Reflexões Preliminares sobre os Delitos de Terrorismo: Eficácia e Contaminação

AutorManuel Cancio Meliá
CargoProfessor titular de Direito penal da Universidade Autônoma de Madrid
Páginas190-200

    Traduzido do original em espanhol (Algunas reflexiones preliminares sobre los delitos de terrorismo: eficacia y contaminación) sob permissão expressa do autor.

    Traduzido por: Bruno Costa Teixeira1 e Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira2

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I Introdução
  1. A opinião pública encara a questão da reação do Direito penal ante o terrorismo com uma dupla preocupação. Por um lado, certos setores da opinião pública dos países ocidentais adotam uma posição muito crítica em relação a determinadas medidas dos órgãos de persecução penal3 tidas como abusivas. Por outro lado, há a preocupação – aparentemente muito maior que a anterior – em relação à existência de um “excesso de garantias”, as quais induzem uma passividade dos órgãos de persecução penal e da jurisdição penal4. Neste sentido, serve como exemplo significativo a seguinte reflexão de Reinares, segundo o qual: as diferenças entre a perspectiva policial e a jurídica “[...]Page 191 gera[m] não poucas tensões que afetam o conjunto de uma política governamental antiterrorista suscetível de oscilações, conforme a conjuntura, entre o defeito e o excesso. Há, por uma parte, certa tendência a tornar trivial o terrorismo, reduzindo-o a uma existência meramente criminal, negando ou minimizando sua vinculação a situações de conflitos políticos e rechaçando qualquer tratamento específico do fenômeno que se distancie das previsões legais comuns. Por outra parte, há atitudes inclinadas a exagerar as dimensões das ações terroristas e a justificar um uso desproporcional da força estatal no controle da violência”5. É esta mesma tensão inserida no tratamento jurídico-penal nas condutas terroristas que se encontra no preâmbulo da Decisão-Padrão do Conselho da União Européia sobre a luta contra o terrorismo6: enquanto que em seu segundo considerando é afirmado – reconhecendo a chamada Declaração de Gomera – que “o terrorismo constitui uma ameaça à democracia, ao livre exercício dos direitos humanos e ao desenvolvimento econômico e social”7, o considerando número dez sublinha, de modo surpreendente e rotundo – provocando a imediata recordação do aforismo excusatio non petita ... –, que “a presente Decisão-padrão respeita os direitos fundamentais tais como estão garantidos pelo Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, como princípios de direito comunitário. [...] Nada do que estiver disposto na presente Decisão-padrão poderá ser interpretado como uma intenção de reduzir ou obstaculizar direitos ou liberdades fundamentais [...]”8.

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II Eficácia preventiva

Se o debate em torno do conceito (geral) do “Direito penal” do inimigo9 para as infrações terroristas tem mostrado algo, é que o melhor argumento a favor das regras completamente distintas para os inimigos (terroristas) está – paralelamente ao que acontece em outros setores de regulação envolvidos nesta evolução político-criminal, aqui com uma bem maior intensidade – na questão da periculosidade dos atos terroristas e na consequente necessidade de sua prevenção instrumental10, porque fonte de perigo especialmente significativa11.

Nas palavras do atual Ministro federal alemão do interior: “na luta contra o terrorismo temos que nos utilizar efetivamente de todos os instrumentos que estão à disposição do terrorismo. O Direito penal é parte de uma incumbência de segurança do Estado de prevenção. Temos que combater o terrorismo, também com o Direito penal, desde o seu início, e não apenas quando já tiverem ocorrido atentados”12.

Aqui, na esfera do terrorismo, resta, portanto, resumida toda a problemática de um modo que se pode denominar de terminal em comparação com o empregoPage 193 desta argumentação em outros âmbitos, pelas dimensões apocalípticas que assume quase sempre no discurso público a referência à periculosidade dos terroristas: perante as maneiras completamente ilimitadas que se tem apresentado o mais recente terrorismo de inspiração político-religiosa de orientação islâmica, condensados nos atentados de 11 de setembro de 2001, de 11 de março de 2004 e de 7 de julho de 200513, a questão que se põe é, nada mais nada menos, a de que se a nossa sociedade está disposta a sucumbir diante dos riscos advindos do terrorismo, ou se estará preparada para assumir restrições em suas liberdades14.

