O pseudo-inciso XII, art. 5º, da CF: uma abordagem político-gramatical.

AutorRicardo Gueiros Bernardes Dias
CargoProfessor da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES
Páginas29-44

Page 29

Parafraseando Otto Von Bismark, leis são como as salsichas, não queiram vocês saber como são feitas. 1 Não é incomum depararmo-nos com publicações de textos legais, que não correspondem fielmente ao aprovado pelo Congresso Nacional. Para não nos limitarmos à nostalgia, basta lembrar o recente episódio envolvendo a “Reforma Judiciária”, EC nº 45/04, publicada em 31 de dezembro de 2004. Inúmeras vozes ecoaram, sobressaltadas, em razão da redação do inciso I, art. 114 da Constituição. O problema é que o texto, no particular, foi emendado pelo Senado Federal, mas um parecer da Presidência do Senado tomou posição que gerou grandes controvérsias. A questão foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, tendo o relator da matéria, Ministro Nelson Jobim, deferido em parte a medida cautelar pleiteada. 2

Page 30

O que não se espera é o fato de esse metafórico fenômeno (as salsichas) contaminar a própria Constituição originária, mormente em situação ainda mais insólita, como veremos adiante. Não dizemos isso, pretendendo exaltar um imaculado processo constituinte originário. É que o trabalho constituinte de 1988 foi pautado por singulares características: uma assembléia que não partiu de um anteprojeto pré-fabricado; 3 uma Assembléia que surgiu como uma forte reação a um sistema veementemente repudiado; a participação da sociedade foi, talvez, ímpar.

Estamos nos referindo ao inciso XII, art. 5º da Constituição Federal, promulgado em 05.10.1988, in verbis:

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

Uma primeira leitura nos induz a uma conclusão (quase) imediata, mesmo que insólita. Vê-se duas formas de inviolabilidade: uma absoluta; outra relativa. Seriam absolutamente invioláveis o sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas e de dados. Seria relativamente inviolável a comunicação telefônica. Ilação retirada de uma simples razão: se se quis ressalvar expressamente uma hipótese, é porque não houve intenção do legislador-constituinte, de excepcionar as demais. Repito: isso é uma primeira leitura.

Tomando por premissa essa leitura, já teríamos, de pronto, um percalço lógicojurídico. Não seria (e não é) plausível concluir que exista uma violação absoluta sobre determinados bens jurídicos (intimidade quanto à correspondência etc.) e uma relativa para outro (intimidade quanto à conversação telefônica). Inexiste diferenciação ontológica entre esses bens jurídicos tutelados constitucionalmente. O que há, sim, é uma diferença axiológica (valorativa) a cada caso in concreto; a relevância, portanto, é sopesada in casu.

Page 31

E se assim é, faz-se necessário que a abstração própria da lei possa, ao menos, dar azo à possibilidade de uma regulamentação visando a que o juiz-intérprete pondere os interesses caso a caso. A Constituição alemã muito bem explicita esse entendimento, quando prevê que a inviolabilidade (seja qual for) poderá ser mitigada por lei infraconstitucional. 4 Outras Constituições estrangeiras navegam no mesmo sentido: partem de uma premissa realista acerca da relatividade de todo e qualquer direito. 5 6 7 8 9

Por outro lado, afora os argumentos introdutórios aduzidos, passemos ao cerne do presente ensaio, qual seja, uma análise político-gramatical do dispositivo em exame.

Bem, é inegável que o homem utiliza a língua para se manifestar, para traduzir o seu querer, para levar avante os seus sonhos. Mas também é importante ter em mente que este ser que se comunica não o faz para si, ele pressupõe a existência de um outro a quem se dirige e com quem dialoga. Assim, pensar na utilização de uma dada língua é vislumbrar efetivamente o processo de comunicação que a linguagem proporciona.

Vale lembrar ainda que tal processo implica necessariamente uma relação dialógica, na qual estão previstos, ao menos, dois elementos – aquele que comunica e aquele que recebe a comunicação. Ora há, então, entre esses dois pólos um fioPage 32comunicador que permite que a pessoa que emite uma enunciação tenha uma certa receptividade ou não de outrem. Pensar assim é muito simples.

