Cidade e questão social no capitalismo: em cena, Fortaleza, a Miami do nordeste

AutorAurineida Maria Cunha
CargoUniversidade Estadual do Ceará (UECE)
Páginas65-73

Page 66

1 Introdução

O artigo1 está estruturado a partir de uma reflexão sobre a gênese do processo de mercantilização das cidades, abordando as principais transformações urbanas, suas contradições, conflitos e a questão social, pontuando aspectos da urbanização no Brasil e, especificamente, de Fortaleza na contemporaneidade. Também destacamos a importância dos marcos legais do direito à cidade no país analisando a negação do direito à cidade, mostrando que na sociedade brasileira a igualdade jurídica dos cidadãos convive, contraditoriamente, com a realização da desigualdade.

Como metodologia realizamos pesquisa bibliográfica com um levantamento da produção científica para a construção do sistema conceitual sobre cidade e questão social. As obras de Marx e Engles (1987), Marx (1996), Lefebvre (1991; 1999), Harvey (2004), Mészáros (2002), Silva (2005), Kowarick e Bonduki (1988) apresentam convergência analítica fundante para a compreensão dos determinantes do processo de produção e reprodução da sociedade capitalista em que a vida urbana se revela por meio de múltiplas contradições, conflitos e lutas permanentes. Nesse sentido, a articulação entre cidade e questão social, na perspectiva desenvolvida por Netto (2001) e Iamamoto (2001, 2006), torna-se fundamental para elucidar os determinantes e as contradições do capitalismo na contemporaneidade. Apresentamos elementos para a discussão do direito à cidade, sistematizados por Saule Júnior (1999), e a polêmica, proposta por Dias (1997) e Mészáros (1993, 2002), que aponta críticas à (im) possibilidade de realização na sociedade capitalista do direito para todos.

Portanto, é na cidade, onde ocorre a materialização espacial das desigualdades sociais, que a vida urbana se revela por meio de múltiplas contradições e transformações inerentes a uma sociedade de classes que se manifesta, mais claramente, nas diferenciações entre os modos de morar, de trabalhar, de locomoção, de acesso à infra-estrutura, ao lazer.

2 Cidade e questão social no capitalismo

O processo de expansão da vida urbana e do caráter mercantil ocorreu quando se verificou uma divisão de trabalho entre as cidades, a qual possibilitou, na Antiguidade, a união de várias cidades em impérios, criando as condições para o aparecimento de uma economia propriamente urbana. Marx (1987) analisa que a forma de espaço está ligada a seu modo de produção, pois a história antiga é a das cidades fundadas na propriedade da terra e na agricultura. A presença da cidade “é em si mesma, algo diferente da simples multiplicidade de casas separadas. Nesse caso, o todo não consiste apenas na reunião de suas partes isoladas, é uma forma de organismo independente”. (MARX, 1987, p.75)

Outro fator importante diz respeito à organização da cidade que vai ser marcada pela divisão da sociedade em classes: de um lado, os proprietários dos meios de produção (burgueses) e do outro, os vendedores de sua força de trabalho (antigos criados e população deslocada pelo progresso na agricultura e pela transformação das plantações em pastagens). Nos séculos XVIII e XIX, em períodos de grande desenvolvimento industrial e urbano, a constituição de uma massa de trabalhadores, aqueles excamponeses expulsos de suas terras, ex-artesãos arruinados, ex-pequenos proprietários independentes, completamente despojados dos seus meios de produção e, por conseguinte, aptos a venderem sua força de trabalho. Segundo Marx (1996, p. 850), “conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram as terras ao capital e proporcionaram a indústria das cidades necessária de proletários sem direitos”.

A cidade se transforma não apenas em razão de ‘processos globais’ relativamente contínuos (tais como o crescimento da produção material no decorrer das épocas, com suas conseqüências nas trocas ou o desenvolvimento da racionalidade) como também em função de modificações profundas no modo de produção, nas relações de classe e de propriedade.

A cidade é, portanto, enquanto ligada às forças produtivas, a sede desse vasto processo contraditório. Ela absorve o campo e contribui para a destruição da natureza; destrói, ela também, suas próprias condições de existência e deve restabelecê-las de uma maneira sistemática. (LEFEBVRE, 1999, p.147)

Destarte, no início do capitalismo, nas cidades, era comum a presença de marginais e mendigos que não se enquadravam na disciplina no interior das fábricas, ocorrendo uma repressão generalizada ao crescimento das atividades ligadas à vagabundagem e à mendicância, uma vez que esses grupos pertencem ao exército industrial de reserva, à categoria do lumpem-proletariado. A miséria foi aceita como destino normal da vida por uma parte considerável da população e servia como incentivo para que o trabalhador desenvolvesse suas atividades por salários insignificantes, constituindo-se em fundante para o luxo e bem-estar da burguesia.

Engels (1988) analisou uma realidade típica em Manchester, na Inglaterra – segregação, decomposição, contradição, ordem revelando a ordem e a desordem do espaço urbano que expõe a lógica da sociedade capitalista com a existência do exército de reserva da classe operária que vive na miséria ao mesmo tempo contingente (para os indivíduos) e eterna (para a classe).

Tudo isso, porém, pressupõe que o trabalhador tenha um emprego; quando não o tem fica totalmente por conta doPage 67 acaso e come o que lhe dão, o que mendiga ou o que rouba; e, quando não obtém nada, simplesmente morre de fome. (ENGELS, 1988, p.317)

A Europa Ocidental experimentava os impactos da industrialização, os conflitos entre capital e trabalho e o fenômeno do pauperismo formado pela parcela da classe trabalhadora que não tinha condições de assegurar sua existência por meio da venda da força de trabalho e sobrevivia da caridade pública. Segundo Marx (1996, p.747), “quanto maior essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista”.

O pauperismo relaciona-se com a sociabilidade capitalista e com os seus desdobramentos sociopolíticos. “A luta entre o capitalista e o trabalhador remonta à própria origem do capitalismo”. (MARX, 1996, p.485) Na metade do século XIX, com o processo de exploração, a classe operária e os pobres não se acomodaram com sua situação de pauperização, resistiram e ocorreram conflitos, tensões, protestos que tomaram as mais diversas formas, configurando para a classe dominante uma ameaça real à paz, à ordem econômica e social e à sociedade burguesa. A questão social diz respeito ao conjunto das desigualdades sociais geradas na sociedade capitalista e tem sua gênese na contradição entre a produção coletiva e a apropriação privada da atividade humana – o trabalho, as condições necessárias à sua realização e seus frutos. (IAMAMOTO, 2001)

Segundo Netto (2001), nas sociedades anteriores à ordem burguesa eram comuns desigualdades, privações, pobreza, etc., resultado da escassez que o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas não podia suprimir. A expressão questão social, na segunda metade do século XIX, passa a ser incorporada pelo pensamento conservador. É naturalizada e objeto de ações moralizadoras. O enfrentamento das suas manifestações deve ser realizado por meio de programas, reformas e intervenções que conservem, principalmente, a propriedade privada dos meios de produção, ou seja, o status quo que é o fundamento da sociedade capitalista. Para o pensamento conservador, o pauperismo, que caracteriza a questão social, era uma disfunção a qual podia ser enfrentada no marco da sociedade alicerçada na propriedade privada por meio, por exemplo, da educação e do trabalho.

A questão social nada tem a ver com o desdobramento de problemas sociais herdados pela ordem burguesa, pela primeira vez a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riqueza. (NETTO, 2001) Nos diferentes estágios do capitalismo são produzidas variadas expressões da questão social.

3 A questão social no Brasil e em Fortaleza

O surgimento da questão social, no Brasil, é pensado a partir da industrialização, quando se evidenciam embates entre as classes antagônicas – capitalista – proletariado e novas formas de enfretamento da questão social se fazem necessárias para contraporem-se à repressão e à caridade históricas.

A partir da década de 1930, houve aceleração das mudanças sociais e políticas no país. Primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos políticos e de redução dos direitos civis. (CARVALHO, 2004) É no governo de Getúlio Vargas que a questão social é reconhecida como questão política e portadora de legitimidade.

O Estado passa a intervir na relação capital x trabalho objetivando a desmobilização/despolitização da classe operária. O órgão principal na atuação diante da questão social era o Ministério do Trabalho que buscava conciliar autoritarismo e paternalismo por meio de um discurso oficial baseado na integração social, na complementaridade e colaboração entre as classes. Nesse período intensificam-se as organizações políticas como sindicatos, associações de classe, partidos políticos e movimentos de massa de âmbito nacional que vinham se manifestando por meio...

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