Sem embargo, no plano empírico da eficácia preventiva ante esses riscos terminais, a experiência em outros países de dimensões como as nossas com organizações terroristas surgidas nos anos sessenta e setenta do século XX mostra, segundo algumas vozes na discussão, que a aplicação de sanções específicas para terroristas – em geral com processos de reforma postos em marcha em momentos de especial crise pelo cometimento de atos significativos – não tem ajudado a evitar delitos, e sim contribuído, por exemplo, para atrair novos militantes para as organizações em questão, retardando em certa medida o processo de dissolução endógeno15. Falta, portanto, um verdadeiro argumento de peso a essa discussão?

Deve-se, assim, partir da premissa de que é muito difícil avaliar qual a verdadeira finalidade da existência de determinadas regras jurídico-penais (conquanto pareça razoável pensar que se poderá quantificar a influência da organização dosPage 194 serviços de polícia preventiva16): esta questão, tal qual em outros âmbitos de regulação, subtrai-se de afirmações empíricas de certa consistência17.

Por outro lado, não se deve deixar de sublinhar que as questões sobre a prevenção negativa e sobre a eficiência da persecução penal se apresentam de um modo completamente diverso do que é comum (de se dizer: muito pior18) quando se trata de terroristas suicidas19 de orientação religiosa20, organizados em pequenos grupos de ação autônomos, apesar de possuir conexões transnacionais21. Neste sentido, em razão de suas formas de organização na atualidade, se tem dito, com efeito, que sua estrutura obedece mais ao modelo de franquia orientada em um sistema de nós sem a hierarquia vertical “clássica”22Page 195 como a dos grupos aos quais se fez referência anteriormente, adaptada da estrutura dos exércitos dos Estados ou dos partidos políticos de orientação leninista de vanguarda23. Parece claro que, no caso desses grupos, resultaria impossível desarticular – usando tão-só meios de persecução criminal a longo prazo – uma organização multicêntrica e sem uma verdadeira estrutura funcional em seu conjunto.

Em todo caso, o reconhecimento das dificuldades no plano da eficácia preventiva que suscita de modo específico o âmbito dos delitos de terrorismo não implica que se tenha de propor a retirada do ordenamento penal do específico tratamento destas infrações24. Significa apenas que a fundamentação acerca da especificidade das infrações terroristas não pode descansar exclusivamente no espiral interminável da “necessidade” preventivo-fática. E para isso, parece se ter em conta que a função do delito terrorista é estratégia de comunicação, como provocação do poder25.

III Ação e reação

Com efeito, no balanço da “eficácia” deve-se considerar que a mera existência do Direito penal do inimigo nesse âmbito pode representar – e isto deveria ser óbvio – em algumas hipóteses um êxito parcial, precisamente, para o “inimigo”, cujas atitudes, como é sabido, têm um papel decisivo nas ações repressivas que pretendem provocar, basta atingir a finalidade de sua estratégia, a rebelião popular26.

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Nesse sentido, um Direito penal exacerbado – tal qual uma gestão inadequada devido ao excesso de atividades preventivas das forças policiais – pode se converter em um fator que aumente as infrações terroristas ao se integrar no esboço da ação das organizações: “[...] como não se pode ignorar, uma prática comum na estratégia das organizações terroristas consiste em induzir o Estado de Direito a entrar em conflito consigo mesmo, a fim de que recorra a medidas excepcionais”27. A mesma idéia, superando grandes óbices derivados de divergências na tradição jurídica, pode ser expressada nas (já famosas, apesar de recentes) palavras de Lorf Hoffmann, membro da Câmara dos Lordes britânica, incorporadas no parecer da Lei antiterrorista britânica de 2001, segundo o qual esta, na forma como foi aprovada pelo Parlamento, seria incompatível com a Constituição britânica: “tal faculdade [de detenção sem prazo e sem existência de indícios juridicamente verificados], de qualquer...

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