Existem, entretanto, alguns óbices que se tornam verdadeiros entraves no processo comunicativo, pois aquilo que é emitido – o texto com as intenções do autor – nem sempre é depreendido da forma adequada. Aliás, cabe esclarecer que o processo comunicativo se constitui em um processo de reconstrução de sentidos, pois uma pessoa emite uma mensagem que é decodificada por outra, esta, por sua vez, a decodifica – reconstrói os sentidos ali expressos – e emite outra mensagem em resposta àquela mensagem recebida que será decodificada pela primeira pessoa que enviou a mensagem. Na realidade, passa-se a existir um caminho de vai-e-vem em que um emite e o outro decodifica segundo seu contexto, mas, ao depreender os possíveis sentidos de tal mensagem, formula um novo texto que será decodificado por aquele que primeiramente enunciou – assim vai se desenrolando o processo que produz a comunicação.

Porém, pensar em processo comunicativo envolve não apenas aquele que emite a mensagem e quem recebe, há outros elementos tão necessários quanto esses dois. Podemos perceber isso ao vislumbrar o quadro de elementos previstos no ato de comunicação de Jakobson, como temos a seguir:

[CONSULTE A TABELA DO PDF ANEXADO]

Page 33

[CONSULTE A TABELA DO PDF ANEXADO]

Para compreender o quadro acima, Andrade e Gabriel 10 relatam que:

Para que exista comunicação, há seis elementos básicos: um emissor envia uma mensagem a um receptor. Para ser operante, a mensagem está inserida em um contexto (referente) ao qual ela remete. Tal contexto deve ser apreensível pelo receptor, devido à utilização de um código comum ao emissor e ao receptor e, finalmente, a mensagem requer um canal físico (ondas sonoras para conduzirem o som, registro gráfico, registros visuais, etc.) [...]. Da interação desses fatores resulta o sistema de comunicação.

Como visto, há vários fatores implicados no processo de comunicação. Ademais, é imprescindível destacar um elemento muito importante e, às vezes, não tão explorado – a própria mensagem. Esta, independente de ser escrita ou falada, precisa ter uma característica fundamental para realizar bem seu propósito de comunicar – CLAREZA. No entanto, este fator nem sempre está presente, pois é muito comum ouvirmos que determinado texto não é coerente, isto é, está-lhe faltando um dos requisitos básicos para a compreensão.

Ter um texto claro e coerente significa ter um texto com transparência de sentidos, se é que podemos falar nisso. Tal texto prescinde de qualquer tipo de problemas que venham a se tornar óbices no processo comunicativo, inclusive no que tange aos problemas de ordem gramatical. É claro que o fato de se ter um texto sem erros gramaticais não lhe confere, necessariamente, coerência, mas o texto que possui erros de ordem gramatical também pode ter comprometido o seu conteúdo significativo.

Portanto, ao se desejar um texto claro, é necessário pensar nos elementos comunicativos, mas também pensar que a mensagem veiculada precisaPage 34proporcionar clareza quanto aos seus propósitos e isso implica ausência de problemas de ordem gramatical.

À conta disso, procuraremos identificar alguns problemas gramaticais que o inciso XII do artigo 5º da CRFB/88 apresenta.

Antes, porém, é prudente relatar que a Constituição Federal de 1988 foi corrigida (e aqui nos referimos às mais diversas formas de correção como a gramatical, a ortográfica, a semântica etc) pelo saudoso mestre Celso Cunha que, a nosso ver, não cometeria equívocos como os que se insurgem de tal dispositivo constitucional. Ocorre que o texto constitucional corrigido pelo professor Celso Cunha e que foi votado e aprovado pela Assembléia Nacional Constituinte não é o que consta hoje em nossas Constituições. Sabe-se que a redação original foi reescrita e publicada sem que houvesse nova correção, votação e aprovação, o que acarretou sérios problemas que ainda persistem.

Trazemos à colação informações de uma matéria publicada pelo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT