A reserva do possível e a dignidade da pessoa humana como fonte de não retrocesso social

AutorAlvaro dos Santos Maciel; Natasha Brasileiro de Souza
CargoAdvogado/Advogada
Páginas1-23

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Introdução

O objetivo deste artigo12 é propor uma reflexão acerca do princípio da Reserva do Possível e suas implicações na seara prática, bem como promover a conexãoPage 2 deste entendimento com a realidade jurídica e social sob o enfoque da dignidade da pessoa humana.

Deste modo, este artigo propõe três reflexões centrais: 1) apresentar a reserva do possível como importante barreira à possibilidade de controle de políticas públicas pelo Judiciário; 2) como compreender a dignidade da pessoa humana como fonte garantidora do progresso social; 3) demonstrar a relevância do princípio do não retrocesso social.

Em um primeiro momento, com viés histórico, serão tangenciadas algumas teorias sobre o Estado Social e os Direitos Fundamentais Sociais. Continuadamente, com visão crítica, serão explicitados os posicionamentos doutrinários no que se refere ao princípio da reserva do possível. Em seguida, será promovido o desenvolvimento das diversas teorias acerca da dignidade humana e do princípio do não retrocesso social com fulcro nos ensinamentos de filósofos e doutrinadores jurídicos.

2. O surgimento do Estado-Social e dos Direitos Fundamentais Sociais

Um marco significativo no que pertine ao surgimento do Estado Social, entre grande parte dos doutrinadores, verifica-se que se deflagrou com a Primeira Guerra Mundial, uma vez que o quadro sócio-político da época foi dividido em duas vertentes: a primeira, pré-existente, que qualificava o Estado como único protagonista da atividade econômica, sobrepondo-se à figura dos indivíduos e da coletividade; e a segunda, que autorizava ao Estado intervir na ordem social ao controlar de modo efetivo a vida em sociedade.

Paulo Roberto Lyrio Pimenta3, leciona que essas mudanças proporcionaram significativas substituições, tais quais, a do Estado Liberal pelo Estado Social, ou seja, passou-se de um Estado inerte para a prática de um Estado intervencionista.

A doutrina especializada ensina que este novo modelo estatal (Welfare State) fundado na síntese dualista do bem-estar social e do desenvolvimento econômico,Page 3 assumiu dois modelos: O Estado Liberal social radical, que se desviou do seu objetivo, suprimindo as liberdades individuais e políticas (tal como ocorreu na união Soviética) e o chamado Estado Social de Direito, que, enfatizou os objetivos civis e políticos, e inseriu os direitos sociais na categoria dos direitos fundamentais.

Verifica-se que o Estado Social surgiu no século XX como resposta aos anseios sociais que visava ao reconhecimento da importância do proletariado enquanto classe integrada da sociedade, ao contrário da proposta anterior, calcada em um paradigma liberal-burguês.

Ingo Wolfgang Sarlet ao definir o Estado Social e suas diversas nomenclaturas, manifesta-se:

(...) a respeito da terminologia "Estado Social de Direito", que aqui utilizaremos ao invés de outras expressões, tais como "Estado-Providência", "Estado de Bem-Estar Social", "Estado Social", "Estado Social e Democrático de Direito", "Estado de Bem-Estar" ("Welfare State"). Todas, porém, apresentam, como pontos em comum, as noções de certo grau de intervenção estatal na atividade econômica, tendo por objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade material e liberdade real na vida em sociedade, bem como a garantia de condições materiais mínimas para uma existência digna. Neste contexto, para justificarmos a nossa opção dentre as variantes apontadas, entendemos que o assim denominado "Estado Social de Direito" constitui um Estado Social que se realiza mediante os procedimentos, a forma e os limites inerentes ao Estado de Direito, na medida em que, por outro lado, se trata de um Estado de Direito voltado à consecução da justiça social.4

A história demonstra de maneira incontestável que não era satisfatório tão somente um Estado que se abstivesse de interferir nos negócios privados, mas sim, era imprescindível um Estado que garantisse à população prestações positivas, e tutelar os indivíduos mais fracos economicamente, que não se mostravam capazes de concorrer e competir com os mais fortes. O constitucionalismo clássico, erigido com o escopo de garantir as liberdades individuais e políticas bem como os direitos civis, deu lugar ao constitucionalismo social, que representava, à época, um compromisso entre os grupos sociais em choque (progressistas e conservadores)5.

Destarte, analisa-se ainda, com base em dados históricos, que o Estado Social deu-se como um modelo surgido em meio à contradição histórica, e apoiou-sePage 4 em experiências políticas e institucionais dissonantes, o que conseqüentemente produziu três documentos, diversos entre si, mas que se completavam e se harmonizavam: a Revolução Russa de 1917, a reconstrução da Alemanha após a primeira guerra e a Revolução Mexicana (como a fundação do PRI – Partido Revolucionário Institucional), resultando na Constituição de Weimar de 1919, na Constituição Mexicana de 1917 e na Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na Rússia socialista de 1918.

