeitos vinculantes" em controle concentrado de constitucionalidade de leis o que se tem ainda é a crença cartesiana de que a realidade é um dado objetivo, estático, que possa ser "presa" através de fórmulas - de forma semelhante como se pensou ser possível com o Código Civil francês. Complementar a isso estão outras reformas no processo, que nada mais fazem do que diminuir a esfera de discussão, na ideia de que a diminuição gerará celeridade, quando, na verdade, o efeito é justamente contrário, ou seja, é justamente a possibilidade do amplo debate e esclarecimento no primeiro grau que pode, potencialmente, reduzir a possibilidade de recursos desnecessários (NUNES; BAHIA, 2009).

A razão comunicativa supõe que o entendimento sobre algo no mundo se dá intersubjetivamente a partir de um conjunto de condições contrafácticas possibilitantes; supõe, por isso, compreender o outro como igual portador dos mesmos direitos.6

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Entretanto, a possibilidade do entendimento fica "prejudicada" por uma sociedade descentrada e pós-metafísica, em que não há mais homogeneidade sobre conceitos de moral, ética, etc. (HABERMAS, 2001, p. 94). Há que se atentar, no entanto, que, mesmo não compartilhando as mesmas expectativas, existem "consensos de fundo", isto é, temas não questionados que possibilitam o mínimo de entendimento (a esse pano de fundo de silêncio, Habermas reutiliza a ideia de mundo da vida) (HABERMAS, 1998, p. 83).

A todo o momento, no entanto, quaisquer temas podem sair do "silêncio" e adentrar a arena pública de discussão, o que, mais uma vez, faz ressurgir a possibilidade do dissenso (HABERMAS, 1998, p. 87; OLIVEIRA, 1989, p. 32), que deve ser compensado por arenas públicas de integração social.7 O meio institucional que, contingencialmente, surgiu na modernidade para fazer frente a isso foi a constituição do Direito como medium de integração social, possibilitando a estabilização de expectativas de comportamento.8

O Direito não apenas possibilita que tenha curso a ação comunicativa, mas também possui o poder de conter ações estratégicas (isto é, orientadas apenas ao próprio êxito).9 Ele aparece, então, como coerção (facticidade), mas também como conjunto de normas legítimas (validade), de forma que os destinatários das normas podem obedecê-las por lhes reconhecer sua validade, ou então simplesmente por temer a coação. A validade do Direito advém do reconhecimento, por parte dos destinatários das normas, como também, sendo normas feitas por eles (através de seus representantes) - o processo legislativo é o meio institucional através do qual se gera "solidariedade social", de forma que a possibilidade de obtenção de consenso pode se dar não porque todos concordem sobre (istoPage 67é, compartilhem) certos valores, mas porque concordam sobre a forma (o procedimento) de discordar (FARIA, 1978, p. 65).

Esse Direito, na modernidade, origina-se a partir da tensão entre Soberania Popular (autonomia pública) e Direitos Humanos (autonomia privada). Os cidadãos de um Estado, através do processo legislativo (autonomia pública) se dão direitos, mas eles apenas podem fazer isso porque, ao mesmo tempo, reconhecem-se como livres e iguais portadores dos mesmos direitos (autonomia privada). O conjunto desses direitos de participação política e dos direitos individuais forma o que Habermas chama de "Sistema de Direitos", ou seja, aqueles direitos que os indivíduos reconhecem reciprocamente quando decidem regular sua convivência através do Direito (HABERMAS, 1998, p. 164ss.).

Noutro texto, Habermas mostrará que essa abertura, se, por um lado, significa aumento da contingência (isto é, menos continuidade), significa também cada vez mais opções - ingrediente indispensável em qualquer processo de aprendizagem democrático.

[O] desligamento de um mundo da vida fortemente integrador libera os indivíduos para a ambivalência das possibilidades de opção cada vez maiores. Ele abriu os olhos deles e ao mesmo tempo...

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