Tais diplomas inovaram o mundo jurídico ao definir constitucionalmente os direitos sociais (principalmente o direito a saúde, trabalho, educação e cultura) como direitos fundamentais da pessoa humana, sob a necessária proteção do Estado.

Ponto pacífico na doutrina é que os direitos sociais, nomeados como de “Direitos de Segunda geração”, têm a finalidade de permitir aos indivíduos a possibilidade de inserção plena na vida em sociedade.

Entretanto, não há dúvida de que para a implementação de tais direitos se faz necessário, muito mais do que teorias jurídicas, a imposição de ações concretas no sentido de torná-las efetivas, que deverão ser realizadas, a priori, pelo poder político vigente. Por isso a maior parte da doutrina entende que ao Poder Judiciário é reservado tão somente o papel de controle da constitucionalidade das leis e também o de verificar a harmonização das ações governamentais com a ordem constitucional vigente e a correta execução das políticas públicas elaboradas por esses, mas de forma alguma tem legitimidade para substituir o Legislativo e o Executivo nos respectivos âmbitos de sua competência, sob pena de se ferir o regime democrático tão necessário.

E, dentre os vários temas que têm sido objeto de discussões na atualidade, insere-se justamente aquele atinente à capacidade limitada do Poder Público de prover todas essas necessidades da coletividade, estampadas, sobretudo nesses ditos Direitos de Segunda Geração.

Isto porque, por mais que a estrutura estatal esteja satisfatoriamente aparelhada para se desincumbir destes encargos sociais, dificilmente terá condiçõesPage 5 de promover um atendimento integral a todos aqueles que, de alguma forma, careçam ou almejam este suporte dos Poderes Públicos.

3. Do princípio da reserva do possível e suas implicações

O homem, a partir do momento em que tomou consciência de que o direito positivo humano era falível, sentiu a natural necessidade de buscar um paradigma de aferição meta-positiva de valores, tais como o justo, o verdadeiro, dentre outras acepções. Na Antiguidade e na Idade Média, este papel foi realizado pelo direito tido como natural. Mais recentemente, passou a buscar a retomada das relações entre as ordens jurídicas e morais.

Dessa forma, o homem sentiu a necessidade da existência de uma ordem superior à positiva já existente, eis que a história comprovou a falibilidade do direito positivo. E esse momento, não por acaso, coincidiu com a ascensão vertiginosa da importância dos direitos humanos.6

A partir daí, percebeu-se que não poderiam mais ser aceitos ordenamentos positivos que não se compatibilizassem com o valor moral da pessoa humana que será abordado alhures.

As políticas públicas, por sua vez, podem ser conceituadas como opções feitas pelos órgãos políticos de uma determinada época, em busca de benefícios para a sociedade. São opções tomadas pela sociedade em deliberação e, como tal, em regra devem ser tomadas pelos órgãos legitimados democraticamente para tanto.7

Dworkin define as policies8 como diretrizes adotadas pela sociedade em busca do bem comum. Leciona que os direitos humanos, dotados de jus-Page 6fundamentalidade e imposições prévias de legitimação moral sobre a ordem jurídica, devem ser entendidos como ‘trunfos’ contra os quais não podem ser levantados argumentos dessas policies.

Não se nega que as políticas públicas em geral são extremamente importantes para as sociedades, devendo ser tomadas pelos órgãos legitimados democraticamente para tal, ou seja, pelos órgãos dos Poderes Executivo e Legislativo, sem ingerência, a princípio, do Poder Judiciário.

Entretanto, segurando-se na mesma idéia de essencialidade da democracia, é importante que exista a possibilidade de, em ocasiões excepcionais, sejam as políticas públicas também passíveis de controle, pela esfera judicial ou seja, pelos órgãos jurisdicionais. E, sem dúvida, o controle dessas políticas públicas através do Poder Judiciário se mostra ainda mais viável (ou mais que isso, se mostra necessário), quando houver incompatibilidade delas com os direitos fundamentais.

Contudo, não adianta a afirmação ingênua e abstrata de que existe determinado direito se a afirmação do mesmo se encontra completamente divorciada das possibilidades fáticas9.

E, em razão da escassez de recursos materiais para implementação desses direitos, surgiu o chamado princípio da reserva do possível, que procura estabelecer alguns marcos regulatórios para a emissão de ordens judiciais que obrigam o Poder Público a dar efetividade a prerrogativas instituídas em favor das pessoas em geral.10

Tal princípio, é cediço, tem...

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